Alguém
disse que, quando lemos um clássico pela primeira vez, realizamos, a bem da
verdade, uma segunda leitura. Mais que um paradoxo, as linhas de força de um
grande livro não deixam margem à dúvida.
Esse é o caso de Moby Dick. Antes de navegar com Ismael, naquelas águas altas e
perigosas, quem não passou por um sem-número de filmes e desenhos animados,
músicas e quadrinhos, que aludem à baleia branca de Herman Melville? Portanto,
sabíamos algo de Moby Dick, antes mesmo de aportarmos no romance, através de
remissões e fragmentos.
Um clássico dialoga com as vozes que o precederam. Melville
não esqueceu a viagem dos Argonautas, o naufrágio da Odisseia e
a tempestade da Eneida.
Assim, quando chegamos a Moby não somos uma página em branco. A primeira
leitura é, no mínimo, a segunda.
A tradução de Melville em português adquire novo teor
salino. Nossa língua é filha de Netuno e de Ulisses. Cresceu na intimidade com
o mar, entre sonhos e lágrimas, naufrágio e calmaria, Vênus e Adamastor.
A literatura é um repertório infinito, rede lançada em pleno
oceano para buscar uma ostra, ou quem sabe uma estrela que dorme, afogada. Ou,
ainda, uma baleia, simbólica e profunda.
Há outro fato que me encanta em Moby Dick. Leio um artigo
publicado no jornal carioca Última hora: “Casca de Noz em pleno Oceano”. O
repórter Irênio Delgado é atraído por um pequeno barco no porto do Rio. O
“Buona Stella” partiu de Gênova e levou três meses para chegar ao Brasil.
Corria o ano de 1951. Havia um mascote a bordo chamado Tânger. “Cachorro fiel
que viveu os mesmos perigos da longa travessia”. Irênio entrevista um jovem de
29 anos, Egidio, oficial telegrafista. Era meu pai. A vida toda me falou da
travessia, tempestades e baleias.
Moby estava em mim antes de conhecê-la.
A “segunda” leitura do romance deu-se numa praia de Niterói
de cara para o Atlântico. Ia eu cercado de antigas ideias, O velho e o mar e Os
lusíadas. Dezessete anos de idade. Não conseguia separar-me da ficção que
condensava uma vida: o mistério do bem e do mal, as ideias fixas: o mundo
sombrio e luminoso de cada personagem. E logo me apresento ao capitão Ahab:
“Olá, meu nome é Marco”. E vogo em alto mar, preso ao convés, de olhos bem
abertos, a sondar o horizonte.
Se alguém disser que saiu do romance, não acredite, leitor.
Quem bebe dessas águas não é capaz de abandoná-las. Um clássico passa a
fazer parte de nossa biografia, amizade que reconheço, quatro décadas depois,
na mesma praia de Itacoatiara. Não tenho dúvidas de que Moby me engoliu. Quem
sabe me tornei um novo Jonas, apaziguado no corpo da baleia.
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
Deitada na
rede, eu olhava para o céu. De repente surge uma estrela que vai aumentando
lentamente e sua luz cresce de intensidade.
Recuei ao
passado, voltei à infância e lembrei-me do tempo em que eu dizia: “primeira
estrela que vejo, dá-me o que desejo”.
Naquela época
eu desejava um bocado de coisas. Eu e minhas amiguinhas pedíamos uma série de
coisas àquela estrelinha.
E hoje, o
que eu desejo?
Voltar ao
passado? Não.
Tirar na
loteria esportiva? Não.
O que desejo
é... Ser uma estrela sempre a irradiar alegria, paz, amor. Uma estrela sempre
no alto a espalhar os seus raios para todos.
Não se acende
uma luz para colocar debaixo do alqueire, mas para colocá-la sobre o candeeiro,
a fim de que ilumine a todos que estão em casa. (Mateus, 5.15).
Seguindo o exemplo da estrela, quero
derramar sobre todos, tudo de bom que tenho dentro de mim: amor, ternura,
alegria gratidão...
Até que idade se pode permanecer na ativa? O certo é que não
existe uma resposta precisa para essa pergunta. Veja-se o caso do escritor e
pensador francês Edgard Morin. Ele está completando 100 anos e segue
escrevendo, dando ao mundo o resultado de uma experiência que parece não ter
fim.
