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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

LEMBRANÇAS DOS MEUS AVÓS PATERNOS – Eglê S Machado

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Lembranças dos meus avós paternos

Ou:  “Oh! Que saudade que tenho da aurora da minha vida...” *
             Emocionantes! São minhas lembranças relacionadas aos meus avós paternos José Pedro e Hercília Melgaço, essas duas criaturas que me tocaram o coração, e levam-me a sentir como se ainda hoje estivesse vivendo  o passado, anos atrás.
             Ela, a ternura em pessoa, abençoava os netos um a um, quando entrávamos na sua casa sempre asseada e aconchegante, todos nós carregando feixes de lenha para abastecer sua cozinha. Ele, olhar sério e firme, mas demonstrando muita bondade e paz. Éramos oito netos, às vezes mais um ou dois amiguinhos que iam conosco. A diferença de idade era sempre entre 1 a 2 anos de um para outro.
             Passávamos por um pequeno corredor entre a sala de visitas e a copa (chamada sala de janta). No meio desse corredor um quarto sempre aberto porque não havia uma porta para fechá-lo, onde o vovô ficava deitado ou sentado na cama. Um por um, entrávamos na sala de visitas que era mantida aberta o dia todo, passávamos pelo tal corredor  em fila indiana forçada porque o espaço era bem estreito, dávamos uma leve  paradinha em frente do quarto, saudávamos  o vovô dizendo: bença vovô?  Ele respondia: çoe!... Um por um: Bença vovô? – çoe!... Bença vovô? – çoe!... Bença vovô? –Çoe!...
             Chegávamos à sala de jantar e logo adentrávamos a cozinha: Bença vovó? – Deus abençoe!... Um por um: Bença vovó? – Deus abençoe!... Bença vovó? - Deus abençoe!...
            A vovó Hercília sorria para nós, terna e carinhosamente. Inesquecíveis aqueles cabelos branquinhos, o vestido de fustão justo na cintura,  com a saia franzida... Tão limpinho... Justamente o oposto das nossas vestes cheias de nódoas de bananas e amarrotadas por causa das nossas estripulias.
            No grande fogão a lenha o café fumegava perfumado, seu feijão  tinha um aroma sem igual.            
            Passávamos da cozinha para uma pequena área e ali  jogávamos os feixes de lenha ( bráááááh), no  canto da parede abaixo de uma janela que trazia iluminação solar  para  a sala de refeições e para o corredor; essa parede era toda descascada e esburacada de tanto receber lenha. Nessa mesma área, mais perto do degrau que descia para o quintal havia um banquinho baixo onde o vovô sentava-se quando não estava no quarto. Aí ele tocava sua viola, interrompendo apenas quando a vovó lhe servia uma fumegante xícara de café. Eu sempre ficava impressionada com o vovô Zé Pedro por dois fatos infalíveis: se estava tomando café, ao final emborcava a xícara no pires; se tocava viola, era sempre a mesma canção formada por nove notas, repetindo-as sempre no mesmo tom. Sua música não tinha letra, não tinha fim... Nunca o ouvi cantar, só tocar... Tocar... Tocar... O vovô falava tão pouco com a gente!... Mas tocava viola e para mim até hoje sua voz era o som da viola.
            Também me impressionavam as camisas do vovô: tecido claro listradinho, com gola de padre, todas parecidas.
            Vovô José Pedro e vovó Hercília moraram por alguns anos, na Fazenda Poço Fundo que era administrada pelo papai; acho que de três a quatro anos. À época eu teria talvez sete ou oito anos e já observava  tratar-se de um acordo, uma espécie de rodízio entre papai e seus irmãos que também administravam fazendas; os vovós ficavam por um tempo com um dos filhos, iam para outro, até completar  a estadia com os oito filhos. Aí começava tudo de novo. E eles, os vovós eram felizes. E eles nos faziam felizes!
             Era uma festa quando os irmãos se reuniam em casa de um deles. Reuniam-se sempre na mesma fazenda em que vovó e vovô se encontravam.  Era fascinante vê-los chegando pouco a pouco, como heróis nas suas elegantes e  lustrosas montarias. Trajavam uma vestimenta para montaria que se chamava “culote”, botas e chapéus de qualidade. Acompanhava-os suas esposas e um ou dois dos filhos mais velhos. Era uma felicidade para os vovós e uma grande farra para as crianças. Após o jantar cujo prato principal era sempre galinha ao molho pardo, ou pato, se recolhia os pratos e a toalha da mesa e  seguiam as conversas e risadas animadas até altas horas. Até a hora de irem para a cama, as crianças participavam de tudo, sentadas no chão da grande sala, quietas e admiradas da sabedoria dos adultos. As visitas duravam quase sempre da sexta feira até o amanhecer da segunda feira.
            E eles partiam  deixando nos corações aquela saudade feliz. Antes da partida já se planejava para quando e onde seria o próximo encontro. Ao se despedirem os tios ofereciam algumas moedas para as crianças, as tias afagavam-lhes os cabelos. Tios e tias, um por um tomavam-lhes a mão direita, as abençoavam e delas se despediam com grande afeto.
            Voltava-se à normalidade,  se é que se pode chamar de normal a vida maravilhosa e sempre cheia de  novidades sem fim que se levava na fazenda, à atenção responsável dos nossos pais e, principalmente à terna benevolência de vovô José Pedro e vovó Hercília, a luta dos dois para  serem felizes e praticarem esta arte a cada dia. Ao recordá-los, após tantos anos revivo emocionada a companhia doce e fortalecedora dos meus avós e os classifico como “os raros santos da terra, que até hoje me levam a cultivar a felicidade, a despeito dos contratempos da vida”.

