Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de junho de 2020

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS ESTREIA NOVO CICLO DE PODCASTS INTITULADO "PENSANDO O NOVO NORMAL"


Academia Brasileira de Letras inaugura o ciclo de podcasts "Pensando o novo normal", gravado por seus acadêmicos e que abordará as relações entre a pandemia e as diferentes áreas do conhecimento humano. O primeiro episódio foi gravado pela Acadêmica Nélida Piñon e estará disponível para os ouvintes a partir das 16h da próxima quarta-feira, dia 1º de julho. O tema escolhido foi "Pandemia e Literatura". A apresentação será feita pelo presidente da ABL, Marco Lucchesi, e a coordenação-geral do ciclo cabe ao Acadêmico Antônio Torres.

 

Durante a emissão, a Acadêmica faz uma reflexão sobre como será a literatura no mundo pós-pandemia: “O que vai acontecer com a arte? Que tipo de arte nós vamos fazer? Eu diria que vamos fazer a arte que sempre fizemos. A arte brota das instâncias humanas, dos domínios da língua, dos domínios da sensibilidade, daquilo que nós somos hoje e fomos no passado, pois de verdade tudo aquilo que a gente diz ou cria hoje corresponde a um acúmulo de informações e de sensibilidade que vieram do passado. Nós somos um produto do grande caos humano.”

 

Estão previstos, até o final de setembro, mais 14 episódios, sempre apresentados às quartas-feiras. Todos os podcasts gravados ficarão disponíveis no site da Academia, assim como nas plataformas de streaming Spotify, Apple Podcasts, Deezer e Castbox.

 

 30/06/2020

 

http://www.academia.org.br/noticias/academia-brasileira-de-letras-estreia-novo-ciclo-de-podcasts-intitulado-pensando-o-novo

* * *

ITABUNA CENTENÁRIA UM POEMA: A MOSCA AZUL – Machado de Assis


 A Mosca Azul 
Machado de Assis


Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Industão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.


E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, - melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.


Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
“Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
 Dize, quem foi que to ensinou?”


Então ela, voando, e revoando, disse:
- “Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor.”


E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.


Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço

 E viu um rosto, que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu,
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.


Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.


Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.


Vinha a glória depois; - quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e o parabéns unidos
Das coroas ocidentais.


Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.


Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Como um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.


Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.


Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.


Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.


Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.


  (Ocidentais, in Poesias completas, 1901.)

 ------------

Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

Fonte: ABL

MAIS VALE MORRER DO QUE VIVER NUMA TERRA DEVASTADA E SEM HONRA - Pe. David Francisquini

30 de junho de 2020
Pe. David Francisquini

Um brasileiro pouco afeito à grande mídia esclerosada é capaz de relacionar a suspensão da prisão em 2ª instância com certos crimes e, sobretudo, com certos criminosos… Ele procura em via de regra pensar bem, luta por uma sociedade sadia, ancorada em valores e instituições de índole cristã que pautaram a vida social e política do Brasil desde o seu nascedouro.

Com efeito, esse brasileiro nunca se afirmará de esquerda ou progressista, pois ele é naturalmente bondoso, cordato, além de criativo e empreendedor, sentindo-se bem ao cultivar nossos valores religiosos e familiares. Ele se encontra nas antípodas de uma minoria que tendo haurido um espírito alienígena de revolta, de ódio e de ressentimento, se define esquerdista, socialista, comunista, e até mesmo anarquista.

A nossa velha e esclerosada mídia parece ter desempenhado papel importante nesse longo processo de envenenamento dessa parcela da população, ora desacreditando pessoas de bem e verdadeiros patriotas que anelavam e lutavam por um País melhor rumo ao seu autêntico progresso, ora imputando-lhes inverdades ou suspeições — hoje diríamos fake news — a fim de criar um caldo de cultura falso como arma de propaganda de guerra psicológica revolucionária.

Vem-se falando muito de agendas — agenda ecológica, agenda homossexual, agenda política… Qual a fonte dessas agendas? Quem as faz? Há uma central da esquerda internacional formada por estudiosos de um falso ideal encarregados de compô-las? Com efeito, tais agendas não podem ser um fruto espontâneo da natureza. Quem as manipula apresenta uma ‘bula’ esclarecendo onde, quando e como elas devem ser aplicadas? Diante do conservadorismo brasileiro, como proceder? Quais setores devem ser atacados em primeiro lugar? Existe um cronograma? As perguntas poderiam se multiplicar…

Convido o leitor a analisar um ponto apenas da nossa — chamemo-la assim — agenda judiciária. Em 7 de novembro de 2019, dia em que o STF oficializou a suspensão da prisão em 2ª instância para favorecer a soltura de Lula, a esquerda comemorou o fato. Mas não parece mera “coincidência” o fato de esse dia ser também comemorado pelos bolchevistas que se serviram de criminosos soltos expressamente para atacar e dizimar populações inteiras. Isso já havia acontecido na Revolução Francesa.