Nelson Motta, em “O Globo”, defende a tese de que o
tempo não se mede pelo calendário, mas pela intensidade. E dá muitos e bons
exemplos, como Marcos e Paulo Sérgio Valle, irmãos da minha professora
Patrícia. A sua inspiração parece infinita.
Falar em termos pessoais nem sempre é o melhor caminho. Mas
não posso deixar de revelar que me sinto inteiraço aos 86 anos de idade. Fruto
talvez de um passado bem vivido de atleta. Recebi um elogio recente do médico
Paulo Niemeyer Filho: “Você tem ossos muito bem constituídos.” E assim
ele pôde operar, com sua competência internacional, a minha lombar que ameaçava
dar mais trabalho do que deveria.
Hoje, apear da idade, estou na plenitude das minhas
atividades profissionais. Sou presidente do Conselho de Administração do Centro
de Integração Empresa-Escola (CIEE) do Rio de Janeiro, oferecendo oportunidades
de emprego a milhares de jovens estagiários e aprendizes. Faço lives e dirijo e
apresento o programa “Identidade Brasil”, no Canal Futura de televisão, com uma
audiência espetacular. Integro os quadros da Academia Brasileira de Letras,
figurando hoje como o seu vice-decano (só perco para o amigo José Sarney).
E estou colaborando com o fraternal amigo Carlos Alberto
Serpa de Oliveira para criar a Academia Brasileira de Cultura, que em breve
estará funcionando na plenitude. A idade só ajuda a ter mais experiência.
Utilizando as virtualidades do tempo, escrevo livros e
artigos semanais para diversos periódicos. O tema é sempre educação, como tenho
feito de forma ininterrupta. E não deixo de dar uma relevante contribuição ao
Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens e Serviços,
obediente à liderança dos notáveis Ernani Galvêas e Bernardo Cabral. Velho? Nem
pensar…
Arnaldo Niskier - Sétimo ocupante da Cadeira nº 18 da ABL,
eleito em 22 de março de 1984, na sucessão de Peregrino Júnior e recebido em 17
de setembro de 1984 pela acadêmica Rachel de Queiroz. Recebeu os acadêmicos
Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Paulo Coelho. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras em 1998 e 1999.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
João.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, Jesus foi para o outro lado do mar da
Galileia, também chamado de Tiberíades.
Uma grande multidão o seguia, porque via os sinais que ele
operava a favor dos doentes. Jesus subiu ao monte e sentou-se aí, com os
seus discípulos.
Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus.
Levantando os olhos e vendo que uma grande multidão estava
vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que
eles possam comer?”
Disse isso para pô-lo à prova, pois ele mesmo sabia muito
bem o que ia fazer.
Filipe respondeu: “Nem duzentas moedas de prata bastariam
para dar um pedaço de pão a cada um”.
Um dos discípulos, André, o irmão de Simão Pedro,
disse: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o
que é isto para tanta gente?”
Jesus disse: “Fazei sentar as pessoas”. Havia muita relva
naquele lugar, e lá se sentaram, aproximadamente, cinco mil homens.
Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que
estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes.
Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos
discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca! Recolheram
os pedaços e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos
que haviam comido. Vendo o sinal que Jesus tinha realizado, aqueles homens
exclamavam: “Este é verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo”.
Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para
proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte.
“Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo
6,9)
Do pão de trigo ou cevada para o pão do sentido de vida
doada; do alimento de cada um para a circularidade do alimento partilhado, em
pequenos grupos, sem templo, na gratuidade e frugalidade...
Este é o sentido do texto joanino, proposto para este
domingo.
De todos os gestos realizados por Jesus, durante sua
atividade profética, o mais recordado pelas primeiras comunidades cristãs foi,
seguramente, uma refeição multitudinária, organizada por Ele no descampado, nas
proximidades do lago da Galiléia. É a única cena relatada em todos os
evangelhos.
O conteúdo do relato é de grande riqueza e cheio de
simbolismo. Seguindo seu costume, o evangelho de João não o chama “ milagre”,
mas “sinal”. Com isso nos convida a não ficarmos nos fatos externos que são
narrados, mas descobrir, a partir da fé, um sentido mais profundo.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma
multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um
processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O
congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído
pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão
que o segue.
