Total de visualizações de página

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A PALAVRA NÃO É AMOR, É DENGO - Por Davi Nunes

A palavra não é amor, é dengo

O português, a língua imposta pelo colonizador, mesmo depois de séculos de uso, é encaixe imperfeito no nosso ori, no mutuê. É palavra presa na língua. É a língua represa nas palavras que nos desencaixam como ser no mundo. Roupa que vestimos e não cabe confortável no nosso corpo. Falo especificamente da norma padrão, a musa esquálida e pálida, a torre de marfim que é campo de concentração linguístico para torturar e dissolver gramaticalmente o nosso corpo-língua ancestral.

Observo que os nossos afetos, sentimentos transpostos através das palavras, terminologias, nomenclaturas organizadas historicamente pela hegemonia branca para nos dominar – a língua como um ferro quente na boca – demarca o lastro terrível da escravização e racismo, não pode servir como elemento simbólico, signos, para representar as formas de afeto que ocorrem entre negros e negras.

Penso que a palavra amor tão consagrada pela cultura ocidental desde a “Antiguidade Clássica” não tão clássica e antiga quanto às clássicas civilizações melanodérmicas e ancestrais, berço de tudo, seja uma dessas. A palavra amor para nós negrxs é espelho de reflexo falso, não cabe a nossa imagem nela, que é profusão humana e beleza que extrapola a sua lógica.

A palavra amor se articula no mundo branco como pré-ódio, exemplo: primeiro invadem outras nações, cometem as mais atrozes barbáries, depois contemporizam com seus tratados filosóficos, religiões, mitos, literaturas que azorragam a ideia de amor, a flor maior dos sentimentos humanos segundo eles, para construírem uma sanção positiva das suas humanidades derreadas e exercerem tranquilamente o poder sobre os outros povos. A palavra amor assim é um embuste de algo sublime que funciona para eles, pois possui uma função objetiva: criar conforto diante das suas quimeras mais profundas.

Para nós, negros, ela não funciona, é espelho falso e reflexo bifurcado tragicamente, é desencaixe cognitivo e afetivo, sofisma que nos adoece, ilusão fantasmagórica que não alcançamos e não comunga com a extensão abissal de nossos sentimentos, pois desde o início estamos além. É um signo que não comporta a densidade e beleza significativa da nossa afetividade, do nosso sentir. É o desencaixo no coração, okan, e na cabeça, ori.

A palavra que dá conta de acoplar a nossa afetividade, no caso do Brasil, de abarcar a batida mandingueira do nosso coração, da magia e poesia do encontro ancestral de negros e negras, é a palavra de origem banto da língua Quicongo, totalmente inserida na variação do português falado principalmente por negrxs chamada de dengo.  Óbvio que falo aqui do dengo em seu sentido mais profundo e ancestral, o supremo dengo. Não da significação subscrita nos dicionários brancos, que apequena os sentidos das palavras de origem africana.

O dengo durante toda a história de escravização, favelização e racismo nessa diáspora de angústia, o Brasil, foi o instante eterno de libertação expressado num simples aconchego de esperança no desconforto cotidiano. A união dos corações em sublimação ancestral, o oriki que arrepia os pelos, pois ecoa por todo o corpo o axé e o poder dos orixás. Os olhos que se entrecruzam e se fixam, pois há de haver o beijo, supremo dengo, libelo de libertação expresso no gesto. Os corações que se entrelaçam para fazerem o “corre” do quilombo intimo e movimentar os outros mocambos para construir o grande quilombo. A humanidade que se reconstrói depois de se diluir através do racismo das grandes metrópoles em frenesi no sorriso da companheira(o) no encontro sagrado depois da batalha enfrentada. O reencontro dos continentes afastados através de um juntar manhoso de faces azeviches a formarem destinos.

A palavra dengo é signo portentoso e conjuga em seu interior a palavra chamego, é a família preta em celebração do quilombo íntimo, é a África na origem, o sopro da criação original no ouvido a trazer placidez e beleza ao coração.

Davi Nunes, soteropolitano de nascença, graduado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia, é poeta, contista, e escritor de livro infantil. Em 2015 teve o livro Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula publicado pela Editora Uirapuru, além de ter o conto chamado “Cinzas” adaptado para o cinema.



* * *

TERREMOTOS E CASTIGOS DIVINOS

Uma das cenas desoladoras do forte terremoto (6,2º) que atingiu o centro da Itália, em 24 de agosto último. Acima, a cidade de Pescara del Tronto.
Terremotos e Castigos Divinos
22 de novembro de 2016
Roberto de Mattei

A partir de 24 de agosto deste ano a Itália foi sacudida por uma série de terremotos violentos que, transcorridos dois meses, não dão sinal de diminuir. São milhares, segundo os sismólogos, com intensidade e magnitude diversas. Até o momento eles provocaram um número limitado de vítimas, mas sérios danos a igrejas e edifícios públicos e privados, despojando dezenas de milhares de italianos de seus bens e de suas casas.
O terremoto de 30 de outubro, o mais grave desde o de 24 de agosto, foi sentido em toda a Itália, de Bari a Bolzano, e teve seu símbolo no colapso da Basílica de Núrsia [foto]. A notícia de sua destruição correu o mundo. Construída sobre o local do nascimento de São Bento, dela restou apenas uma frágil fachada. Todo o resto desapareceu em uma nuvem de poeira. Muitos meios de comunicação, como a CNN americana, enfatizaram a natureza simbólica do acontecimento, exibindo a imagem da catedral desmoronada na página inicial de seus sites.
Em Núrsia, a Basílica antes e depois do terremoto do dia 30 de outubro