O Livro Negro do Comunismo narra com cores sinistras toda a criminalidade perpetrada por essa ideologia. Foram 61 milhões de pessoas assassinadas na Rússia, além de mais 78 milhões na China, para implantar o regime comunista despótico, cruel e antinatural. Ainda hoje vemos a perseguição à Igreja na China, membros do clero e fiéis sendo presos e igrejas destruídas, enquanto no Ocidente grassa a propaganda para tentar quebrar a harmonia entre os poderes constituídos e assim fomentar o descrédito e a divisão da ala conservadora e anticomunista.

Há mais. O Partido Comunista Chinês vem se intrometendo na vida interna das nações, desrespeitando suas soberanias. Às vezes eu me pergunto se esse coronavírus não faria parte da ‘agenda chinesa’ para impor a sua dominação.  O mais triste e perplexitante é ver até mesmo altas autoridades eclesiásticas colaborarem com o regime chinês nesse non sense jamais imaginado.

O que nos vem deixando igualmente perplexos no curso da presente epidemia é o favorecimento que uma parte do Judiciário a alguns governadores e prefeitos no sentido de atender a agenda da esquerda, em detrimento do governo federal e dos mais lídimos interesses do Brasil, no que foram coadjuvados pelo Legislativo, que abriu as comportas do erário sem pensar no futuro que nos aguarda.

Por outro lado, enquanto todos se dizem empenhados em defender vidas, no Congresso Nacional tentam aprovar a matança de inocentes com a prática abortiva; enquanto as pessoas de bem são confinadas para poupar vidas, bandidos e assassinos são soltos para atentar contra as vidas. Morros que são esconderijos de armas pesadas não poderão ser revistados durante a pandemia, enquanto jornalistas, blogueiros e manifestantes conservadores são arbitrariamente revistados e presos.

Estará a esquerda preocupada com a saúde, ou antes, está empenhada em conduzir o Brasil para o caos? Soltar criminosos em razão do vírus chinês não constitui um eventual perigo de uma guerra fratricida? Por que teria o Judiciário proibido o Exército e a Polícia de investigar os morros?  Que relação há entre drogas, crime organizado, tráfico de armas pesadas e toda a incessante movimentação da esquerda de cerceamento do governo federal?  Por que ainda se dificulta a posse de armas aos homens de bem?

Se tudo isso acontece no Brasil, por que permite Deus tão tremenda provação? Por que o episcopado nacional, em vez de manifestar seu zelo pelas almas atraindo-as para Deus, fecham as portas dos templos, parecendo mais preocupados com a saúde do corpo do que com a da alma? Por que não elevam suas preces aos céus a fim de pedir a Deus que perdoe os nossos pecados?  Para se entender um tanto o que está acontecendo, citaremos II Crônicas, VII -12, que aconselha:

“O Senhor apareceu-lhe [a Salomão], de noite e disse: Ouvi a tua oração e escolhi para mim este lugar para casa de sacrifício. Se Eu porventura fechar o céu e não cair chuva, mandar e ordenar aos gafanhotos que devorem a terra, mandar a peste ao meu povo; e o meu povo sobre o que foi invocado o meu Nome, convertendo-se, me rogar, buscar a minha face, fizer penitência dos seus maus caminhos, eu também o ouvirei do Céu, perdoarei os seus pecados e purificarei a sua terra. Os meus olhos também se abrirão e os meus ouvidos atenderão a oração daquele que orar neste lugar; porque eu escolhi e santifiquei esse lugar a fim de estar o meu nome para sempre, os meus olhos e o meu coração estarem fixos para sempre.”

Como podemos constatar, duas décadas de regime de esquerda produziram uma nefasta transformação no Brasil. Aparelharam-se instituições, e, sobretudo, por meio da infiltração comunista, os próprios meios católicos foram contaminados. É hora de conclamar o povo brasileiro a lutar, a exemplo do que sempre fez o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em sua incansável cruzada, a qual marcou indelevelmente a história do século XX e reverberará pelos séculos futuros.

Se hoje o conservadorismo viceja no Brasil, deixando estonteadas as forças do mal, é porque tivemos um homem de pensamento e ação contra-revolucionária que, por meio das caravanas de propagandistas da TFP, fez ecoar em todos os rincões deste país-continente o brado de inconformidade dado outrora por Judas Macabeu, mais vale morrer do que viver numa terra devastada e sem honra!

_____________
* Sacerdote da Igreja do Imaculado Coração de Maria – Cardoso Moreira (RJ).


* * *

segunda-feira, 29 de junho de 2020

O DIA EM QUE SHAKESPEARE ESTEVE EM PERNAMBUCO - Evaldo Cabral de Mello

Nos anos 50, o professor de Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito do Recife era Samuel MacDowell, que estudara em Oxford, onde, devido à sua compleição morena, representou Otelo no espetáculo montado pelos colegas. Isolado na casa-grande do engenho, ele dedicou-se a traduzir os sonetos de Shakespeare. Como costumava narrar nas mesas boêmias dos bares do Recife, eis que, em certa noite em que trabalhava em seu gabinete, apareceu-lhe o próprio Shakespeare, envolto numa auréola. Deu-se, então, o seguinte diálogo:

Shakespeare: — Samuah, Samuah, que estás tu a fazer a estas horas mortas?

MacDowell: —Will, estou a te traduzir.

