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domingo, 1 de setembro de 2019

ABISMO DA RAZÃO - Cyro de Mattos


Abismo da Razão
Cyro de Mattos*


            Do lado de lá, nas terras longes, o homem irascível, bigodinho nervoso. Acabava de instalar o império do medo. Desejava ser o dono do mundo, montado na crença da supremacia da raça branca. Dos mais sofisticados, em alta escala, os armamentos bélicos. Milhões de criaturas indefesas reduzidas a cinzas nos fornos crematórios.

           Anos de fogo, sombras, pesadelos. O mal sem limites.  Corpos usados para expe­riências absurdas. Mães separadas dos filhos, maridos das mulheres. A terra virada no inferno. Milhões de inocentes eliminados sem dó, na enchente a morte. A liberdade recuada para os subterrâneos mais indignos.

          Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, cra­teras, escombros.  A fera ressurgia da antiga caverna, assoberbada galopava nas trevas. Não concedia a trégua, bania a razão para os confins inimagináveis do abismo mais profundo.  A vida nutrida de fúria galopava na engrenagem monstruosa do absurdo, o elogio de nadas, tudo sem sentido. Orgulhoso o hominho irascível, inundado de prazer, sorrindo de contente com o holocausto, rostos de penúria, estilhaços de gente por todos os cantos.

          No final, o triunfo do amor. Solda­dos uníssonos no campo da vitória. Retirada do estúpido abismo, de forças dementes   a razão açoitada no gesto vil, a pobre coitada ainda resistia.  Encerrada com os corpos de pessoas fuziladas, o tenebroso acúmulo de ossatura, o teatro fétido nos odores da morte, empilhada nos canais enormes.
  
         Grande passeata pelas ruas do lado de cá, gente grande e pequena dando vivas à liberdade.  O sorriso que alarga o rosto apareceu na rua de barro batido, os habitantes da cidade pequena em euforia incontrolável.  Bombas inimigas caladas para sempre. Já não existem mais as horas do mundo cheio de grito e agonia. Os sinos tocando sem parar a canção constante da paz, antiga, belíssima, irradiando bondade e alegria.
  
         Acreditava-se nos dias promissores. O homem redimido agora, renascido da razão,  nervos fraternos, sentimentos do amor. Cânticos emanavam do peito o bem supremo da felicidade. Não mais o coração esmagado sob as patas impassíveis de manadas enfurecidas. Nos ares libertos da opressão, bemóis da cantiga geral da união como verdade.

          A praça, um bloco extenso de gente, comoventes olhos brilhavam na direção do homem fardado no palanque. De volta da guerra, o rosto do herói numa máscara feita de tecidos sólidos. O locutor chamou o guardador dos ramos da vitória.  Entregou-lhe o microfone. “Comece, por favor, estão ansiosos para ouvir seu relato sobre o horror.”  O homem disse para o locutor, tinha o   olhar imóvel diante da multidão, soltando murmúrios, o vozear confuso, “não posso”.  “Faça um esforço”, retornou o locutor, animando-o.  “Não tenho palavras para descrever o terror.” Acrescentou, mastigando as palavras, “é impossível”.   O locutor ainda perguntou, “não tem palavras?”  O herói fez um esgar medonho, deixou todos com a expressão no assombro diante do silêncio impassível.  Com dificuldade, confirmou, “perdi as palavras nos anos de fogo e bombardeio.”  

           A multidão frustrada, gente triste rumo às suas casas, passos pesados, arrastados, em silêncio, rostos para o chão. Uma procissão de almas penadas, visagens de outro mundo.  O herói havia ajudado esmagar uma mulher diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a maravilha, mata a esperança, tritura a ternura, no lugar põe o abismo, que engole a razão sem remorso.  Com sua corrida desembestada, pisoteia tudo que nasce do amor.  Era importante ouvi-lo. Inútil sua palavra congelada. Imprestável para relatar o terror.  Sua razão não tinha sã consciência para descrever a imensa desgraça que viveu no pior abismo.
      

*CYRO DE MATTOS publicou mais de 50 livros, de diversos gêneros.  Autor com prêmios importantes. Também editado no exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia) 

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (146)


22º Domingo do Tempo Comum – 01/09/2019

Anúncio do Evangelho (Lc 14,1.7-14)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.
— Glória a vós, Senhor.

Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam. Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então contou-lhes uma parábola:
“Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, e o dono da casa, que convidou os dois, venha te dizer: ‘Dá o lugar a ele’. Então tu ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar. Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: ‘Amigo, vem mais para cima’. E isto vai ser uma honra para ti diante de todos os convidados. Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado”.
E disse também a quem o tinha convidado: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.


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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a encenação do Evangelho:
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HUMILDADE: deslocar-se para o lugar do último

“Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (Lc 14,11) 

Jesus sempre se revelou muito livre, transitando por mesas de diferentes pessoas. É muito inspirador ter em conta o contexto do evangelho deste domingo. Ele nos revela, mais uma vez, Jesus participando de uma refeição, convidado por “um dos chefes dos fariseus” da região. É uma refeição especial de sábado, preparada desde a véspera com todo esmero. Como é costume, os convidados são amigos do anfitrião, fariseus de grande prestígio, doutores da lei, modelos de vivência religiosa para todo o povo.

