De primeiro foi o abecê
Cyro de Mattos
Sem esconder uma certa alegria na voz, a mãe disse:
- Segunda-feira você vai aprender o abecê na Escola Montepio
dos Artistas.
Ela finalizou dizendo que primeiro o menino aprende o abecê,
que são as letras do alfabeto. Depois vai começar a soletrar as palavras para
aos poucos aprender a ler o nome das coisas.
Na pequena pasta de couro havia sido guardado o abecê, o
caderno de caligrafia, outro para os primeiros exercícios de aritmética, um
lápis, uma caneta esferográfica, uma caixa de lápis de cor e uma borracha. A
merenda, pão com queijo, fora embrulhada com papel brilhante comprado na
livraria. Foi posta na sacolinha com a garrafa plástica contendo o suco de uva.
A mãe disse que todos os dias que fosse à escola ia levar a
pasta de couro com os objetos escolares e a merenda escolar. Além disso levaria
também a sacolinha com a garrafa de plástico contendo o suco de uva, uns
palitos e dois guardanapos de papel.
As aulas começavam às 8 horas e encerravam às 11, 30. Havia
um intervalo de meia hora para os alunos merendarem no pátio da escola.
Acontecia às 10 horas.
Entre assustado e receoso tentou se aproximar daquele grupo de meninos da sua mesma idade, talvez cada um com seis anos. Sentou em uma das carteiras que formavam a primeira fileira no salão grande, ventilado e iluminado. No primeiro dia não quis ficar sozinho. Começou a chorar quando ouviu a mãe dizer para ele que viria buscá-lo perto de 11,30 horas quando então voltaria com ela para casa. Pensou inconformado, era muito tempo ficar à espera que a manhã passasse até que a mãe viesse buscá-lo na escola quando encerrasse o dia de aula para os alunos das primeiras lições escolares. Abriu a boca no berreiro quando viu a mãe saindo pelo corredor para deixar a escola pela porta larga da entrada. Todos ficaram assustados com o berreiro dele, nunca havia acontecido isso antes. A professora pediu que a mãe ficasse aqueles primeiros dias com o filho na escola até que ele se acostumasse com os novos colegas num ambiente que lhe era estranho, estava conhecendo pela primeira vez.
Ela só ficou com ele apenas nos dois primeiros dias. Fez
logo novos amigos nos últimos dias da primeira semana de aula, entre os meninos
do seu tamanho. Se esforçou para aprender o abecê o mais depressa. Aprendeu em
boa hora a soletrar os nomes. Não precisava dizer o quanto sorriu de contente
quando começou a soletrar um bocado de palavras, que a professora ia soletrando,
repetindo com paciência, uma a uma.
Na primeira vez em que foi ler um texto pequeno, que falava
do amanhecer numa fazenda, não gaguejou. Foi seguro e rápido. Arrancou aplausos
dos colegas. Em casa contou à mãe que já estava começando a aprender a ler. Era
uma questão de tempo agora para folhear o almanaque do Biotônico Fontoura ou
até mesmo o jornal diário. E então começasse a saber o que acontecia na cidade,
já pensando um dia em conversar com o pai sobre o fato que mais lhe chamasse
atenção.
Tempos depois pensaria que se não fosse o abecê jamais se
tornaria um leitor desejoso de saber mais acerca da vida, cujos movimentos se
manifestavam com o seu modo continuado de acontecer por entre os seres humanos,
em cada dia.
Nem saberia, nos seus detalhes, da importância das coisas criadas por Deus para que existisse o reino perfeito da natureza, com o sol e a chuva, a claridade e a noite, a nuvem e a árvore, o peixe e a água, o pássaro e o canto, enfim, o pai com o trabalho e a mãe como a companheira na construção de uma família com bases no amor e honradez.
Cyro de Mattos é baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor
Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro
efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras
de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.
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