Shakespeare apanhou, então, uma das folhas que se achavam sobre a escrivaninha, leu-a demoradamente, para finalmente sentenciar: “Samuah, Samuah, se um dia eu tivesse de me exprimir em tão rude idioma, o faria precisamente assim”. Dito o quê, Shakespeare desapareceu na auréola que o trouxera até Pernambuco.

Nunca me intrigou o aparecimento de Shakespeare, porque é conhecida a sua predileção pelos fantasmas e nada impedia que se transformasse em um deles e cruzasse o Atlântico. Intrigavam-me, contudo, primeiro, a intimidade com que os interlocutores se tratavam, e também o fato de Shakespeare conhecer a língua portuguesa. Tanto que se manifestara enfaticamente sobre a qualidade do trabalho de MacDowell.

O Globo, 27/06/2020


Evaldo Cabral de Mello - Oitavo ocupante da Cadeira n.º 34 da ABL, foi eleito no dia 23 de outubro de 2014, na sucessão do Acadêmico João Ubaldo Ribeiro, e recebido no dia 27 de março de 2015, pelo Acadêmico Eduardo Portella.

* * *

SÃO PEDRO E A CHAVE DO CÉU E A DA TERRA – Plinio Corrêa de Oliveira

29 de junho de 2020 
Neste dia 29 de junho a Santa Igreja celebra a festividade de São Pedro e São Paulo. Em memória desta importante comemoração — hoje tão diminuída e abafada devido ao processo de autodemolição da Igreja promovido pela própria autoridade eclesiástica —, transcrevemos a seguir trecho de uma conferência de Plinio Corrêa de Oliveira de 11-11-1988. 

“Bem no meio da praça de São Pedro, chama a atenção um obelisco — agulha de pedra muito alta, coberta de inscrições egípcias. Os faraós mandavam erigir obeliscos narrando os fatos do reinado deles, ou coisas do gênero. O Egito foi a mais gloriosa das nações antigas, e a Grécia formou grande parte de sua cultura aproveitando elementos da cultura egípcia. Os romanos, por sua vez, inspiraram-se em larga medida na cultura da Grécia. 

Assim, um obelisco no centro daquela praça romana tem muito significado. No alto do obelisco foi colocada uma cruz, simbolizando assim o triunfo da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre o mundo inteiro. 

E a ideia que preside o conjunto da praça e da Basílica de São Pedro é a representação de uma chave. É muito significativa tal representação em forma de chave, lembrando as chaves do Apóstolo São Pedro –– a chave dos Céus e a da Terra –– o poder exercido no Reino do Céu e, indiretamente, no Reino da Terra!”




domingo, 28 de junho de 2020

RETROCESSOS MONSTRUOSOS – Péricles Capanema

28 de junho de 2020
Péricles Capanema

Temos às pencas regressões sociais desconhecidas da maior parte das pessoas, às vezes esquecidas, por vezes subestimadas. São fracassos medonhos, lesivos ao bem comum. E assim, ao longo das décadas e séculos, empobreceram a sociedade, dificultaram a inclusão, a mais de fechar horizontes da promoção (perfeição) social. Por imperativo de justiça, reclamam resgate do olvido imerecido, que começa pelo conhecimento. Reitero, convém trazê-los de volta à luz, para fruição, instrução e proveito popular. Bem vista, essa revivescência é benemérito ativismo social. Todos perdem com tais esquecimentos (qualificação benévola, existem ocultações e deformações intencionais).

Vou falar em especial de um deles, hoje perdido em desvãos da História. Antes, poucas linhas de útil recordação sobre a relevância da exemplaridade. Tratei faz pouco, pela rama embora, do papel social dos “role models”, exemplos e padrão para milhões. Bafejando comportamentos, são fundamentais para formar mentalidades, favorecer doutrinas, promover condutas. Governam no mais alto sentido da palavra. Pois governar não é sobretudo abrir estradas e construir pontes; é em primeiro lugar dirigir pessoas. Dirige-as quem influi nas convicções, mentalidades e hábitos morais.

É difícil a tradução de “role model” para o português; seria modelo ou modelo social. Aliás, é exatamente esse o papel de um santo canonizado, servir de modelo, padrão, sugerir rumos, trabalhar mentalidades. O “role model” dos nossos dias em regra é versão apequenada, desnaturada, laicizada e aguada do santo.

Assim define o “Business Dictionary” [Dicionário dos Negócios] o “role model”: “São pessoas para as quais se olha e se reverencia. Um modelo social é alguém que os outros desejam imitar, seja agora, seja no futuro. Um modelo social pode ser alguém que você conheça, relacione-se normalmente com ele, ou alguém que você nunca encontrou, como uma celebridade. Modelos sociais podem ser atores conhecidos, figuras públicas, políticos, professores, policiais, pessoas importantes da família”.

Modelos sociais são ou foram Gandhi, os Beatles, Elvis Presley, Che Guevara, Bill Gates, Pelé, a princesa Diana e ainda numerosos influencers atuais. Um tio seu, leitor, admirado na família. Uma prima, leitora. “Quero ser como fulano”, é grito interior de sem-número de pessoas. Modelos sociais influem no caminhar da sociedade (involuções ou avanços), cada um a seu modo e título, cada um atuando em especial sobre certa faixa do público. Seu tipo humano se torna objetivo atraente naquela faixa da realidade. É corrente, a irradiação de sua personalidade, ligada ao fascínio que exercem, muitas vezes ultrapassa a influência de chefes de governo ou de Estado, mesmo de grandes potências. Podem atrair para o bem, hoje pouco comum, podem puxar para o mal, o que é mais frequente.


