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domingo, 24 de setembro de 2017

A FAZENDA CORDILHEIRA – Sherney Pereira



A Fazenda Cordilheira

            A Fazenda Cordilheira, de João Batista Lavinscky, era, outrora, animada. O campo de futebol, efetivamente, sempre foi o palco de atração de tantos quantos para ali se convergiam aos domingos e feriados.

            Havia partidas acirradíssimas entre o time local e outros adversários, que procediam dos mais diversos lugares. Recordo-me dos atletas que jogavam no time da Fazenda Cordilheira. Uns, ainda vivem entre nós; outros já partiram para a eternidade. Eis os nomes de alguns: Laerte – que pertencia à família Lavinscky e, mesmo depois de velho, era um sujeito muito brincalhão e desbocado, entre uma pitada e outra de tabaco, que sujava o seu imenso bigode, ele espirrava e proferia palavras obscenas -, Eliziário, Wilson, Merinho, Antenor, Teodoro e Milton Lavinscky.

            Milton nos conta uma história deveras engraçada sobre o seu tempo de jogador de futebol naquela fazenda. Segundo ele, o seu time disputava uma partida com uma equipe de Itabuna – a sua posição é de centro-avante -, e era considerado artilheiro. Neste jogo havia feito dois tentos e quando encerrou a primeira etapa, a Cordilheira já ganhava tranquilamente pelo placar de 2 a 0. Foi aí que, durante o intervalo, o zagueiro do time visitante, um negão com porte de halterofilista, chamou-o em particular e, com um revólver discretamente apontado para sua barriga,  fez a seguinte ameaça: “Companheiro, peça para sair do jogo, ou do contrário, vou estourar os teus miolos”... Com os olhos arregalados, tremendo de medo, Milton foi obrigado a tranquilizar o jogador e, dando-lhe um tapinha “amistoso” nas costas, retrucou:  “Calma, rapaz, eu já estava pensando em sair mesmo. Estou contundido, e de qualquer sorte, eu não aguentaria o segundo tempo”. Foi saindo de mansinho e, tamanho era o seu pavor, que não teve tempo para comunicar aos colegas a razão do seu estranho afastamento.

            Ao reiniciar a partida, Emerito que era o capitão do time, pode descobrir a tempo que estava faltando um dos seus jogadores. Procura daqui, procura dali,  até que o encontraram, deitado debaixo de um caminhão que ali estava estacionado, queixando-se de uma dor de barriga insuportável. O medo faz coisas incríveis...

            Bem próximo ao campo de futebol, havia a igreja N. Senhora da Conceição, onde fui batizado e crismado. Os fiéis da Fazenda Cordilheira e adjacências buscavam ali, a paz espiritual e o contato com Deus.

           Como esquecer das novenas do mês de Maria? Naquela época, Salobrinho ainda não tinha a sua igreja católica e, durante todo o mês de maio, aproveitando o luar, formávamos  grupos de moças e rapazes e lá íamos rodagem acima, a fim de prestigiar as novenas da Cordilheira e,  ao mesmo tempo, paquerar as moças bonitas, que eram lideradas por Neuma,  uma das filhas de Antônio Lavinscky (Tonico), as quais rezavam e entoavam lindos cânticos em louvor à Santa. Ali, tudo era organizado e maravilhoso: a ornamentação da igreja ficava a cargo de João Gomes de Jesus, ou simplesmente Gomes, um rapaz humilde que fora criado por João Batista Lavinscky e que se aprimorara na arte de cozinhar.

            As moças que engalanavam as noites daquela fazenda eram dedicadas e de uma gentileza ímpar. Recordo-me dos nomes de algumas, que até foram minhas colegas. Neuma, Tereza, Ivany, Nilma, Nadir, Lúcia, Tili, Carminha, Nilzete, Lucinete, Eloína e tantas outras, que no momento me escapam à memória, entretanto hão de perdurar para sempre nas lembranças dos que tiveram a oportunidade de visitar a Fazenda Cordilheira, à margem da 
BR-415, a poucos quilômetros do Salobrinho.

            Na verdade, aquele lugar foi um manancial de alegria e felicidade. Hoje, só existem recordações, porque as moças, paulatinamente, foram casando e se afastando dali, o que deu origem à solidão e à monotonia existente.

            Os fiéis não perderam a crença, mas ficaram sem estímulo, à proporção que as missas e novenas aconteciam esporadicamente, contribuindo para que a igreja fosse ficando no abandono, e ocasionasse o seu completo desmoronamento. Atualmente, tem acontecido ao contrário: o povo do Salobrinho já não mais vai à Cordilheira confessar os seus pecados. Recebe, porém,  com muito carinho,  na igreja de São Pedro, aquela gente boa e hospitaleira, que para ali converge, numa prova inconteste de fé cristã.