Jesus já era uma pessoa muito conhecida e muito discutida. Seguramente a intenção deste convite era comprometê-lo diante dos demais convidados. Mas temos a impressão que Jesus não se sente cômodo neste ambiente; sente falta de seus amigos, os pobres, aqueles que encontra mendigando pelos caminhos, aqueles que nunca são convidados por ninguém, aqueles que não contam: excluídos da convivência, esquecidos pela religião, desprezados por quase todos.

Sabemos que Jesus sempre se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e abriu para eles um “novo lugar” no Reino do Pai. Na Galileia, Jesus teve suas preferências e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares. Os evangelhos destacam que Jesus, na sua vida e missão, sempre deu grande importância às refeições em comum, mesas de partilha, mesas festivas... É neste ambiente de comunhão que o Reino se visibiliza e antecipa o sentido da refeição plena, preparada pelo Pai.

É a partir desse ato sagrado que podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).

O Reino de Deus, ao se fazer presente, desperta em nós a mística da mesa que alimenta uma vida que se faz doação, como o pão que é partilhado: a amizade, a convivência, a acolhida... Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente. Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, da inter-comum-união com o outro. E a vida floresce em plenitude quando está impregnada de amor e gratuidade, sem competição de “egos” e nem desejos de protagonismo. 

No texto do evangelho deste domingo, encontramos duas pequenas parábolas. Uma se refere aos convidados; outra diz respeito ao anfitrião. Em ambos os casos, Jesus nos propõe uma maneira diferente de compreender as relações humanas. Ele quer deslocar comportamentos que consideramos normais, para entrar em uma nova dinâmica, que nos leva a mudar a escala de valores do mundo.

Na primeira imagem, não se trata de um simples ato de educação para receber elogios. Jesus parte de um modo de proceder generalizado (buscar os primeiros lugares) como ocasião para apresentar uma visão diferente e mais profunda da humildade. Colocar-se no último lugar não deve ser uma estratégia para conseguir maior admiração e honra. A frase “quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado”, pode levar-nos a uma falsa interpretação. Jesus aconselha não buscar as honras e o prestígio diante dos outros, como meio para fazer-se valer. Condena toda vanglória e vaidade como contrárias à sua mensagem. 

O convite a “sentar no último lugar” revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido profundo. Ele revela aos participantes da refeição um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.

O gesto de Jesus convida a fazer um deslocamento, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade se percebe a partir deste lugar? Portanto, olhar a refeição a partir do ângulo de quem está no último lugar muda totalmente as perspectivas. Jesus revela, então, um “novo ângulo” ou um novo modo de “olhar as pessoas”: não a partir do lugar do poder, mas a partir da perspectiva dos fracos e indefesos.

Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz. Para isso é preciso uma “mudança de lugar”, um deslocamento para baixo, em direção aos pequenos. Quem “desce” encontra-se com Jesus. Quem acolhe um “pequeno” está acolhendo o “maior”, o próprio Jesus. 

A segunda parábola apresenta um matiz diferente. Antes de despedir-se, Jesus se dirige àquele que o tinha convidado. Não é para agradecer-lhe o banquete, mas para sacudir sua consciência e convidá-lo a viver  um estilo de vida menos convencional e mais humano. “Não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos. Convida os pobres, aleijados, coxos, cegos...”. Mais uma vez Jesus se esforça por humanizar a vida, rompendo esquemas e critérios de atuação que nos podem parecer muitos respeitáveis, mas que, no fundo, estão indicando nossa resistência a construir esse mundo mais humano e fraterno, querido por Deus.

Normalmente vivemos instalados em um círculo de relações familiares, sociais, políticas ou religiosas com as quais nos ajudamos mutuamente a cuidar de nossos interesses, deixando fora aqueles que nada podem trazer. Convidamos para ter acesso à nossa vida àqueles que, por sua vez, podem nos convidar.

Jesus não quer dizer que fazemos mal quando convidamos os familiares e amigos para uma refeição. Ele quer dizer que estes convites não vão mais além do egoísmo amplificado àqueles que são do nosso círculo. Essa atitude para com os amigos não é sinal do amor evangélico. O amor que Jesus nos pede precisa ir mais além do sentido comum, dos sentimentos ou do interesse pessoal. A demonstração de que  entramos na dinâmica do Reino está em que buscamos o bem dos outros sem esperar nada em troca.

A gratuidade é a marca do Reino. 

Texto bíblico:  Lc 14,1.7-14
Na oração: Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos que buscam outra cultura, a cultura da solidariedade, da interconexão responsável, do encontro comprometido.
 “Considerar” aqueles que não tem “lugar” em nossas comunidades; colocar-se em seu lugar e sentir o que eles sentem.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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