Luís XIV (1638-1715) é considerado a personificação do monarca absoluto. Dele teria sido a frase, pronunciada em 1655, “L’État, c’est moi” (o Estado sou eu). Nunca a disse; pelo contrário, pouco antes de falecer, afirmou: “Morro, mas o Estado permanece”. Ninguém nega, contudo, Luís XIV governou com autoridade, exerceu com desembaraço o mando. “Le métier du roi est grand, noble et délicieux”. Essa é dele; para o monarca o ofício do rei era grande, nobre e delicioso. Marcou a França, marcou sua época, foi modelo para soberanos. Não analisarei sua política, nem seus acertos e erros. Meu foco é aspecto pouco destacado, facetas de seu tipo humano, inspiradoras de comportamentos e formadoras de mentalidade. A descrição de que me valho é de Hyppolite Taine (1828-1893), dos maiores historiadores franceses, está nas páginas do seu livro “Les origines de la France contemporaine” [capa acima]; dela vou retirar apenas as referências para tornar mais fluente a leitura. Hoje é fácil encontrar a obra na rede e baixá-la — está no domínio público.

“Luís XIV tinha todas as qualidades de um mestre de casa, o gosto da representação e da hospitalidade, a condescendência e a dignidade; a arte de não ferir o amor-próprio das pessoas, a arte de ficar sempre em seu lugar, a galanteria nobre, o tato, o atrativo do espírito e da linguagem. Falava perfeitamente bem; quando era preciso tinha a linguagem leve; quando necessário, o gracejo. Se narrava uma história, fazia-o com enorme encanto, um tom nobre e fino, que só vi nele. Nunca houve homem mais naturalmente polido, nem com uma polidez tão bem medida, tão bem graduada, ninguém distinguia melhor nas respostas e na maneira de ser a idade, a condição social e o mérito. Suas reverências, mais ou menos marcadas, sempre discretas, tinham uma graça e uma majestade incomparáveis. Era admirável pela forma diferenciada de receber homenagens à frente das tropas e ainda nas revistas. Sobretudo no tratamento das mulheres, nada havia de semelhante. Nunca passou diante da mais simples empregada de quarto sem tirar o chapéu e sabia a quem cumprimentava. Nunca disse nada depreciativo para ninguém. Nunca em sociedade comentou alguma coisa fora do lugar ou deslocada. Até no menor gesto, no caminhar, no porte, na postura, tudo medido, decente, nobre, grande, majestoso e, contudo, muito natural”.

Taine conclui: “Eis o modelo. De perto ou de longe, foi seguido até o fim do Antigo Regime”. Sabe-se que Luis XIV morreu em 1715, o Antigo Regime acabou com o triunfo da Revolução Francesa em 1789. De fato, Luís XIV incarnou em alto grau um ideal de perfeição social, que marcou o Antigo Regime. Em especial, tal ideal social moldou a educação dos príncipes, a formação do “honnête homme”, o homem de sociedade. Tendia a se generalizar; sua perenidade e aperfeiçoamento gradual estimulariam avanços civilizatórios, dos quais o mundo se viu privado. Com o fim do Antigo Regime, atacada e vilipendiada pelas correntes revolucionárias, em análise rápida, sobraram destroços de tal padrão de convívio, ainda que por vezes enormes. Multidões durante séculos estiveram excluídas de formas mais perfeitas de vida social, acostumando-se com a degradação nas relações humanas. Decadência atroz — minimizada.

Esse mesmo espírito, aninhado no fundo da doutrina e da mentalidade das formações revolucionárias, manifestou-se repetidas vezes ao longo da História, gerando miséria e exclusão. Dois exemplos. Um grande cientista — nascido na nobreza de toga (durante a Revolução Francesa, renunciou ao uso da partícula de, própria à nobreza; aliás, pouco lhe adiantou) —, hoje por vezes chamado de “pai da química moderna”, Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) foi condenado à guilhotina por tribunal de exceção da Revolução Francesa. Pediu alguns dias de adiamento da execução, queria terminar; solicitação negada. Resposta emblemática de Jean-Baptiste Coffinhal, presidente do Tribunal Revolucionário: “A República não precisa de sábios”. Lavoisier foi guilhotinado em 8 de maio de 1794. Arremeteu irado contra o crime hediondo Louis de La Grange, dos maiores matemáticos da época: “Morreu Lavoisier, só lhes custou um segundo cortar a cabeça, cem anos talvez não sejam suficientes para que apareça uma parecida”. Quanto perdeu o mundo? Quanto perderam os pobres em qualidade de vida? Retrocesso desumano — silenciado.