(SALOBRINHO, Encantos e Desencantos de um Povoado)
Sherney Pereira

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (45)

25º Domingo do Tempo Comum - 24/09/2017

Anúncio do Evangelho (Mt 20,1-16a)
— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, Jesus contou esta parábola a seus discípulos:

“O Reino dos Céus é como a história do patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha. Combinou com os trabalhadores uma moeda de prata por dia, e os mandou para a vinha.
Às nove horas da manhã, o patrão saiu de novo, viu outros que estavam na praça, desocupados, e lhes disse: ‘Ide também vós para a minha vinha! E eu vos pagarei o que for justo’. E eles foram. O patrão saiu de novo ao meio-dia e às três horas da tarde, e fez a mesma coisa.
Saindo outra vez pelas cinco horas da tarde, encontrou outros que estavam na praça, e lhes disse: ‘Por que estais aí o dia inteiro desocupados?’ Eles responderam: ‘Porque ninguém nos contratou’. O patrão lhes disse: ‘Ide vós também para a minha vinha’.
Quando chegou a tarde, o patrão disse ao administrador: ‘Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a todos, começando pelos últimos até os primeiros!’
Vieram os que tinham sido contratados às cinco da tarde e cada um recebeu uma moeda de prata. Em seguida vieram os que foram contratados primeiro, e pensavam que iam receber mais. Porém, cada um deles também recebeu uma moeda de prata.
Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’.Então o patrão disse a um deles: ‘Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?’ Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Paulo Ricardo:

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O amor é sempre surpreendente

“Ou está com inveja, porque estou sendo bom? (Mt 20,15)

Sabemos que toda parábola é um relato provocativo, instigante, que envolve o ouvinte... A partir de conceitos simples, tomados da vida cotidiana e que todo mundo conhece, a parábola projeta nossa consciência para um horizonte maior; por estar profundamente conectada à vida, toda parábola mantém sua atualidade através do tempo e das culturas.

O objetivo das parábolas é substituir uma maneira míope de ver o mundo por outra, aberta a uma nova realidade cheia de sentido; igualmente, elas ativam a olhar o mais profundo de nós mesmos e a descobrir possibilidades ainda não conhecidas. A parábola revela uma pedagogia que permite não dizer nada a quem não está disposto a mudar, e a dizer mais do que se pode dizer com palavras a quem está disposto a escutar. Quem a escuta, deve deixar transparecer em sua presença a mensagem do relato e começar a viver de acordo com o que foi narrado.

A parábola, em si mesma, dá o que pensar, pois questiona nossa maneira de ser, nos diz que outro mundo é possível e espera de nós uma resposta vital.  Nesse sentido, as parábolas de Jesus não foram dadas por concluídas; elas estão sempre abertas às novas realidades dos ouvintes; por isso, não podem ser entendidas em atitude passiva, pois elas abrem espaço para que cada um entre nelas de maneira criativa. A parábola não é verdade fechada, mas verdade dialogada, onde todo ouvinte deve interpretá-la com sua vida.

Em toda parábola existe um ponto de inflexão que rompe a lógica do relato. Nessa quebra se encontra a verdadeira mensagem. Na parábola do evangelho de hoje(25º Dom TC), a ruptura se produz no final do relato. É evidente que, em chave de lógica econômica, esta parábola é estranha, fora do normal. Mas Jesus, semeador de parábolas do Reino, sabe que há uma lógica mais alta, a do poeta criador.

Esta é a lógica da gratuidade e da bondade do dono da vinha que se expressam no gesto generoso de pagar a mesma quantia para os trabalhadores que foram chamados em diferentes horários do dia. O contexto da parábola é a controvérsia de Jesus com as autoridades judaicas por sua contínua relação com pessoas de duvidosa reputação como os publicanos, pecadores, enfermos, crianças, pagãos e mulheres. Precisamente aqueles que eram considerados impuros e, portanto, excluídos do círculo de santidade.

Com a parábola do dono da vinha que contrata trabalhadores, Jesus não pretende dar uma lição de relações trabalhistas. Qualquer referência a esse campo não tem sentido. Jesus fala da maneira de comportar-se de Deus para conosco, que está para além de toda justiça humana. Ele nos desafia a entrar em sintonia com esse modo de agir original e gratuito de Deus, contrário à nossa mentalidade utilitarista. A partir dos valores de justiça que manejamos em nossa sociedade, será impossível entender a parábola.

O proprietário daquela vinha tinha uma estranha forma de organizar sua empresa agrícola; não parecia se importar muito com o dinheiro que investia na mão de obra. A relação entre diária e tempo trabalhado não se ajusta aos cânones empresariais do nosso mundo capitalista: não havia feito nenhum MBA em “racionalização de recursos humanos”, “índices de produtividade” ou “salários mínimos, máximos benefícios”... Incompreensível sua atitude: pagou a todos igualmente sem valorar tempo e trabalho realizado.

