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domingo, 24 de março de 2019

A VERDADE SAINDO DO POÇO


A pintura A Verdade saindo do Poço’ (1896), [mostrada acima], é de autoria de Jean-Léon Gérôme, escultor e pintor francês, e está ligada a uma parábola do século XIX.

 Segundo essa parábola, a Verdade e a Mentira se encontram um dia. A Mentira diz à Verdade: ‘Hoje é um dia maravilhoso!’

A Verdade olha para os céus e suspira, pois, o dia era realmente lindo.

Elas passaram muito tempo juntas, chegando finalmente ao lado de um poço. A Mentira diz à Verdade: ‘A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!’.

A Verdade, mais uma vez desconfiada, testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Elas se despiram e começaram a tomar banho.

De repente, a Mentira sai da água, veste as roupas da Verdade e foge.

A Verdade, furiosa, sai do poço e corre para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.

O Mundo, vendo a Verdade nua, desvia o olhar, com desprezo e raiva.

A pobre Verdade volta ao poço e desaparece para sempre, escondendo nele sua vergonha.

Desde então, a Mentira viaja ao redor do Mundo, vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade, porque, em todo caso, o Mundo não nutre nenhum desejo de encontrar a Verdade nua.

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O HERÓI - Cyro de Mattos

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O herói
Cyro de Mattos*



          Feitos superiores, inacreditáveis, aclamado como herói, inigualável.
 
          Coragem digna dos heróis gregos. Cada proeza inspirava histórias de cordel surpreendentes, os trovadores vendiam os folhetos na feira.

          Certa vez enfrentara uma onça preta, a mais temida entre os grandes felinos da Mata Atlântica. Fugira do circo, invadira a rua do comércio em plena luz do dia, faminta, há oito dias não se alimentava.

          Gente correu para dentro das lojas, as portas imediatamente fechadas.
 
          Menino lá dentro chorava, a mãe rezava, o pai se urinava.

          Lá fora correu atrás da bichona, estava prestes a abocanhar uma criança. Saltou no cangote da fera, deu um murro no ouvido, quebrou-lhe o pescoço com um golpe.
 
          Pessoas apavoradas deixaram as lojas, salvas pelo herói Hércules,   abraçavam-se, sorrindo. Mais uma vez livres do perigo. Bateram palmas demoradas para o intrépido e audaz herói da cidade com um comércio próspero.

         Outro dia venceu os assaltantes ao banco. Ali mesmo alvejou vários   deles com os tiros certeiros deflagrados com o revólver cano longo, calibre 38.  Saiu na moto  em perseguição do último assaltante, o carro do vilão fazendo ziguezague na disparada. Atirou no pneu traseiro do carro em fuga,  rodopiou, capotou e bateu no poste.
       
          Trêmulo, o  bandido cabeludo, a  barba crescida, tatuagem de mulher nua no pescoço. A arma apontada na sua cabeça. Pedia com o rosto choroso, tenha dó, seu Hércules,  não vou fazer mais isso, eu lhe prometo, não me dê uma surra, seja piedoso.
 
          Recebido com palmas calorosas, vivas, assovios dos que assistiram as cenas, pasmos. Todos sabiam outra vez que com o seu herói infalível a cidade estava segura. Onde aquele homem  de cara fechada conseguira tanta coragem?

          Quando veio ao mundo, contam os mais antigos, ele foi  dizendo logo, aqui cheguei  para  derrotar os malvados, proteger os injustiçados, não tenho medo de cara feia, lobisomem, muito menos de alma  serva do demônio.

          O Prefeito  baixou decreto honroso, considerando seus feitos altamente corajosos, cívicos, exemplares. Seria condecorado com a Medalha Fundador Filinto Sabre, o homem que penetrou a  mata hostil, pegou  cobra com a mão, esmagou com o pé, afugentou onça solteira ou acasalada,  comeu inseto, bebeu água de ribeirão com a concha da mão calosa.  Depois dele tudo ficou mais fácil na selva hostil e impenetrável.  De todas as partes os forasteiros chegavam, os acampamentos na mata viravam vilas, em poucos anos eram cidades.
 
          Foi chamado ao palco no dia do centenário da cidade. Todos aplaudiram de pé. Antes que fosse condecorado com a distinção cobiçada, a mais alta honraria do executivo municipal, gaguejou com uma voz amedrontada diante do homem vermelhuço, rosto flácido, narigudo, orelhas  de abano, um olho de vidro,  em posição solene.

       - Tire ela daqui, está perto de meu pé; se não tirar, saio correndo.
 
        Acrescentou o herói, em pânico:

        - Desde pequeno tenho medo de barata!


*Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Possui prêmios literários importantes. Publicado também em Portugal, Itália, França, Alemanha, Estados Unidos, Rússia e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e Pen clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de diversos gêneros.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (123)


3º Domingo da Quaresma – 24/03/2019

Anúncio do Evangelho (Lc 13,1-9)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam. Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo.
E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”. E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?’
Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás’”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanha a reflexão do Pe. Roger Araújo:

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O círculo infernal da culpa
James Tissot

“Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?” (Lc 13,4) 

O evangelho deste domingo, exclusivo de Lucas, apresenta uma reflexão sobre a conversão, em forma de parábola, a partir de dois acontecimentos trágicos que causaram comoção no povo judeu. O relato traz à tona este eterno problema: é o mal consequência de um pecado? Assim pensavam os judeus no tempo de Jesus e assim continuam pensando a maioria dos cristãos hoje. Ou seja, uma “visão distorcida” de Deus, leva a acreditar que tudo o que acontece é manifestação de sua vontade. Os males são considerados castigos e os bens são considerados prêmios.