Outros fatos, de mesma natureza. No Brasil, animadas pelo mesmo fanatismo, mulheres do MST (uma das vanguardas da atrofia social entre nós), em pelo menos duas ocasiões, pelo que me lembro agora, 2006 e 2015, foram discípulas modelares de Jean-Baptiste Coffinhal. Em março de 2006 em Barra do Ribeiro, a 60 quilômetros de Porto Alegre, destruíram pelo menos um milhão de mudas de eucalipto em laboratório [foto ao lado] de propriedade da Aracruz Celulose. Renato Rostirolla, gerente florestal, lastimou: “Há trabalhos de 20 anos de melhoramento genético que foram destruídos. Se fôssemos realizar todos os cruzamentos, levaria no mínimo cinco ou seis anos. Alguns nunca mais serão possíveis, porque as matrizes foram destruídas”. Vandalismo semelhante foi perpetrado em Itapetininga, março de 2015, também por mulheres capitaneadas pelo MST, agora na Futura Gene, empresa do grupo Suzano. O gerente Eduardo José de Mello lamentou: “Perdemos alguns anos de desenvolvimento tecnológico”. Segundo a empresa, 14 anos de pesquisas foram destruídos.

Os setores que espatifam com delícias intolerantes milhares e até milhões de mudinhas escolhidas de eucalipto, prenúncios de porvir melhor, de forma congruente, simpatizarão com a decapitação criminosa de Lavoisier; e não perceberão problema algum, acharão é bom, que a alta educação de Luís XIV seja depreciada e finalmente desapareça como fator de aperfeiçoamento social. Inimigos do crescimento, obstruem os caminhos da subida e o povo é a maior vítima.

Post-scriptum: tais setores não têm apenas manifestações extremadas; correntes de opinião numerosas ingeriram prazerosamente doses graduadas de tal veneno.


* * *

PALAVRA DA SALVAÇÃO (190)


Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo | Domingo, 28/06/2020

Anúncio do Evangelho (Mt 16,13-19)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”. Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”.
Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu. Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

---
Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Paulo Ricardo:

---

El Greco

“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15) “Quem és tu, Senhor?” (At 9,5)

Os acontecimentos e, sobretudo, as pessoas que encontramos ao longo da existência, são os que vão nos fazendo passar por contínuas transformações. Por isso, quando narramos nossa história de vida, quase sempre mencionamos alguém em particular que nos marcou profundamente. Já não somos mais os mesmos depois de ter conhecido certas pessoas que se tornaram especiais. Nosso olhar e nossa memória retornam a elas frequentemente, por sua constante inspiração e companhia.

Por isso, a pergunta que Jesus dirige aos discípulos não é superficial – “E vós, quem dizeis que eu sou?” Esta é a questão, a grande pergunta de Jesus que continua ressoando em todos nós, seus(suas) seguidores(as). Dependendo da resposta que damos, isso terá implicações profundas em nossa existência: a centralidade do modo de ser e de agir de Jesus em nossos compromissos, a ressonância de suas palavras em nossa vida, a sintonia com suas grandes opções, a sensibilidade diante dos mais pobres e excluídos, a nova relação com o Pai... Em outras palavras, o encontro com a identidade de Jesus des-vela nossa verdadeira identidade e, por isso mesmo, nosso modo de ser e de agir serão cristificados.

Segundo o evangelho deste domingo, só reconhecendo a identidade de Jesus estaremos capacitados para escutar o que Ele tem a nos dizer. Por isso, quando Pedro declarou quem era de verdade Aquele a quem tinham seguido, o Senhor mudou seu nome – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Só Jesus conhece bem quem somos e o que podemos realizar.

O ser humano é um ser chamado. Chegamos a ser nós mesmos graças ao chamado, ao olhar, à palavra de outro. E na palavra e no chamado que nos vem de Jesus, vamos percebendo que o mistério de Deus, totalmente outro e absolutamente íntimo, nos envolve e nos fundamenta. 
Não podemos definir Jesus com dogmas e doutrinas, mas também não podemos deixar de nos fazer a per-gunta: “quem é este homem Jesus”? Toda tentativa de responder com fórmulas fechadas não solucionará o problema. A resposta deve ser vivencial, não teórica: “quê dizes tua vida de mim?”, pergunta Jesus.

Nossa vida, enquanto seguidores(as), é a que deve dizer quem é Jesus para nós. Do esforço dos primeiros cristãos por compreender a Jesus devemos fazer nossas as perguntas que foram feitas, não as respostas que deram. Por mais informações que recebamos sobre Ele, por mais normas morais e ritos que aprendamos e pratiquemos, se ninguém nos convida, com sua vida, a prolongar o estilo de vida de Jesus, tudo permanecerá superficial e em nada nos enriquece.

Dar por definitivas as respostas dos primeiros concílios acabam nos afundando na rotina da repetição de fórmulas. O decisivo é descobrir a qualidade humana de Jesus e deixar que Ele desvele o que há de mais humano em cada um de nós. Afinal, o centro da missão do Mestre de Nazaré está em nos ajudar a sermos um pouco mais humanos, sobretudo nas relações com os outros e com o Pai.

Se cremos que o importante é a resposta, que já está dada, todos permanecemos em paz e acomodados; isso é grave. Hoje sabemos que o importante é que continuemos fazendo-nos a pergunta; a resposta nos paralisa; a pergunta nos mantém acesos e criativos, pois esta tem impacto no modo cristificado de viver.

