O Papa João XXIII celebra Missa Solene na Basílica de
São Pedro, no início dos anos 60
Luiz Sérgio Solimeo
No voo de volta a Roma após sua viagem ao Chipre e à Grécia,
em 6 de dezembro passado, respondendo a uma pergunta de jornalistas sobre a
renúncia do arcebispo de Paris, Dom Michel Aupetit, o Papa Francisco explicou:
“Eu aceitei a renúncia de Aupetit, não sobre o altar da
verdade, mas sobre o altar da hipocrisia. Era isto que eu queria dizer.”1
O Papa parece ter tomado a mesma atitude em relação à
liturgia tradicional da Igreja. De fato, apesar dos flagrantes absurdos
litúrgicos vistos nas celebrações do novo rito imposto à Igreja em 1969, tanto
ele quanto o Arcebispo Arthur Roche — o primeiro com o ‘Motu Proprio’ Traditiones
Custodes e o segundo com a Responsa ad dubia — restringiram
drasticamente a celebração da Missa tradicional.2
As razões dadas para tais medidas se resumem em “restaurar a
unidade litúrgica” e impor a aceitação das doutrinas do Concílio Vaticano II.
Abandono do “Altar da Verdade”
Ao deixar de reconhecer que a divisão entre os fiéis em
relação à liturgia se deu precisamente por causa da renúncia ao rito de
tradição apostólica e da imposição de um novo rito romano da Missa, sob a égide
do Concílio, abandonou-se “o altar da verdade”.
Antes dessa mudança, um católico podia viajar para quase
qualquer lugar do mundo e assistir à mesma Missa, na mesma língua universal da
Igreja, com as mesmas orações, paramentos e, sobretudo, com recolhimento.
O Papa Paulo VI celebra missa no Ritus Modernus
imposto por ele. A “venerável tradição secular” do rito litúrgico da tradição
apostólica estava abolida.
‘Ritus Modernus’ substitui ‘Ritus Romanus’
O liturgista alemão Monsenhor Klaus Gamber prefere
referir-se ao rito tradicional da Missa como Ritus Romanus, e chama
o novo rito do Papa Paulo VI de Ritus Modernus. Ele explica que é
impreciso e até incorreto chamar o rito romano tradicional de “Missa de São Pio
V” ou “Missa tridentina”. Escreve ele: “No sentido estrito, não há
‘Missa Tridentina’, pois, pelo menos na conclusão do Concílio de Trento, não
houve criação de um novo ordinário da Missa; e o ‘Missal de São Pio V’ nada
mais é do que o Missal da Cúria Romana, que havia visto a luz em Roma séculos
antes.”3
Paulo VI anuncia um “novo rito” da Missa
Em seu discurso de 26 de novembro de 1969, anunciando a
entrada em vigor na Itália (e, mais tarde, no mundo inteiro) da “Nova Missa”, o
Papa Paulo VI deixou claro que essa “novidade litúrgica” não
consistia em modificações litúrgicas superficiais, mas em uma mudança completa
no rito da Missa, à qual ele se referiu repetidamente com expressões como o
“novo rito da Missa,” ou simplesmente o “novo rito”:
“Mais uma vez queremos convidar suas almas a se voltarem
para a novidade litúrgica do novo rito da Missa,
que será estabelecido em nossas celebrações do Santo Sacrifício, a partir do
próximo domingo, primeiro domingo do Advento, 30 de novembro.” 4
Rompendo com a tradição da Igreja
Paulo VI reconhecia que, ao impor o seu “novo rito”, estava
rompendo com a tradição litúrgica da Igreja:
“Novo rito da Missa: é uma mudança em uma venerável
tradição secular e por isso toca no nosso patrimônio religioso
hereditário, que parecia ter de gozar de uma fixidez intangível e
dever trazer aos nossos lábios a oração de nossos antepassados e
nossos santos e nos dar o conforto de uma fidelidade ao
nosso passado espiritual, que tornamos atual para transmiti-lo às
gerações futuras. Compreendemos melhor nesta contingência o valor da
tradição histórica e da comunhão dos santos.”