Mas, enquanto a Páscoa no Templo favorece os controladores
dele, a Páscoa em torno de Jesus favorece e engrandece a todos.
Jesus ocupa o lugar central na cena; ninguém lhe pede que
intervenha. É Ele mesmo que olha, intui a fome daquela multidão e ativa a
necessidade de alimentá-la. Como alimentar tanta gente no meio do descampado?
Os discípulos não encontram nenhuma solução. Felipe diz que não se pode pensar
em comprar pão, pois não têm dinheiro. André sugere que se poderia partilhar o
que havia, mas só um menino tem cinco pães e dois peixes. Que é isso para uma
multidão?
Segundo João, enquanto Filipe justifica a impossibilidade de
solução, André procura uma alternativa e se depara com cinco pães de cevada e
dois peixinhos nas mãos de um menino. Filipe ocupa seu tempo e sua inteligência
em buscar justificativas para o impasse e desculpas para não ser
responsabilizado.
André, no entanto, encara a realidade e se ocupa na busca de
solução. Encontra um sinal. Há pão, é de cevada, não de trigo, é pouco, mas o
menino, pessoa que está começando a vida agora, coloca à disposição.
Naqueles vastos campos da Galiléia, Jesus propõe a
grande mesa da comunhão universal, a mesa “fora dos
templos” que inclui a todos, sem distinção. O gesto da benção instaura o
horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de
todos, por meio da coresponsabilidade dos participantes no banquete da Criação,
sobre cuja mesa Deus preparou pão em abundância para todos.
Todos acompanham com atenção os gestos de Jesus: coração em
ação de graças, olhos fixos, ao mesmo tempo, no pão, enquanto o parte, e na
multidão ao seu redor. Primeiro dá graças à Fonte da vida. Segundo, contempla o
pão, fruto da terra e do trabalho de muitos homens e mulheres, que deve ser
partido e compartilhado. Terceiro, convida a repartir e assegura-se de que a
distribuição é justa.
Jesus dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de
cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É
pouco, mas é dom de Deus, e dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada
tem alcance ilimitado. Nós, geralmente, só damos graças quando temos em
abundância, porque, a nosso ver, é a abundância que significa graça.
Depois da ação de graças, o pão se multiplica, tem
para todos, o quanto necessitam, e ainda sobra abundantemente. Quanto mais se
partilha, mais se tem. A fome desse momento foi saciada, mas a vida continua.
Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas devem proceder na relação
de umas com as outras.
A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente
empenho de cada pessoa e de todas juntas.
Jesus é o primeiro responsável, mas quer partilhar com os
seus. Isso exige a participação de todos.
A cena é fascinante: uma multidão dispersa, transformada
pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a
relva do campo, iguais, sem divisão em hierarquia e partilhando uma refeição
simples e gratuita. Não é um banquete de ricos; não há vinho nem carnes. É a
refeição frugal das pessoas que vivem junto ao lago: pão de cevada e peixe
defumado.
Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os
outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas
famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os
alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com
desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes”, por meio
de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas
de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que
distribuem...
O dinheiro continua hoje sendo a causa de toda desigualdade.
Tudo tem um preço, incluídos os “bens espirituais”. A gratuidade e a partilha
são gestos que estão desaparecendo de nossa sociedade.
Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à
lógica do mercado, focado na apropriação e na acumulação.
Só se fará efetiva a nova comunidade quando pães e peixes
entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos,
a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma
história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça
devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação fraterna e
universal. São dons para todos.
Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se
discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão
ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos como expressão das
entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar sua mesa. Todos
se sentem pessoas dignas e amadas.
Esta é a utopia do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos,
com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade
do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre si e com Deus,
sem exclusões, competições nem privilégios. A sensibilidade solidária de Jesus
situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora da
história.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: A oração é também questão de densidade de
vida, de humanismo, de ativar a sensibilidade para com aqueles que não têm quem
os defenda; é revelar que em nosso peito bate um coração de amor infinito,
capaz de vibrar e mobilizar-nos em favor dos outros. A oração implica entrar em
sintonia com o coração compassivo de Deus voltado para a miséria humana.
