A cheia de 1914
Logo aos
primórdios de janeiro, as chuvas chamadas trovoadas caíram torrencialmente
sobre a Vila.
As águas
do rio foram-se avolumando, recebidas dos riachos e ribeirões, seus afluentes,
e se foram crescendo, até que começaram invadindo a Vila, enquanto as chuvas
caíam, sem cessar e torrencialmente, como se novo dilúvio surgisse na terra.
O céu carregado carrancudo, não
co0nsentia que o sol aparecesse, e à noite, nem a lua nem uma estrela apareciam
para iluminar o seu negrume. E a chuva caía sobre o município, sem tréguas. Os
elementos em fúria como que se combinavam para castigar Itabuna. E as águas do
rio subiam, subiam...
De princípio
invadiu a Rua Sete de Setembro, Laranjeiras, Areia, Estrada de ferro, Praça
Adami, Miguel Calmon, J.J. Seabra.
As casas
da Rua da Jaqueira já haviam sido destruídas, cujos restos desciam na correnteza
do rio, como se fossem barcos em passeio.
Troncos
enormes de árvores eram levados pela correnteza, como imensas cobras a dançarem
nas águas espumantes.
Animais,
galináceos, armazéns de cacau, barcaças, casas, tudo o rio ia levando.
E começou
o êxodo da população. O comércio mudou-se totalmente para a Praça da Boa Vista,
Rua do Lopes e do Cemitério.
Na Praça
Adami as águas subiram a três metros de altura. A população aflita corria aos
lugares altos, à procura de abrigo, enquanto as águas iam atingindo tudo,
derrubando paredes, abatendo casas, matando animais...
A ponte
que liga o bairro de Taboquinhas, as águas cobriram, subindo três metros de
altura do lastro.
As canoas tomavam passageiros à porta
das casas, passando pelos fundos da Rua Miguel Calmon, iam desembarca-los na
Praça da Boa vista, passando por cima do telhado da estrada de ferro. Foi uma
catástrofe.
Os gêneros
de primeira necessidade subiram a preços inacreditáveis. A estrada de ferro, há
pouco inaugurada, fora destruída num trecho de Lava-pés a Ilhéus. As viagens
eram feitas, depois da enchente, até Lava-pés e dali para Ilhéus, em canoas,
pelo rio Almada.
Numa
destas viagens, a canoa naufragou fazendo muitas vítimas, entre as quais, a
mulher de José Lima e Dourado, chefe político e coletor estadual.
Os gêneros
para o consumo da população eram conduzidos em animais, via
Banco-Barro-Vermelho e Preguiças, porque o rio havia destruído as estradas e as
pontes, ficando a antiga estrada do Banco também destruída.
Entretanto, apesar do grande prejuízo dado ao município de Itabuna foi a
enchente o principal fator de progresso para a Vila, pois em casebres
miseráveis que o rio destruiu, foram construídas, em seus lugares, melhores
casas e mais confortáveis.
Eu perdi
duas casas, a “Brasileira” e a casa ao fundo desta, ambas feitas de adobes, que
as águas facilmente derreteram, deixando somente os esteios e o telhado.
Reedifiquei-as a tijolos.
Tinha eu
duas pipas de cachaça, que ficaram presas das águas no armazém da estrada de
ferro, e, com a volta da água ao seu estado natural, fui recebê-las; uma delas
o senhor Rebouças comprou, naturalmente com lucros altos, dado a escassez da mercadoria. Ele, porém,
useiro e vezeiro em negócios ilícitos, resolveu ficar com alguns litros de
cachaça de graça, negou a existência da litragem marcada na fatura.
Não me conformei e fui
retirar do seu armazém a pipa de cachaça. Envergonhado por ser apanhado em
flagrante delito de roubo, acompanhado de vários sequazes, quiseram impedir a
retirada da cachaça. Reagi, de armas em punho, quando Everaldino Assis e
Agostinho de Santana intervieram, retirando-me e conduzindo-me à minha casa.
Conformei-me com o fato consumado. Dias depois, gabava-se o infeliz dizendo que
eu havia pago as vigas da sua casa, que a enchente danificara. Era a confirmação
do roubo, da sua infâmia e miséria. Pobre miserável, infeliz e paupérrimo, que
vive, até hoje, à custa do suor alheio, seja sugado de que modo for. Deus lhe
perdoe, como uma justificativa.
(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)
Francisco Benício dos Santos
----------
PREFÁCIO
Aí nestas
páginas que se seguem, vão rabiscadas as lembranças de vários fatos e episódios
passados no decorrer desta existência, aqui neste mundo presunçoso, cujos
habitantes são tão mais presunçosos ainda, a ponto de se julgarem superiores ao
próprio Todo de onde descendem.
Eu também
faço parte deste mundo e da sua humanidade, e, como ela, pecador inveterado e
impenitente.
Estas
notas, quem as ler, de certo que ficará sabendo quem eu fui.
Todavia, a
mim pouco importa o juízo da posteridade.
Hei de
seguir o meu caminho, caindo aqui, levantando ali, gozando hoje, sofrendo,
gemendo, chorando amanhã, até um dia poder habitar nova morada, liberto das
redes terrenas.
“Há muitas
moradas na casa de meu pai”.
Hei de
morar numa delas.
Bahia,
Julho de 1936.
* * *