Gravidade da ruptura
Essas afirmações de Paulo VI são tanto mais graves quanto o
Rito Romano (a “Missa Tridentina”) é de tradição apostólica.
Agora, romper com a tradição apostólica acarreta problemas teológicos
extremamente graves.
Mons. Klaus Gamber escreve: “Os papas observaram
repetidamente que o rito [da Missa] é fundado na tradição apostólica”.
Em nota, ele cita cartas dos papas Santo Inocêncio I (402-417) e Vigílio
(538-555), que fazem essa afirmação. E continua comentando as opiniões de
grandes teólogos do passado, como o Cardeal Caetano (+1534) e Suárez (+1617),
de que “um papa seria cismático ‘[…] se ele mudasse
todos os ritos litúrgicos da da
Igreja que foram confirmados pela tradição apostólica’.” 5
Monges cantando gregoriano
(Iluminura medieval) – Girolamo da Milano chamado Maestro Olivetano, séc. XV.
Sacrificando o latim, o canto gregoriano e outros
tesouros
Tudo na Missa agora será diferente, acrescenta Paulo VI:
“Esta mudança toca na conduta cerimonial da missa; e
notaremos, talvez com algum desconforto, que as coisas no altar não
acontecem mais com aquela identidade de palavras e gestos a que
estávamos tão acostumados, que quase não prestávamos mais atenção neles.”
Paulo VI tinha bem ciência de que estava sacrificando o
latim, essa insubstituível “língua angélica” e outros
preciosos valores espirituais da Igreja:
“Aqui, é claro, será sentida a maior novidade: a da
língua. O latim não será mais a língua principal da missa, mas a língua falada.
Para quem conhece a beleza, o poder, a expressiva sacralidade do latim,
certamente a substituição pela língua vulgar é um grande sacrifício: perdemos
a linguagem dos séculos cristãos, nos tornamos quase intrusos e profanos no
recinto literário da expressão sagrada, e assim perderemos grande parte desse
maravilhoso e incomparável fato artístico e espiritual, que é o canto
gregoriano.” E prossegue:
“Temos, de fato, motivos para lamentar, quase nos
sentirmos perdidos. O que podemos colocar no lugar dessa língua
angélica? Estamos abrindo mão de algo de valor inestimável.”
Resposta humana banal e prosaica
O Pontífice faz esta pergunta óbvia:
“E por que razão? Que coisa vale mais do que esses
altíssimos valores da nossa Igreja?”
E responde:
“A resposta parece banal e prosaica, mas é válida, porque
é humana, porque é apostólica. O entendimento da oração vale mais do que as
roupas sedosas e vetustas com as quais ela foi regiamente vestida; a
participação do povo vale mais, deste povo moderno saturado de palavras claras
e inteligíveis, traduzíveis em sua conversa profana. Se a divina língua latina
mantivesse a infância, a juventude, o mundo do trabalho e dos negócios
segregados de nós, se ela fosse um diafragma opaco em vez de um cristal
transparente, nós, os pescadores de almas, faríamos bem em preservar para ela o
domínio exclusivo da oração e da conversação religiosa?”
Valeu a pena?
Passado
meio século, cabe perguntar: valeu a pena?
O “grande sacrifício” de abandonar “a
divina língua latina” e substituí-la pela “língua usada na
conversa profana” aproximou da Igreja as crianças, os jovens, “o
mundo do trabalho e dos negócios”?
Não. Aconteceu o contrário: as igrejas esvaziaram-se e
poucos católicos agora vão à missa.
As igrejas que se enchem aos domingos e dias santos de
guarda são precisamente aquelas onde se celebra a Missa segundo o Vetus
Ordo, em latim, e ressoa o canto gregoriano.
Na realidade, foram a banalidade e o prosaismo introduzidos
por Paulo VI na celebração da Missa que, em grande parte, afastaram os fiéis.
Conclui-se a obra demolidora iniciada por Paulo VI?
Em seu motu proprio Traditionis Custodes, de 16
de julho de 2021, e sua carta explicativa aos bispos, o Papa Francisco
restringiu brutalmente e o máximo possível (com vistas a extinguir) a
celebração da Santa Missa no rito tradicional, embora este seja de origem apostólica,
como vimos.