- Como seguidor(a) de Jesus, qual é a sua “lógica” diante do
contexto social de exclusão e de miséria? A do Reino ou a do mercado neo-liberal?
- A pobreza, a miséria, a fome... despertam em você uma
“santa indignação” ou uma acomodação doentia?
- Os gestos de partilha e solidariedade são um modo de
proceder contínuo em sua vida?
O poeta Grapiúna, GABRIEL NASCIF teve publicado
em 1980, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, o livro "O Sopro do Cachoeira", uma coleção de belíssimos poemas declarando seu grande amor
pela cidade natal, por pessoas, pela vida...
Apresentando o poeta, Haydée de Amorim inicia com a bela
frase: "Berço primeiro em terra Itabunense: 'Jaqueira' - rua beirando
'O Cachoeira', em certa ensolarada tarde de novembro..."
Depois de traçar o perfil do 'menino inquieto, sempre em
busca do desconhecido..., encerra assim: E de repente, “não mais que de repente”, a
eclosão dos seus versos na magnitude e dolência do SOPRO DO CACHOEIRA,
serpenteando como sua alma, ávida de emoções, numa busca eterna e
oceânica..."
Não é dado a qualquer pessoa exercer o duro ofício de
pescador de pérolas. As compleições fortes são capazes de resistir à pressão da
água e às agressões dos polvos, para descer até o fundo do mar e colher a
pérola alvíssima que procuram. Mas os organismos débeis se sentem asfixiados
quando se aprofundam um pouco nas águas verdes do oceano, e são forçados a
retroceder com as mãos vazias, para respirar a brisa amena e retornar a
pressões fracas, longe das quais são incapazes de viver.
Do mesmo modo, certas almas são capazes de se aprofundar nas
mais sérias cogitações, onde vão buscar a pérola inestimável da verdade.
Outras, porém, se sentem asfixiadas quando as ideias se tornam um pouco mais
densas, e retrocedem imediatamente, de mãos vazias, à banalidade estéril, único
ambiente que conseguem suportar.
O sacrifício que se requer [de nossa geração] não é o do
sangue; a morte não é o perigo supremo que se impõe ao moço de hoje enfrentar,
mas a própria vida. Não é mais o tempo de os crentes atestarem a sua fé pelo
testemunho sangrento do martírio. O que a Igreja pede aos seus fiéis é o
testemunho de uma vida exemplar, o sacrifício generoso de toda a nossa
personalidade à grande causa pela qual é mister lutar.
Esse sacrifício é o dos bens temporais; é o sacrifício do
tempo que se emprega no apostolado, quando poderia ser utilizado na caça ao
dinheiro; é o sacrifício das atitudes que se tomam para salvar as almas, com
prejuízo da reputação social, das mais caras relações de família ou de amizade,
das mais preciosas simpatias.
Sobretudo esse sacrifício é o da alma, que se purifica pela
prática da virtude, que se imola no sofrimento interior, que sobe
espontaneamente ao altar das mais dolorosas provas espirituais, com aquela
resolução magnânima com que os primeiros cristãos caminhavam para o martírio. O
mundo atual foi perdido pelo pecado, e só pela virtude se há de resgatá-lo. Aos
olhos de Deus, nada vale a mais útil das obras de apostolado, quando na alma o
apóstolo leva aquele mesmo espírito do mundo que procura combater por suas
ações.
____________
(Excertos do artigo de Plinio Corrêa de Oliveira no “O
Legionário”, nº 173, 9-6-1935)
Que o Pastor proteja suas ovelhas e não permita que elas
sejam devoradas pelo lobo…
Paulo Roberto Campos
María Victoria Olavarrieta, uma senhora católica cubana,
mandou uma muito importante carta ao Papa Francisco.
Em termos respeitosos, mas firmes, ela suplica que o
Pontífice — em vista dos recentes protestos em várias cidades de Cuba contra o
cruel regime fidelcastrista — rompa o silêncio e condene o comunismo cubano.
Ela pede também que condene a ditadura venezuelana e a
nicaraguense, que, assim como em Cuba, tiraniza suas populações, levando muitas
famílias a passar fome, muitos a fugir de seus países e causar numerosas
mortes.