Para entender a “novidade” da resposta de Jesus, é preciso saber que, na mentalidade judaica, a enfermidade e o mal, em geral, eram consequência do próprio pecado. A ausência do mal, pelo contrário, era considerada sinal da benção divina. Por isso, aqueles que sofriam qualquer calamidade ou enfermidade se convertiam automaticamente em objeto de juízo condenatório por parte dos outros; diante do olhar preconceituoso e julgador, eles se sentiam acuados por um angustiante sentimento de culpabilidade e desesperança. A desgraça os limitava; a culpabilidade os afundava.

Jesus se declara completamente contra essa maneira de pensar. Ele se distancia dessa ideia tradicional, desatando o nó “religioso” entre sofrimento e pecado, entre culpa e o mal. Para Jesus, a relação de Deus conosco se situa numa dimensão mais profunda. Devemos deixar de interpretar como atuação de Deus aquilo que é próprio das forças da natureza ou consequência da maldade e violência humana. Nenhuma desgraça que possa nos alcançar devemos atribui-la a um castigo de Deus.

Devemos romper com essa ideia de Deus, senhor ou patrão soberano que, a partir de fora nos vigia e exige seu tributo. De nada serve camuflá-la com estas sutilezas: “Pode ser que Deus não castigue nesta vida, mas castigará na outra vida”; “Deus nos castiga, mas é por amor e para salvar-nos”; “Deus castiga só os maus”; “Merecemos o castigo, mas Cristo, com sua morte, nos livrou dele”. Pensar que Deus nos trata à base de pancadas e prêmios, é ridicularizar a Deus e ao ser humano.

Somos tecidos pela culpa desde o nascimento; somos acompanhados por ela durante toda a vida. Ela nos prende facilmente em suas teias, impedindo a manifestação da força vital que há em nós. Sabemos que o sentimento de culpa pode ser paralisante, ameaçador, freio e obstáculo tanto para o desenvolvimento de uma comunidade humana quanto para o crescimento de uma pessoa; esta, centrada no próprio eu, fica “ruminando” seus limites e fracassos, caindo no desespero e não percebendo nenhuma saída para sua situação.

O sentimento de culpa causa sérios danos que acabam afundando existencialmente as pessoas: isso gera a irresponsabilidade que infantiliza, a passividade que leva ao fanatismo, a atrofia da criatividade, o medo paralisante, o sentimento de indignidade... Também a imagem do Deus Amoroso, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade. 

Por obra e força da culpa, “Deus” converte-se em “deus” de morte, em “deus” oprimido e opressor, em “deus onivigilante”, que investiga morbidamente nossa interioridade para captar e julgar qualquer desvio. A este “deus” nada escapa: ele vê tudo, escuta tudo, controla tudo... A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova.  “Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus”, abrir espaço para que Ele manifeste sua presença providente e amorosa. 

A atitude sadia, portanto, é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem entende a vida como “resposta” (essa é sua etimologia) coerente com as diferentes situações que se apresentam. É a responsabilidade que desperta pesar e dor nas ocasiões em que, afastando-nos da fidelidade ao melhor de nós mesmos, provocamos dano aos outros ou ao nosso meio. Mas esse pesar doloroso, diferente da culpabilidade, não paralisa nem afunda, senão que mobiliza para a mudança. 

A consciência responsável, de modo especial, nos move para a cura, a reparação; ao longo da experiência, com a ajuda da Graça e em constante discernimento, poderemos experimentar a contrição que leva à  mudança, à busca de alternativas melhores de comportamentos e atitudes, a assumir modos de agir que tornem possível uma vida mais plena e amorosa. Só quando tomamos consciência do dano feito é possível restaurar as condições que favoreçam logo um viver mais feliz e pleno. 

É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça nem castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados. “Se não vos converterdes, todos perecereis”. A expressão não traduz adequadamente o grego “metanoia”, que significa “mudar de mentalidade, ver a realidade a partir de outra perspectiva”. 

Jesus não diz que aqueles que morreram nas duas tragédias não eram pecadores, mas que todos somos igualmente pecadores e precisamos mudar de rumo. Sem uma tomada de consciência de que o caminho que fazemos nos leva ao abismo, nunca estaremos motivados para evitar o desastre. Se somos nós que vamos caminhando para o abismo, só nós podemos mudar de rumo.

Todos devem assumir a responsabilidade de suas ações. Não somos marionetes nas mãos de Deus, mas pessoas, ou seja, seres autônomos que devemos assumir nossa responsabilidade. A melhor tradução seria: “se não aprendes, inclusive com os erros, perecerás”. Dizendo de um modo mais simples: se não somos responsáveis, se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estaremos fechando a saída, alimentando infelicidade para nós mesmos, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre.

Libertados do “círculo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa. Temos diante de nós a nobre missão de transformar a realidade em Reino, e isso não será possível enquanto vivermos aprisionados nas malhas da culpa; enquanto a lei, o pecado e a culpa nos enredarem, não será possível perceber a novidade do Reino, que conduz à própria liberdade e à dos outros, à própria aceitação de si mesmo e à aceitação e ao amor aos outros.

O “Deus de Jesus” é Aquele que nos descentra e nos lança à realidade, com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência; em lugar de solucionar os problemas, Ele prefere nos dinamizar para que nós mesmos trabalhemos na busca de soluções. Deus é a plenitude de todas as aspirações humanas. Não há porque temer o Deus de Jesus. 

Texto bíblico:  Lc 13,1-9 

Na oração: Examinar com cuidado a origem dos sentimentos de culpa, pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa; nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.

- Sua relação com Deus tem a marca da confiança amorosa ou está carregada de culpa paralisadora?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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