Uma fé, vivida sem perguntas, acaba se esvaziando daquele mesmo impulso vital de Jesus. Somos segui-dores(as) de uma Pessoa (Jesus Cristo) e não de respostas teológicas.

Nossa fé cristã hoje é a mesma de Pedro e de Paulo: seguir Jesus Cristo e, em nossa maneira de viver, oferecer o Evangelho a todos. Assim se compreende que a Igreja celebre Pedro e Paulo numa única festa. E, por isso, não devemos nos escandalizar se, com frequência, na Igreja aflore o “Simão”, ao invés de Pedro: as ânsias de triunfalismos, busca de poder, medos na hora da perseguição... Também não podemos nos escandalizar se, com frequência, aflore o “Saulo”, ao invés de Paulo: fechamento nas próprias ideias e convicções, desembocando na intolerância, no dogmatismo e na violência, inclusive física.

Estes dois grandes personagens (Simão e Saulo) passaram por uma profunda transformação, a partir do encontro com a pessoa de Jesus Cristo; foi um processo lento, sendo lapidados pela graça de Deus até redescobrirem uma nova identidade escondida debaixo das cinzas do auto-centramento e da prepotência; identidade que agora se expressa em novos nomes: Pedro e Paulo.

Como distinguir, na Igreja, “Simão” de “Pedro”?; como distinguir “Saulo” de “Paulo”? Onde estão as fronteiras, se, ao mesmo tempo, Simão é Pedro e Pedro é Simão? Onde estão os limites, se, ao mesmo tempo, Saulo é Paulo e Paulo é Saulo?

Estes dois personagens nos fazem ter acesso à nossa condição humana: somos barro, frágeis, inconstantes...

mas carregamos um tesouro que nos dignifica. Nas profundezas de nosso ser, há um “pedro” e um “paulo” escondidos, esperando uma oportunidade para se manifestar. Exteriormente, talvez tenhamos sido muito mais “simão” e “saulo”, mas, o que decide nossa vida, é a nossa interioridade, morada do “Pedro” e do “Paulo”. É ali que a Graça de Deus trabalha em nós, fazendo emergir, junto a estes dois personagens, o que é mais nobre e mais divino em nós. Deus, na sua eterna paciência, espera momentos especiais para dar o seu “toque” em nosso eu profundo, e assim despertar o “pedro” e “paulo” que ainda dormem.

Diante de nós está Jesus Cristo para nos dar a “chave” como a deu a Pedro; ela nos facilitará o acesso ao mistério insondável da Vida. Na perspectiva bíblica “céus” significa vida em profundidade, vida expansiva, vida que nunca se acaba. Como dinamismo humanizador, a chave da interioridade é mola mestra que movimenta grandes intuições e sonhos, retira-nos do individualismo, cultiva a solidariedade, corrige rotas de vida, excita a imaginação, realça o poder criativo...

Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... “Ter a chave da vida”: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós que bloqueiam o fluir da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-nos ou fechar-nos; abrir-nos à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-nos no medo, no conhecido, no rotineiro...

Deus confiou e colocou em nossas mãos a “chave da vida”. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de nos criar livres. Aqui está nossa grandeza, enquanto seres humanos: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair...
Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.

Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme (“tu és Pedro”), bem talhada e preciosa que cada um de nós tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando os desafios e as inevitáveis resistências na vivência do seguimento de Jesus.

É no “eu mais profundo”  que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar  a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde vivemos o melhor de nós mesmos, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde partem as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da nossa vida.

Texto bíblico:  Mt 16,13-19

Na oração: A oração nos torna-nos diáfanos (transparentes); ela deixa transparecer o “simão” e o “pedro” de nossa interioridade; ela des-vela o “saulo” e o “paulo”  que atuam em nós.
A interioridade é espaço aberto, onde, a intimidade com Deus não anula nossa personalidade, mas nos capacita a fazer uma contínua passagem do “simão para o Pedro”, do “saulo para o Paulo”.
- O que tem predominado em sua vida: “simão ou Pedro”? “saulo ou Paulo”?

Pe. Adroaldo Palaoro sj


* * *

sábado, 27 de junho de 2020

PESADELO – Ariston Caldas

 
          Cecílio estava quase decidido, abandonaria Mildes; para isso ele fez indagações, comparativos, hipóteses; mediu os prós e os contras e não encontrou outra saída. Certeza sobre alguma coisa grave, nenhuma, mas uma dúvida renitente cavava seu juízo, dando-lhe quase a certeza, a justificativa para sua desconfiança. Sobre o quê? Perguntava-se às vezes. Ora, de verdade, só a indiferença de Mildes para com ele, notadamente naqueles momentos; ela embuchava, cobria-se cabeça e tudo, inventava lorotas, dizia-se cansada, isso e aquilo; nem conversava mais na hora de dormir, como fazia antes. Quando tudo começou assim, Cecílio deu até seus descontos, “coisas de mulher”, pensou. As cenas foram-se repetindo e um dia ele desconfiou. Doença, não era, Mildes continuava forte e rosada, bonita e disposta o dia inteiro. Em algumas oportunidades ele tentava fazer mão boba. “Me deixe, homem”, ela repelia. Vinham os resmungos e ele perdia as estribeiras; sem outro jeito ele calava a boca e ficava de olho duro para o telhado, articulando pensamentos.