Entre várias advertências, a Senhora María Victoria
Olavarrieta chama a atenção para fato de o Papa ser sempre muito loquaz em
questões de menor importância, como felicitando a Argentina pela vitória na
Copa América, ou condenar o fato de pessoas jogarem garrafas de plástico no
mar, mas não diz nada, por exemplo, de que, além de plástico, nas águas
marítimas de Cuba haver restos de muitos cadáveres de pessoas que morreram
afogadas na tentativa de escapar da tirania comunista na ilha-presídio
subjugada pelos irmãos Castro.
A seguir a gravação da comovente carta e, mais abaixo, seu
texto, publicado no “Diário Las Américas” (16 de julho de 2021), que,
esperamos, comova também o Papa e que, por fim, ele condene firmemente o
comunismo e o bolivarianismo que destroem nações irmãs na América Latina.
“Católicos cubanos, desde o início dos protestos em Cuba,
esperamos que levantem a voz. Dói muito que enquanto reprimem as pessoas que
saíram às ruas pedindo liberdade, você tenha palavras para felicitar o triunfo
da Argentina na Eurocup, fale sobre o lixo plástico nos mares e não tenha feito
uma oração pública pelos mortos, os detidos , os desaparecidos e todos aqueles
que estão assustados em suas casas em todo o nosso país.
Nos mares de Cuba, Santidade, além do plástico, estão os
restos mortais de muitos cubanos que se afogaram tentando escapar da grande
prisão em que os Castros transformaram meu país.
Nossa igreja foi perseguida, ameaçada, vigiada, invadida por
agentes de segurança do Estado. No momento temos um seminarista ausente, Rafael
Cruz Débora. Se os bispos cubanos têm medo de falar, de ficar ao lado do povo,
eu os entendo, não sabemos as ameaças que lhes são feitas, mas você, com a
imunidade que sua hierarquia lhe confere, pode falar, e nos defender.
Ontem, em Havana, tentaram recrutar um jovem que já havia
completado o serviço militar obrigatório, para treiná-lo para espancar os
manifestantes. Entraram em sua casa, o ameaçaram na frente dos pais e como o
menino recusou, fizeram-no assinar uma carta dizendo que não iria aonde a
revolução precisava dele e avisaram que quando tudo isso acontecesse ele iria
para a prisão.
Isso foi ontem, hoje eles estão sendo arrastados, sem pedir
nada. Pais com filhos em idade militar estão apavorados.
Você disse aos jovens: ... "Lute pelos seus sonhos, mas
sonhe grande, não pare de sonhar." Os jovens cubanos que nasceram na
ditadura, que foram doutrinados, educados em escolas ateístas, em uma sociedade
de partido único, que cresceram, alguns comendo e se vestindo com a ajuda de
suas famílias no exílio e outros na miséria absoluta, eles estão sonhando em
ver seu país livre. Você os convidou a sonhar e agora que estão sendo mortos
por gritarem seus sonhos, você fica em silêncio.
Você pediu a seus pastores para sentir o cheiro de ovelhas.
Dos padres cubanos que se aliaram abertamente ao povo, alguns estão sendo
espancados pela polícia, detidos e silenciados por seus bispos que temem por
suas vidas. E sobre o assédio do governo aos bispos, você, que é o Papa,
deveria saber mais do que eu.
Como dói, padre, as freiras e os padres cubanos com quem o
senhor pôde falar, que olhe para o outro lado. Hoje uma freira cubana me disse
que não poderia conceber que você não tivesse algumas palavras para Cuba neste
momento em que o mundo inteiro fala sobre os abusos do regime. E muito
baixinho, com a voz embargada de dor, quase como se falasse consigo mesma, ela
sussurrou: Algum dia ela terá que enfrentar o Senhor.
Santidade, conheces a mensagem da Virgem de Fátima. O comunismo deve ser muito ruim, pois entre todas as coisas ruins do mundo,
nossa Mãe queria deixar instruções de como poderíamos evitar que aquele mal se
espalhasse pelo mundo.
Você teve muitos estudantes venezuelanos e viu o sofrimento
de seus pais porque guardou silêncio quando os estudantes foram assassinados
nas ruas de Caracas, as pessoas passam fome na Venezuela e você não condena
publicamente os responsáveis.
