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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O MENINO QUE VIA A VIDA ACONTECER – Sônia Carvalho de Almeida Maron


O menino que via a vida acontecer

                                               Sônia Carvalho de Almeida Maron

 

O melhor mirante da cidade era o alto do 

telhado, de onde se via a vida acontecer no céu 

e na rua, por onde passavam personagens e 

fatos importantes que iriam marcar a vida do 

menino para sempre. (In: Cyro de Mattos, 

contracapa do livro Histórias do mundo que 

se foi, editora Saraiva, SP, em sexta edição, 

Prêmio Adolfo Aizen da União Brasileira de 

Escritores-RJ )

                    

            Aquele menino da Rua Ruy Barbosa tinha mesmo um jeito diferente. Em nossa rua não existiam estranhos: do primeiro ao último quarteirões, famílias trocavam sorrisos e cumprimentos, das crianças aos mais velhos. E o menino passava para o colégio, muitas vezes em companhia do irmão mais velho, compenetrado e sério, segurando a pasta com os livros como se fossem uma carga preciosa. O irmão mais velho tinha o riso fácil e todas as vezes que passava em frente à minha casa sorria de forma amistosa. Os pais do menino gostavam de mim, eu tinha certeza, pois sabiam o meu nome e conheciam meu pai.

            Na vida mansa da nossa rua todos eram conhecidos e a maioria amigos de verdade. As famílias visitavam-se, sentavam-se em cadeiras colocadas nos passeios nos dias de domingo, enquanto as crianças pulavam corda, jogavam bola de gude, pulavam amarelinha e cantavam cantigas de roda nas noites de luar. O menino fazia parte desse nosso mundo, mas eu sentia que participava de uma forma diferente:  meus olhos de criança não sabiam definir se era tímido ou se não queria participar de nossas brincadeiras por ter coisa melhor para fazer. Eu desconfiava que fosse mais amigo dos livros do que de nós.

            E o tempo foi passando. Os colégios da cidade não permitiam que os jovens sonhassem com as carreiras mais nobres, não existiam faculdades. O menino e o irmão contaram com o apoio do pai e seguiram para a capital identificada pelos mais velhos como “Bahia”. Àquela época diziam com orgulho “meu filho foi estudar na Bahia”, como se Itabuna fosse um lugar distante e fora do mapa do Estado. É que o privilégio de estudar na capital era restrito aos mais abastados da classe média. As famílias de milhares de arrobas de cacau enviavam os filhos para os colégios e faculdades do Rio de Janeiro e São Paulo.

             Não é que o pai do menino fosse um homem arrogante e rico como muitos coronéis do cacau. Ao contrário. Era um homem simples e trabalhador, sem diplomas e títulos, mas vislumbrava um futuro grandioso para os filhos e, para ele, o estudo era o único caminho. Acertou em cheio e ganhou um filho médico e o outro advogado.

            O jovem advogado iniciou, sem muito entusiasmo, o caminho das lides forenses. Gostava mesmo era de escrever, escrever de verdade, coisa diferente das petições dos processos cíveis e criminais. E enfrentou o desafio. A força que o conduzia para a carreira sonhada era mais poderosa que o encanto dos embates da advocacia. Determinado, passo a passo, conquistou o reconhecimento do mundo literário do país conseguindo o que poucos alcançaram: Cyro de Mattos é um escritor. Não um escritor qualquer. O itabunense que via “a rua acontecer no céu e na terra, do alto do melhor mirante da cidade, o telhado de sua casa”, como podemos ler na contracapa de um dos seus livros, Histórias do mundo que se foi, coleciona prêmios e títulos como ficcionista, cronista, ensaísta, poeta e demais variantes que pode assumir um verdadeiro escritor. Por último, representará sua cidade na Academia de Letras da Bahia, na cadeira de nº 22, que teve como membro fundador o mais conhecido e ilustre dos baianos, Ruy Barbosa. Sem esquecer que leva em seu currículo os títulos de membro da Academia de Letras de Ilhéus e membro fundador e idealizador da Academia de Letras de Itabuna – ALITA. 

            Cyro de Mattos é “prata de casa” da melhor qualidade. Todos sabem que seu currículo é conquista de poucos e nossas academias são citadas primeiro por motivo puramente sentimental.  Em resumida amostragem, registre-se o título de membro efetivo do Pen Clube do Brasil e Ordem do Mérito da Bahia, no Grau de Comendador. Em suas incursões pelo mundo integrou a delegação brasileira de Poetas da Universidade de Coimbra, em Portugal, e no XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Salamanca Cidade de Cultura e Saberes, na Espanha. Foi agraciado com vários prêmios literários de expressão, sendo autor de mais de cinquenta livros no Brasil e no exterior.

            A Rua Ruy Barbosa, na cidade de Itabuna, Bahia, Brasil, passou à imortalidade. A geração de Cyro de Mattos, que é também a minha, festeja a conquista de um dos seus meninos do Ginásio Divina Providência. Festejamos o amigo que desenvolveu a admirável arte de observar o mundo com os olhos e o sentimento que só conhece quem adquiriu o conhecimento guardado nos livros, sobre terras, homens e tempos e serve de exemplo para a geração que se recusa a reconhecer a força mágica que o livro empresta à nossa vida.      

 

Sônia Carvalho de Almeida Maron é escritora, juíza de Direito aposentada, ex-professora de Direito da UESC, uma das fundadoras da Academia de Letras de Itabuna, foi presidente da instituição por dois mandatos.

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