            Antes de outras providências, iria para a casa da mãe dele, depois cuidaria da separação judicial. Em casa da mãe teria que arrumar uma empregada pala lavar pratos, e outros afazeres miúdos. Dona Elza estava idosa, cansada, cheia de mazelas.

            Enquanto tudo isso passava por sua cabeça, Mildes respirava encolhida a um canto da cama, virada para a parede; o rosto dele queimava, o miolo se alvoroçava, os nervos rebentando; o telhado parecia-lhe opressivo, as paredes manchadas lembravam-lhe um quarto de bordel e Mildes se assemelhava a uma prostituta; até o perfume exalando do corpo dela lembrava isso; ele sentia o cheiro subindo, ativo, ordinário, diferente do bom perfume que ela usava sempre. Por uma greta da janela ele sentia a noite clara, lembrou que era lua cheia.

            Recordou do casamento com Mildes, ela toda de branco, grinalda; a igreja do bairro iluminada a gosto, os convidados, os amigos, o coral. Mildes havia mudado muito, e agora, com aquela mania, virou uma peste. Quando aproximava-se a hora de dormir, parecia-lhe um suplício. “Que devo fazer?” Arriscava uma futucada de leve, cheio de acanhamento. “Chegue pra lá”, era a reação dela. Andava, virava, ele enchia-se de resmungos, ficava bruto, pronunciava-se aos berros. Mildes espreguiçava-se, virava para a parede, e o que seria bom ficava para outra vez.

            A partir da constância desse episódios, ele passou a maldar coisas, chegando à certeza de que estava sendo traído. Como passaria sem Mildes? Chegavam-lhe ideias absurdas, como a de praticar um crime. Mataria qualquer sujeito. Depois afastava essa possibilidade. A separação seria bem melhor, mesmo sabendo difícil suportá-la. Várias noites nessa angústia, o juízo embaralhado entre hipóteses absurdas. Lembrava de um punhal antigo que pertencera a um avô de Mildes, guardado como relíquia. Vez por outra ele via o punhal numa gaveta do guarda-roupas, prateado, inoxidável, numa bainha de couro bordada a fogo. Numa dessas noites ele levantou-se cheio de perturbações lembrando do punhal; Mildes, de sono solto, respirava tranquila, um seio descoberto e branco entre a turvação do quarto, os olhos fechados às vezes vibrando levemente, a boca ainda com a pintura de depois do banho. Sem resistir ao quadro, Cecílio passou a farejar os cabelos dela derramados pelas bordas do travesseiro; o fez receoso temendo que Mildes se assustasse. Depois, saiu devagar, macio, em direção ao guarda-roupas; apanhou o punhal na gaveta e lembrou do avô de Mildes que teria sido um sujeito com bigode de pontas viradas, sisudo, cabelo anelado partido ao meio. Ela continuava dormindo, respirando tranquila, um peito branco de fora, os cabelos espalhados pelo travesseiro, exalando perfume ordinário. “Tá ficando doido, homem, me solta!” Ela exclamou assim num balbucio estridente e confuso, dando uma cotovelada no peito dele que acordou de supetão, todo embaralhado. “Você viu onde deixei minha carteira de cigarro?” Disse ele ainda atordoado, e afastou-se zonzando, conseguindo dormir novamente.

            Voltou a sonhar, agora trocando tiros com um sujeito cabeludo parecido com um tal Miranda, dono de uma academia de ginástica, que morava em frente e gostava de andar numa moto vermelha. No sonho o sujeito empunhava um revólver e tinha à cintura um punhal igualzinho ao que pertencera ao avô de Mildes.

            Cecílio passou a noite assim entre pesadelos medonhos. No dia seguinte teria que resolver sua vida, encostaria Mildes à parede, decidindo tudo. Não fez isso no dia seguinte nem mais nunca. Ninguém sabe como ele conseguiu normalizar a situação. O casal reside na mesma rua, em frente à casa onde morou o dono da academia.

           
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas

* * *

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DESEJO DO SUBLIME RECONDUZ A ALMA AO CRIADOR - João Carlos Leal da Costa

26 de junho de 2020

João Carlos Leal da Costa


Sempre foi razão de conflito entre os homens a perpétua luta entre o desejo de liberdade individual e as normas religiosas, que parecem circunscrever essa liberdade. Esse conflito nasce do aparente desejo de transformar o ser humano num joguete sem livre iniciativa, o que seria contrário à natureza humana racional. Na aparência, o homem se transformaria assim num boneco nas mãos de um “deus” déspota e inacessível. Mas a realidade é bem outra, pois Deus criou o Universo como uma imagem de Si mesmo, e o homem, síntese dessa imagem, une o espiritual e o material. Ao mesmo tempo Deus colocou no fundo da alma humana as regras fundamentais da lógica e a noção da diferença entre o bem e o mal.