A Responsa ad dubia da Congregação para o
Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, assinada pelo Arcebispo Arthur
Roche em 4 de dezembro de 2021, endureceu ainda mais as disposições já
draconianas do Motu Proprio Traditionis Custodes.
Ao travar sua guerra total contra a liturgia tradicional da
Missa, para destruir este monumento da piedade cristã, o Papa Francisco está
completando o trabalho de autodemolição da “venerável tradição
secular” do rito litúrgico da tradição apostólica.
Apelos foram inúteis
Na época, a notícia do abandono da liturgia tradicional
latina teve um impacto profundo não apenas nos católicos praticantes, mas
também nos não-católicos.
Em 1971, cinquenta intelectuais e artistas, entre católicos,
não-católicos e até judeus, enviaram ao Papa Paulo VI e tornaram público um
apelo implorando a manutenção da liturgia tradicional, como patrimônio da
humanidade.
Entre outras coisas, a Declaração de Acadêmicos,
Intelectuais e Artistas Vivendo na Inglaterra dizia:
“Se algum decreto sem sentido ordenasse a destruição
total ou parcial de basílicas ou catedrais, então obviamente seriam as pessoas
cultas — quaisquer que fossem suas crenças pessoais — que se levantariam
horrorizadas para se opor a tal possibilidade.
“Ora, o fato é que as basílicas e as catedrais foram
construídas para celebrar um rito que, até poucos meses atrás, constituía uma
tradição viva. Estamos nos referindo à Missa Católica Romana. No entanto, de
acordo com as últimas informações em Roma, há um plano para fazer desaparecer
essa Missa até o final do ano em curso…
“Não estamos neste momento considerando a experiência
religiosa ou espiritual de milhões de indivíduos. O rito em questão, em seu
magnífico texto latino, também inspirou uma série de realizações inestimáveis
nas artes — não apenas obras místicas, mas obras de poetas, filósofos,
músicos, arquitetos, pintores e escultores em todos os países e épocas. Assim,
pertence à cultura universal, bem como aos clérigos e cristãos formais.”6
Apelo dos cardeais
Ainda mais críticos do que esse apelo de intelectuais e
artistas, que entenderam bem o vínculo entre beleza e verdade, são os trabalhos
de teólogos, padres e leigos que mostram como a nova Missa se afastou do
Concílio de Trento e se aproximou do protestantismo.
Em junho de 1969, os cardeais Alfredo Ottaviani e Antonio
Bacci enviaram ao Papa Paulo VI uma carta de apresentação de um estudo
intitulado Breve exame crítico do Novus Ordo Missae. Sua
carta contém esta afirmação muito séria:
“O Novo Ordinário representa, tanto em seu todo como nos
detalhes, uma nova orientação teológica da Missa, diferente daquela que foi
formulada na Sessão XXII do Concílio de Trento. Os ‘Canons’ do rito,
definitivamente fixados naquele tempo, proporcionavam uma intransponível
barreira contra qualquer heresia dirigida contra a integridade do Mistério”.7
Exemplo da falta de sacralidade da missa no “novo rito”: na
paróquia da Natividade de Maria, em Aschaffenburg, Alemanha, no passado dia 3
de outubro. O pároco Markus Krauth celebrava oficialmente o Erntedankfest
alemão, a festa anual de ação de graças a Deus pela colheita. Mas decidiu
comemorá-la como Erdedankfest, substituindo a palavra “colheita” (Ernte) pela
palavra “terra” (Erde). O altar foi simbolicamente um monte de terra…
Missa sem sacralidade
O novo rito perdeu aquela sacralidade e mistério que o latim
lhe dava, a reverência do sacerdote diante de Deus no altar, rezando em voz
baixa, como se aniquilado diante da grandeza de servir como instrumento de Nosso
Senhor Jesus Cristo para consagrar e imolar a Vítima divina em forma
sacramental, renovando assim o Sacrifício do Calvário.