O sangue corre na Nicarágua e o Papa fala de tudo, mas você
não tem opinião sobre os crimes dos ditadores dessas três irmãs tiranias.
Santo Padre, a cristandade não precisa de um líder social
nem de um diplomata, queremos um pastor, uma pedra firme onde a Igreja se possa
sustentar. O vigário de Cristo na terra não deve discriminar suas ovelhas. As
ovelhas vítimas dos regimes comunistas, nos sentimos como se fôssemos suas
ovelhas negras.
Pedes sempre que rezemos por ti, peço que rezemos e ajamos
para que não morram mais pessoas na Nicarágua, Venezuela e Cuba.
Eu gostaria de ter escrito em um tom diferente, em todos os
meus artigos onde sempre o menciono, sempre o mencionei. Mas hoje quero ser a
voz das mães cubanas, que veem seus filhos passarem fome, que não têm remédio,
quero apresentar a dor das avós cujos netos foram baleados gritando "Viva
Cristo Rei", a vergonha dos pais que não conseguem sustentar os filhos com
o fruto do trabalho e vivem mal esperando as remessas enviadas por seus
parentes do exterior.
Apresento a tortura dos presos políticos, o ódio de irmão
contra irmão que os Castros semearam, os idosos que viram partir e morrer a
família que criaram, sem nunca mais verem seus filhos e netos.
Clamamos aos céus que neste 13 de julho, enquanto nos
lembramos das crianças, mulheres, homens que se afogaram no rebocador "13
de março" que o governo cubano afundou em alto mar, tínhamos que curar,
sem ter o quê, as feridas que a polícia e seus cães causaram aos pacíficos
manifestantes em muitas cidades de Cuba.
Nós, cubanos, nos sentimos abandonados à nossa sorte, em 62
anos não fomos capazes de nos libertar. Hoje eles enfrentam um exército armado,
sem líderes e até agora, órfãos do Papa.
Papa Francisco, perdoe-me se o ofendo, mas tive que escolher
entre a respeitosa aquiescência devida a um bispo e a defesa das vítimas do
comunismo. Lamento saber que você é um papa comunista. O comunismo destrói a
moral dos povos, sua religião, sua esperança.
Ontem em Miami, 4 Filhas da Caridade saíram para protestar
nas ruas, junto com as pessoas, algumas delas idosas. Irmã Consuelo, do México
e Irmã Elvira, Irmã Reinelda e Irmã Rafaela, cubana. Entre as pessoas eu ouvi
dizer: Sem feno Papa, mas tem freiras. Cristo está conosco!
Luís de Camões cantou um pequeno Portugal de marinheiros com
seus feitos maravilhosos por mares nunca dantes navegados. É considerado o
poeta mais abrangente e expressivo da lusitanidade, voz poderosa do humanismo
renascentista que transformou a obra-prima Os Lusíadas (2003, no Brasil) em
monumento de imaginação e arte nas letras mundiais. Fernando Pessoa é um dos
fundadores da modernidade literária portuguesa, criador de uma obra poética de
dimensões universais como um caso genial, que dá vida a personagens de
qualidades poéticas de alto nível. Cada uma delas com a sua biografia própria,
ideias próprias, maneira própria de fazer poesia, a simular pensamento e
sentimento diante de tudo, ligar o eu ao externo no enigma do existir.
Nascido em Lisboa a 13 de junho de 1888 e falecido a 30 de
novembro de 1935, com uma obra poética que superou como nunca se tinha visto em
tempos modernos as fronteiras estreitas de Portugal, Fernando Pessoa, em sua
feição instigante de poeta singular e plural, tornou-se o mais famoso dos
poetas da língua portuguesa. “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”, o poeta
disse, ganhando dimensões admiráveis cada vez mais toda a extensão desse dizer,
como resultado de uma poesia calcada em dois elementos de natureza fortíssima,
a imagística de seu lirismo e o visionarismo mítico de seu pensamento.