A fundamental noção de diferença entre o bem e o mal pôde ser comprovada cientificamente alguns anos atrás, pela doutora Karen Wynn, especialista em psicologia infantil da Universidade de Denver, no Colorado (EUA). Ela fez experiências com crianças de apenas três a oito meses, tentando verificar se elas reconheciam, num puppet show (teatrinho de bonecos), qual era o personagem bom e qual era o mau. Surpreendentemente, mais de 80% das crianças acertaram na escolha.

A carruagem de ouro do príncipe Joseph Wenzel I de Liechtenstein (Salão térreo do Museu Liechtenstein)

Isso confirma a teoria do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, de que todo ser humano nasce com o que ele chamou de “inocência”, isto é, uma aptidão inata para reconhecer os reflexos de Deus na criação, e de modo especial naquilo que o cerca: “No espírito humano as regras básicas da lógica são subconscientes. A lógica, enquanto disciplina, apenas explicita essas regras para o homem. Se ele não tivesse essas regras invisceradas, como coisas conaturais a seu espírito, seria um louco”.

A “inocência” da pessoa leva-a a perceber aos poucos que o universo é ordenado, e que essa ordem universal se coaduna com sua ordem interna. Na Epístola aos Romanos, São Paulo ensina que as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis após a criação do mundo, pela compreensão das coisas criadas (cfr. Rom. 1, 20). Eis um ensinamento extremamente importante, porque o comportamento humano reto, racional, tem que corresponder a essa ordem universal e à sua própria ordem interna.

Uma tradição de mais de mil anos na Mongólia: 
criação de águias reais

São Tomás de Aquino explica que o homem está situado em um nível entre o reino angélico e o reino animal, isto é, entre a esfera espiritual e a esfera física. Em outras palavras, Deus concebeu o ser humano como um microcosmo que contém em si, ao mesmo tempo, espiritualidade e materialidade. Existe portanto um macrocosmo (o universo) e um microcosmo (o homem). Macrocosmo e microcosmo são palavras de origem grega, onde macro e micro significam grande e pequeno, respectivamente, e kósmos significa o mundo ordenado. Não significa apenas que é ordenada a totalidade do universo, mas também que este é ordenado com harmonia e equilíbrio.

Portanto, aproximando as palavras macrocosmo e microcosmo entendemos que há uma semelhança de padrão, natureza ou estrutura entre os seres humanos e o universo. Essa similitude entre o macrocosmo e o microcosmo mostra que, para sobreviver, a sociedade humana não somente deve se reger por certas normas pré-estabelecidas por Deus no Universo, mas que esta é a única forma de se obter, depois do pecado original, o grau possível de felicidade nesta vida, uma vez que o homem nasce com essas normas dentro de si.

Muitos se desencaminham por achar que a liberdade humana está acima das normas morais que regem a ordem do Universo. Mas essa correlação foi posta por Deus, que premia já nesta Terra, e depois no Céu, a obediência a esses princípios.

Menino extasiado com a Coroa imperial inglesa. Feita de ouro, platina e prata, ela é ornada com diamantes, rubis, esmeraldas, safiras, espinélio, pérolas, veludo e arminho

No livro Revolução e Contra-Revolução, Plinio Corrêa de Oliveira mostra que o demônio não poderia deixar as coisas como Deus as quer, e engendrou então um processo de corrosão da sociedade estabelecida com base nos princípios católicos. Esse processo vem, desde o final da Idade Média, tentando evitar que se realize na sociedade o reconhecimento da correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo. Com isso ele procura impedir que o homem conheça e admire o seu microcosmo, e que admire também o macrocosmo, ambos criados por Deus. Pois se ele o faz, aproxima-se de Deus, preparando sua alma para o Céu, e isso o demônio não quer.

Muitos aspectos da sociedade moderna encaminham os homens ao contrário disso. Por exemplo, a mentalidade pragmática do “vale quem produz” afastou a ideia de um Ser criador, interessado em devolver-lhes o “controle sobre si mesmos”; e assim minguou neles a capacidade de considerar a sua existência segundo a perspectiva do macrocosmo.

John Horvat, vice-presidente da TFP norte-americana, escreveu sobre este assunto o livro Return to Order (Retorno à Ordem), no qual mostra como escapar das garras dessa sociedade baseada apenas no materialismo produtivista e na intemperança frenética do ganhar, ganhar, ganhar, que é oposta aos altos ideais medievais.

Segundo Horvat, uma nova visão da vida se torna necessária. Isso pode ser feito se nos voltarmos para a fonte de cultura cristã, da qual a civilização ocidental nasceu. Nessa fonte a sociedade tem uma perspectiva vertical. As pessoas são atraídas para cima, para um único ponto, do mesmo modo como as linhas de uma torre de catedral medieval conduzem os olhares para cima, para o cume da agulha onde está a Cruz.

Essa fonte acende no homem um desejo espontâneo de plenitude, voltado ao sublime, que a sociedade bafejada pelo demônio não pode satisfazer. O sublime consiste exatamente naquelas coisas de excelência transcendente, que constituíram a base da civilização medieval inspirada pela Igreja. Uma sociedade baseada no desejo do sublime será muito melhor, espiritual e materialmente, e só numa sociedade assim se pode encontrar a solução para a crise moderna.



  * * *