No “novo rito” de Paulo VI, a Missa tornou-se uma tagarelice
contínua, um diálogo constante e banal entre o celebrante e a assembleia,
sugerindo que os fiéis concelebram com o sacerdote. Ele põe tanta ênfase na
assembleia, que o Pe. Joseph de Sainte-Marie, O.C.D., observou que “ao
absolutizar esse aspecto comunitário”, a nova Missa “levou ao
antropocentrismo, [com] a assembleia celebrando-se a si mesma”.8
Não é de admirar, então, que tenha havido tantas aberrações
e absurdos na celebração da Missa de acordo com o Novus Ordo
Missae ao longo desses cinquenta anos.
____________
Notas:
- Viagem
Apostólica do Papa Francisco ao Chipre e à Grécia (2-6 de dezembro de
2021). Coletiva de Imprensa durante o voo de retorno a Roma
(6-12-21). https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2021/december/documents/20211206-grecia-volodiritorno.html. Acessado em 27-12-21.
- Ver:
Lettera Apostolica in forma di Motu «Proprio» del Sommo Pontefice
Francesco «Traditionis Custodes» Sull’uso della Liturgia Romana anteriore
alla Riforma del 1970. (16-7-21). https://www.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/20210716-motu-proprio-traditionis-custodes.html; Lettera del Santo Padre
Francesco ai Vescovi di tutto il Mondo per presentare il Motu Proprio
«Traditionis Custodes» Sull’uso Della Liturgia
RomanaAnteriore Alla Riforma Del 1970. Roma, 16-7-21; Congregazione per il
Culto Divino e la Disciplina dei Sacramenti. Responsa Ad Dubia su alcune
disposizioni della Lettera Apostolica in forma di «Motu Proprio»Traditionis
Custodes del
Sommo PonteficeFrancesco ai Presidenti delle Conferenze dei Vescovi. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/rc_con_ccdds_doc_20211204_responsa-ad-dubia-tradizionis-custodes_it.html. Acessados em 27-12-21.
- Monsenhor
Klaus Gamber, The Reform of the Roman Liturgy: Its problems and
Background, (San Juan Capistrano, Califórnia: Una Voce Press;
Harrison, N.Y.: The Foundation for Catholic Reform, 1993), p. 23.
- Paolo
VI. Udienza Generale. Mercoledì, 26 novembre 1969. “Effusione degli animi
nella Assemblea Comunitaria, ricchezza del nuovo rito della Santa
Messa”. https://www.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1969/documents/hf_p-vi_aud_19691126.html, acessado em 22-12-21
(Tradução nossa).
- Monsenhor
Klaus Gamber, op. cit., pp. 34-36 (grifo nosso), e nota 26. Ver também
Arnaldo Xavier da Silveira, Theological and Moral Implication of
the “Novus Ordo Missae”, (Cleveland, Ohio: Lumem Mariae Publications),
p. 258ss.
- “1971
Statement by Scholars, Intellectuals, and Artists Living in
England,” https://web.archive.org/web/20161020002716/http:/www.institute-christ-king.org/uploads/main/pdf/england– statement.pdf, acessado em
29-12-21.
- Carta
dos Cardeais Ottaviani e Bacci à Sua Santidade Papa Paulo VI. Roma, 25 de
setembro, 1969. https://pelafecatolica.com/2016/05/25/breve-exame-carta-cardeais-ottaviani-bacci/ (grifo nosso),
acessado em 12-01-22. O fato, sobre o qual há muita confusão, de que o
Cardeal Ottaviani tenha retirado seu nome dessa iniciativa não altera a
veracidade da afirmação. A crítica é comprovada pelo estudo que os
Cardeais encaminharam, e também por publicações de inúmeros autores como,
por exemplo, a de Arnaldo Xavier da Silveira, citada acima.
- P.
Joseph de Sainte-Marie, O.C.D., L’Eucharistie Salut du Monde, Ed.
Dominique Martin Morin (Paris: Les Éditions du Cèdre, 1982), p. 134.
(Tradução nossa).
https://www.abim.inf.br/a-liturgia-no-altar-da-hipocrisia/
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