A partir da lógica humana, não há nenhuma razão para que o dono da vinha trate com essa deferência ao trabalhador de última hora. Por outra parte, o proprietário da vinha atua a partir do amor absoluto, coisa que só Deus pode fazer. O que a parábola nos quer dizer é que uma relação de “toma lá e dá cá” com Deus não tem sentido. O trabalho na comunidade dos seguidores de Jesus deve fundamentar-se no modo de agir de Deus e ser totalmente desinteressado.

O sistema religioso do tempo de Jesus centrava a prática religiosa no mérito e no pagamento. A salvação se havia convertido num mercado de compra e venda. Jesus questiona a fundo esta mentalidade que tanto mal fez ao povo. A salvação é dom gratuito de Deus. E a graça, que é sempre surpreendente, tem a ver com o amor misericordioso. Deus não maneja nossos esquemas contábeis de rendimento e lucros. Para Deus, tanto os primeiros como os últimos são objeto de seu imenso amor e misericórdia.

Na realidade, o que está em jogo na parábola é uma maneira de entender a Deus, completamente original. Tão desconcertante é esse Deus de Jesus que, depois de vinte séculos, ainda não o temos compreendido. Continuamos pensando em um Deus que retribui a cada um segundo suas obras. Uma das travas mais fortes que impedem nossa vida espiritual é crer que podemos e temos que merecer a salvação.

O dom total de Deus é sempre o ponto de partida, não algo a conseguir graças ao nosso esforço. O caminho de cada pessoa é saber-se filho(a) de Deus e comprometer-se na construção do Reino, sendo este um caminho de conhecimento que dura toda a vida. Uns tem o privilégio de compreendê-lo ao amanhecer; outros, no meio da manhã, dão-se conta de que estão sendo chamados; e ainda ao cair da tarde, uns quantos mais entendem que são enviados; por fim, ao anoitecer, todos receberão o pagamento pela sua entrega, seu esforço e sua confiança em Deus.

Considerando o denário da parábola como o amor total de Deus, que não pode ser fragmentado, que não faz distinções e que não considera ninguém como forasteiro ou excluído, é preciso e urgente colocá-lo em circulação como “moeda única mundial”. O amor de Deus não se fraciona como o dinheiro. Ele é total; paga sem importar-lhe quando as pessoas se deram conta de sua presença. No amor misericordioso de Deus estão implícitas a justiça e a alegria. E a justiça aqui significa “ajustar-se ao modo de agir de Deus”.

Se sairmos de nossos esquemas e entrarmos em sintonia com o modo de agir de Deus, não teremos dificuldades em entender a estranha maneira d’Ele realizar os pagamentos; também nós passaremos a desejar aos nossos irmãos aquilo que Deus sempre desejou: que todos compartilhem igualmente do seu amor surpreendente, superando a estreita visão do mérito e da recompensa; também vibraremos de alegria quando aqueles que, ao cair da tarde, vierem se integrar à nobre missão de construtores do Reino e receberem o único pagamento possível: o denário do Amor de Deus.

Não percamos tempo pensando e esperando ingenuamente que o FMI ou qualquer outro organismo financeiro vá interessar-se por esta mudança de moeda, já que ela nem é cotada nas bolsas, nem é protegida em paraísos fiscais, nem flutua seu valor conforme convenha a quem move os fios financeiros.

O denário da parábola é cotado no coração humano e quem compreende seu valor quererá compartilhá-lo com cada pessoa que habita este mundo, começando pelos que “ao cair da tarde” estão parados: refugiados, enfermos, excluídos, crianças sem acesso à educação nem atenção sanitária, anciãos que não podem ter uma velhice digna e feliz junto às suas famílias, imigrantes, jovens sem futuro enredados pela violência, profissionais que não podem exercer o que sabem... São tantos os que aguardam!

Quando conseguirmos a “mudança de moeda” em nosso coração, estarão em alta valores como a paz, a tolerância, a fraternidade, o equilíbrio entre a natureza, a justa satisfação das necessidades... O amor será a única “moeda” aceita por todos; o amor será o único meio para fazer que as diferenças caiam, as distâncias desapareçam, os erros se emendem e a violência se extinga, o perdão sane e o abraço reconforte... Está em nossas mãos a possibilidade e a esperança de concretizar tudo isso.

Texto bíblico:  Mt 20,1-16

Na oração: “Por que afligir-se em comparações? Não queira ser o melhor, se certamente não é o pior.
Contente-se por ser diferente na missão que recebe para que algo em você passe a enriquecer os outros.
Deixe-se acompanhar pela eterna surpresa e, encantado, exercite a divina criatividade” (Frei Cláudio)

Pe. Adroaldo Palaoro sj


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