Eglê S Machado
Academia Grapiúna de Letras-AGRAL


*Casimiro de Abreu

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JOÃO UBALDO RIBEIRO: UMA REFERÊNCIA – Sione Porto

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João Ubaldo Ribeiro: Uma referência

Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos. (Trecho do discurso de posse na Academia Baiana de Letras).
À exceção de Nélson Rodrigues, Fernando Sabino e Millôr Fernandes, o escritor e jornalista João Ubaldo Ribeiro foi um dos maiores cronistas, crítico/sátiro, da literatura brasileira.
Não queria ser lembrado com um mito, e sim companheiro de pessoas comuns e humildes, a exemplo dos velhos conhecidos com que se encontrava nas manhãs ensolaradas e nas tardes amenas na Ilha de Itaparica, Bahia, onde nasceu em 23 de janeiro de 1941, local em que se refugiava nas férias de janeiro e ali escreveu boa parte de uma das mais importantes obras: Viva o povo brasileiro (1984), considerada obra máxima, um clássico da literatura, romance histórico, conteúdo da ocupação portuguesa – Estado Novo e a Ditadura, trama passada também em outros cenários como o Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, no período de 1647 a 1977.
Era comum ver o mago literário João Ubaldo Ribeiro no bar e restaurante Tio Sam, no Leblon, tomando o seu chope em tulipa, onde jogava fora conversa fiada e distraída, com velhos conhecidos daquele bairro carioca, onde residia, e seus admiradores, sempre solícito, com seu vasto bigode já grisalho e sorriso largo, idêntico ao seu pai, o ilustre professor Manoel Ribeiro, sempre aos sábados, domingos e feriados.
A influência do cotidiano brasileiro e do sociopolítico foi retratada em toda sua vasta produção literária, deixando um legado inexorável para os amantes da literatura e estudantes que tentam ingressar nas universidades brasileiras – uma referência.
O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro revolucionou a literatura, com seu jeito crítico, sátiro, espirituoso, social e jornalístico.
O seu grande saber jurídico foi adquirido através do incentivo do seu pai Manoel Ribeiro, o qual era advogado, professor, jurista, político (deputado estadual em Sergipe, vereador e procurador de Salvador), além de ter feito parte da cúpula da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado baiano.
Não obstante bacharel em Direito, João Ubaldo lecionou Ciências Políticas em Salvador (BA), mas não quis seguir carreira de advogado, como o pai e o irmão Manoel Ribeiro Filho, renunciando a tudo para se tornar um escritor.
Multifacetado, amante da liberdade e das coisas simples, obteve sucesso, tornando-se um grande romancista, além de escrever livros infantis, com sabedoria e ironia, estilo singular, encontrando também em sua obra o lado lírico, telúrico e pornográfico, como no romance A casa dos budas ditosos, publicado em 1999, que inclusive foi proibido em alguns estabelecimentos.
Conheci indiretamente João Ubaldo Ribeiro através de seu pai Manoel Ribeiro, quando tive a honra de ser sua aluna, em 1980, no curso de Direito Administrativo da UCSAL (Universidade Católica de Salvador). Embora mestre rígido, exigente e sério, apresentava um humor inigualável, causando uma empatia mútua entre professor e aluna.
Criado esse elo carinhoso com o mestre Manoel Ribeiro, fumante inveterado e apreciador de um bom uísque, passamos a manter conversas sobre literatura, filosofia, economia e história, daí o seu desejo que eu viesse a conhecer o filho João Ubaldo, o qual teria afirmado o desejo de conhecer esta então estudante, a quem seu pai dedicara um carinho diferenciado, em razão de, com membro do Diretório Acadêmico da UCSAL, em 1979, termos lançado a coletânea de poema Poejusto, como também de lhe ter ofertado o meu primeiro livro editado, Mulher: poesias inéditas (1979), cujo prefácio foi do professor de Direito Internacional Público, seu conterrâneo Jayme Messeder de Suárez, exemplar esse que vi carregando várias vezes e ter me dito, pessoalmente, que o poema de folhas 29, tinha muita identificação com o seu pensamento, o que me deixou muito feliz e lisonjeada, com a certeza que está bem guardada em sua biblioteca.
Nas conversas entre aulas, aconselhava-me a seguir na carreira literária e me orientava ao hábito da leitura como aprendizado.
O desejo de Manoel Ribeiro em que eu conhecesse seu filho não foi realizado por outras circunstâncias, além de o mesmo morar em outro estado, com várias viagens pelo mundo afora. Todavia, como o destino tem os seus desígnios, através do encontro de Tadeu Ribeiro, sobrinho de João Ubaldo, com meu filho Maurício Pimenta, no Colégio Anchieta, pude manter contato com a família Ribeiro.
Traduzir João Ubaldo Ribeiro como cidadão comum é muito simples. Trabalhou na Prefeitura de Salvador como office-boy, até chegar à vaga da cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras (ABL), antes ocupada por Carlos Alberto Castelo Branco.
Do mesmo modo, citar suas obras é perda de tempo, porque todos as conhecem. Mas vale destacar que muitas delas inspiraram outras artes como o cinema (Sargento Getúlio, 1983; Tieta do Agreste, 1996; Deus é brasileiro, 2003), a televisão (O sorriso do lagarto, 1991).
Todas e quaisquer homenagens ao grande escritor são justas, como as feitas no carnaval carioca, pela escola de samba Império da Tijuca, no desfile do ano de 1987, e o Bloco Areia, ano passado, além de lhe ser concedidos prêmios de tamanha importância, como o Prêmio Camões, em 2008.
Por tudo isso, Viva o povo brasileiro na pessoa de João Ubaldo Ribeiro, o grande, senão o maior brasileiro em seu gênero.

Sione Maria Porto de Oliveira, poetisa.

Membro da Academia de Letras de Itabuna - ALITA

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