Houve um tempo em que os homens eram capazes de ler as mensagens de Deus em todos os acontecimentos que escapavam à vontade deles, cada um dos quais tem um significado expresso na linguagem do símbolo, que não é uma representação convencional, mas a mais profunda expressão do ser das coisas.
O racionalismo moderno, de Descartes a Hegel e de Marx ao neocientificismo, quis racionalizar a natureza, substituindo a verdade do símbolo pela interpretação puramente quantitativa da natureza. O racionalismo está hoje em crise, mas, abeberando-se em suas fontes intelectuais, do nominalismo ao evolucionismo, a cultura pós-moderna criou um novo sistema simbólico que, ao contrário dos antigos sistemas, não se reporta à realidade das coisas, mas a deforma como num jogo de espelhos. O código simbólico que se exprime em todas as formas de comunicações pós-modernas, dos tweets aos talk-shows, visa criar emoções e despertar sentimentos, recusando-se a compreender a razão profunda das coisas.
A Basílica de Núrsia [foto], por exemplo, é um símbolo da arte, da cultura e da fé, cuja destruição evoca para os meios de comunicação a perda do patrimônio artístico da região central da Itália, mas não a imagem do colapso da fé ou dos valores fundamentais da civilização cristã.
Por exemplo, embora o vocábulo “terremoto” seja usado na linguagem cotidiana para indicar transtornos culturais e sociais, para a mídia ele nunca pode significar uma intervenção divina, porque Deus só pode ser apresentado como misericordioso, jamais como justo.
Os que falam de “castigo divino” incorrem imediatamente na difamação da mídia, como aconteceu com o Padre Giovanni Cavalcoli [foto], cujas recentes palavras na Rádio Maria foram definidas pelo substituto da Secretaria de Estado, Mons. Angelo Becciu, como “declarações ofensivas aos crentes e escandalosas aos não crentes”.
Mas, se há escândalo, é aquele causado pela tomada de posição do prelado vaticano, que demonstra ignorar a teologia católica e o ensinamento dos Papas, como Bento XVI, que na audiência de 18 de maio de 2011, falando sobre a oração de intercessão de Abraão por Sodoma e Gomorra, as duas cidades bíblicas punidas por Deus pelos seus pecados, afirma:
“O Senhor estava disposto a perdoar, desejava fazê-lo, mas as cidades estavam fechadas num mal totalizador e paralisador, sem sequer poucos inocentes, a partir dos quais começar para transformar o mal em bem. Pois é precisamente este o caminho da salvação, que também Abraão pedia: ser salvos não quer dizer simplesmente evitar a punição, mas ser libertados do mal que habita em nós. Não é o castigo que deve ser eliminado, mas o pecado, aquela rejeição de Deus e do amor que já traz em si o castigo. O profeta Jeremias dirá ao povo rebelde: ‘Valeu-te este castigo a tua malícia, e as tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê como te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus’” (Jr 2, 19).”
Como esquecer que entre agosto e setembro de 2016 foram celebradas na Itália as primeiras uniões civis? “Reconstruiremos tudo”, disse o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi.
Mas, em 23 de julho de 2016, o mesmo Renzi apôs sua assinatura no decreto de aplicação da Lei nº. 76/2016, ou Lei Cirinnà, que legaliza o casamento homossexual na Itália. Esta lei é um terremoto moral, porque abate as paredes da Lei divina e a natural. Como imaginar que essa lei calamitosa seja privada de consequências? Aqueles que não renunciaram ao bom senso percebem-no imediatamente. Hoje o homem se rebela contra Deus e a natureza se rebela contra o homem. Ou melhor, o homem se rebela contra a Lei natural, que tem o seu fundamento em Deus; e a desordem da natureza explode.
A lei Cirinnà não destrói as casas, mas a instituição da família, produzindo uma devastação moral e social não menos grave do que aquela material causada pelo terremoto. Quem pode negar-nos o direito de pensar que a desordem da natureza é permitida por Deus como consequência da negação da ordem natural praticada pelas classes dirigentes do Ocidente? E, uma vez que os símbolos permitem diversas leituras, como culpar aqueles que veem na fachada de uma basílica o símbolo daquilo que hoje, sob o aspecto humano, parece restar da Igreja Católica: uma pilha de escombros? As declarações de Mons. Becciu, um dos colaboradores mais próximos do Papa Francisco, são a expressão de um mundo eclesiástico em ruínas que atrai sobre si outras ruínas.
Da promulgação da Exortação Amoris Laetitia às honras prestadas a Lutero em Lund, o Papa Francisco certamente não ajudou a restaurar a ordem neste mundo em frangalhos.
O Papa repetiu que não se deve construir muros, mas derrubá-los. Pois bem, as paredes colapsam, mas com elas desmoronam a fé e a moral católica, rui a civilização cristã, que em Núrsia, local de nascimento de São Bento, tem o seu berço simbólico.
Ainda assim, se a basílica caiu, a estátua de São Bento permaneceu de pé, no centro da praça em frente. Em torno dela reuniu-se um grupo de monges, freiras e leigos, rezando o terço [foto ao lado]. Esta é também uma mensagem simbólica, que nos fala da única reconstrução possível: aquela que se faz de joelhos, rezando.
Além da oração, deve também haver ação, luta, testemunho público da própria fé na nossa Igreja e na civilização cristã, que ressurgirão dos escombros. Nossa Senhora o prometeu em Fátima. Mas antes do triunfo do Coração Imaculado, a Santíssima Virgem também previu um castigo planetário para a humanidade impenitente. Devemos ter a coragem de lembrá-lo.
____________  
(*) Fonte: “Corrispondenza romana”, 5-11-16. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana. 



* * *