Domingo Azul da Infância
Cyro de Mattos
Convencido de ser herói que desfruta na
infância a mais pura glória, ele sabe que a mentira ontem alimentava o pequeno
coração como verdade, totalmente honesta quando os gestos inauguram a vida
feita de impulsos e asneiras. Cada amanhecer acena ao menino com tudo que é
posto no rio para que seja conquistado e alimente líquidos segredos da natureza
em transformação, enquanto dure a aventura das estações, a brotar dos verdes e
certamente a desaparecer na queda dos maduros.
A
cidade pequena vive sua infância tropeçando nas ruas enlameadas quando é
chegado o tempo de chuva pesada. Lateja nas veias a vontade visível de como ela
quer crescer através do trabalho de seu povo. Move-se pela riqueza de poucos
abastados e o esforço da maioria pobre, mas sem miséria. É evidente que se
mostra como uma cidade ainda acanhada nos gestos e nas coisas. Há pouco
movimento de carro na rua, os primeiros sobrados começam a ser erguidos no
local onde moram as famílias ricas. Essa cidade caminha nos dias atribulados
sem hesitar nos passos incansáveis, tornozelos e pulsos no esforço dos que
levantam coisas pesadas.
Mãos rústicas arrumam maxixes, quiabos e pimentões sobre a tábua rústica da
mesa armada perto do ponto de ônibus. O verdureiro carrega o tabuleiro na
cabeça mercando pelas ruas couve, alface e coentro, alardeando o verde na
semana, feito de verduras e legumes. Por onde passa, segue com a voz que não
para, entoa uma música com notas vagarosas, quentes, que agrada a quem escuta.
Merca seu produto batido pelos raios de sol, enquanto o verão aquece todas as
coisas através do seu brilho trazido do infinito e que se reflete pelas pedras
irregulares das ruas estreitas.
Entra e sai verão, o sol atira seus raios como flechas luminosas sobre todos os
cantos da cidade. No inverno o aguaceiro bate no dorso do rio, escorrendo pelas
valetas, deixando com lama as ruas sem calçamento. No tempo de estio, a
cidade esbanja ardor debaixo dos azuis do céu e por entre os verdes que gramam
os barrancos do rio. Podia haver dia melhor para tomar banho com os amigos nas
águas do Poço da Pedra do Gelo? O rosto agitado, os gritos rasgando fendas no
silêncio da natureza. Era quando mais sorria. Isso acontecia quando o rio,
pleno de inocências e purezas, tinha peixe em abundância.
Ah, a vida era compreendida com suas marcas
ardorosa no verão, aconchegantes no sono quando o inverno chegava com suas
toalhas esvoaçantes e envolvia na manhã fria a paisagem escondida no fumo das
horas.
------------
Cyro de Mattos - Escritor e poeta. Premiado no Brasil,
Portugal, Itália e México. Publicado nos Estados Unidos, Dinamarca, Rússia,
Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. Membro efetivo das Academias de
Letras da Bahia, de Ilhéus e Itabuna.
Doutor Honoris Causa da UESC.
* * *