Poetas revisitam Pessoa (2003) é a antologia que o professor
João Alves das Neves organizou para homenagear Fernando Pessoa. Nela reúne
cinquenta poetas, entre portugueses e brasileiros, que escreveram poesia
inspirada no poeta e em seus famosos heterônimos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos. Entre os poetas de Portugal que participam da antologia
foram relacionados Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Miguel Torga,
Natália Correia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Teresa Rita Lopes e Vasco
Graça Moura. Do lado brasileiro foram elencados, dentre outros, Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Mário Chamie, Alberto da
Costa e Silva, Álvaro Alves de Faria, Ariano Suassuna, Carlos Felipe Moisés,
Cyro de Mattos, Eduardo Alves da Costa, Glauco Matoso, Miguel Jorge e Neide
Archanjo.
Além da homenagem que é prestada ao imenso poeta, que se
sentiu um transeunte inútil, estrangeiro no cotidiano de Lisboa, a “errar em
salas de recordações”, essa antologia traz um conjunto harmonioso de notas
afetiva e intelectual, nacional e universal, que ressoam como descobertas
preciosas no próprio Fernando Pessoa, autor de poemas breves e leves, sonoras
canções e versos “ocultistas”.
Da singularidade de uma poesia fingida, produzida por eus
fictícios, a antologia sinaliza em Alberto Caeiro, o poeta materialista, esses
estados do ver e do conhecer relacionados com a realidade imediata através de
sentimentos inocentes. Externa em Ricardo Reis o timbre de uma poesia clássica,
que tem como modelo Horácio, antigo poeta romano. Confere em Álvaro de Campos
aquele poeta impressionado com o mundo tecnológico, anunciador de ventos
velozes, por meio da máquina construtora dos tempos modernos, após a Primeira
Guerra Mundial.
Em Poetas revisitam Pessoa, lendo-se Agostinho da Silva, por
exemplo, fica-se sabendo dessas reflexões de Alberto Caeiro:
Ser só um elo/ eu
ao que é tudo / mas que sem mim / seria mudo (p. 19). Sente-se em Alberto da
Costa e Silva que o eterno é agora e em si mesmo morre (p. 21). Em Carlos
Drummond de Andrade percebe-se que por mais que se busquem as identidades do
poeta essas são difíceis de serem achadas. Afinal, quem é quem na maranha /de
fingimento que mal finge / e vai tecendo com fios de astúcia / personas mil na
vaga estrutura / de um frágil Pessoa? (p. 40). Nos desejos de saber por entre
versos que tocam as cordas íntimas da angústia, solidão no mundo, Carlos
Drummond de Andrade prefere ignorar esse enigma com seus diversos eus
independentes, expostos, oblíquos em véu de garoa. Encontra-se ainda em Miguel
Torga o poeta de Mensagem como o vidente filho universal / dum futuro-presente
Portugal,/ outra vez trovador e argonauta (p. 88).
Assim temos uma antologia que diz da singularidade dos
sentimentos de Fernando Pessoa e sua multiplicidade pensante de eus fictícios,
criados como fingimento pelo poeta para conhecer-se e conhecer o outro na leitura do mundo. Com os poetas
Adolfo Casais Monteiro, Glauco Matoso, Mário Chamie, Murilo Mendes, Natália
Correa, Sophia de Mello Breyner Andresen e Vasco Graça Moura, o poeta buscador
sem pátria do “outro” que somos e nos habita é tocado de afinidades eletivas,
apresentando-se de novo com a necessidade de multiplicar-se para sentir-se.
Para que fosse possível essa multiplicidade tão dele,
sabe-se que construiu uma obra poética a partir de relação sensitiva e imediata
com o ver, desenvolvida por atividade criadora maiúscula em que precisou
refletir tudo, sustentar todo o peso terrestre através de seus males e
mistérios. Entre a ilusão do ver e da lúcida consciência do saber, nesse
conflito diante do mundo, fez-se um dos maiores fingidores de gente que já
apareceu na existência através dos sinais marcantes e simbólicos da poesia. De
maneira genial. Foi urdida uma idealização da realidade multifacetada para
alcançar o sonho composto de humanidade tão dele, tecida, nas profundezas da
alma e labirintos do cérebro, com temas vários questionadores da existência.
O conhecimento e a compreensão de poetas portugueses e
brasileiros nessa antologia para homenagear Fernando Pessoa expressam as mais
diversas realidades e situações de um poeta incomum com o seu caso
heteronímico. Limita-se o elogio a uma convivência de pensamento nos círculos
da boa poesia, de argumentos cúmplices relacionados com o voo altíssimo de
sentimento do belo na poesia da vida, retomado agora sob uma ótica própria, bem
pessoal.
Trata-se de antologia que, nas reflexões, lembranças,
sonhos, labirintos, amores e dores, resulta em testemunho importante desse
poeta que até hoje desafia a crítica, apaixona intelectuais e leitores.
Ele, o genial poeta português, que com Alberto Caeiro
confessou:
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka,
Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas”, Cyro de Mattos, EDUEM – Editora
da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, no prelo.
Poetas revisitam Pessoa, antologia de poetas portugueses e
brasileiros, organização João Alves das Neves, Universitária Editora, Lisboa, 2003.
................. Cyro de Mattos - Escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
Marcos.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, os apóstolos reuniram-se com Jesus e
contaram tudo o que haviam feito e ensinado.
Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto e
descansai um pouco”. Havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não
tinham tempo nem para comer.
Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e
afastado. Muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de
todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles.
Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve
compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes
muitas coisas.
“Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão
(...)começou a ensinar-lhes muitas coisas”
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha
enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para
descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância,
conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um
espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a
pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não
eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de
Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com
pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas,
porque “andava como ovelhas sem pastor”, com fome, oprimida pelos
impostos, desconcertada diante do presente e com medo difuso diante do futuro
ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes longamente, muitas coisas,
de tal maneira que as horas foram passando sem se darem conta.
Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma
relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos
somos feitos para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa
existência e nos transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de
estabelecer relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e
com toda a criação.
O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um
encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas,
revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se
de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em rituais
frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana, onde a
interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca
da “compaixão”.
Um dos sintomas de desumanização, que está revelando
seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que
os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos
outros..., ou seja, incapacitar-nos para a compaixão.
A compaixão está cada vez mais ausente da esfera
pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que
sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos
desafios atuais.
Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma
forma sutil de “a-patia”. Aqui a compaixão se quebra com
excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em “sem-paixão”. Com
isso, nos nossas relações se desumanizam.
Tal “sem-compaixão” é uma enfermidade social, um
problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as
pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz
parte do seu “gueto”.
Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa
capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração
frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder “não há
nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer
implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...
Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos
indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão
rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem
pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A “privatização da vida”, a sensação de impotência
diante das tragédias, a distância midiática (informação fria da realidade que
não nos afeta e não desperta nossa paixão), a distância física, a
não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os eletrônicos povoam
nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos outros), a falta de
motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou encher-me de inquietação?),
a dificuldade para compreender a diferença (transitamos nos círculos de iguais
ou semelhantes, compartilhamos gostos, modas, inquietudes, status, temos
problemas comuns e metas similares, usamos produtos parecidos, lemos os mesmos
livros e vemos os mesmos filmes), etc...
Quem olha para as manchetes de notícias, as escolhas e
comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que a compaixão está
perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais nobre. Afinal,
produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se “pobres” de atitudes
compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo; Jesus
não passa “friamente” por nada. Ele não passa indiferente ao lado da
fome, da doença, da exclusão, da morte..., não passa friamente ao lado das
multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está
sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que deixa
transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e
miséria.
E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se
em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu coração.
Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade,
compaixão, empatia, ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus.
Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi “comovido
até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”; trata-se
de sentimento eminentemente humano.
Até podemos fazer referência origem etimológica da
palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o apelo ao vocábulo latino
“cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo. Para “compaixão” é
preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às disposições
maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão” e “útero”
são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a,
protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas
“ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com expressões de amor
fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova
vida.
Num mundo em que o anonimato impera e uma falta de
compromisso com o outro parece predominar, é preciso ativar a compaixão, que
começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juizos,
ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas
preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar
logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas
histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão permite que do coração humano
brote a “ex-centricidade”.
A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação
do “amor próprio, querer e interesse”; mas a pulsão solidária e
compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na
fornalha que purifica a insaciável auto-afirmação e interesses que todos temos,
e vai gestando, pouco a pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio
despótico do “ego”.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: Ser compassivo implica buscar e
ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual,
dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em
sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram
miséria, dor e exclusão.
- Compaixão ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se
manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?