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segunda-feira, 26 de junho de 2017

ATEMPORALIDADE DE CLARICE LISPECTOR NO CONTO OBSESSÃO - Leticia Franco

Clarice Lispector utiliza o poder da literatura para mostrar ao leitor assuntos de extrema importância que precisam ser discutidos. Dessa forma, no conto “Obsessão”, o relacionamento abusivo é tema central dessa narrativa atemporal.


Não é fácil admitir estar em um relacionamento abusivo, muito menos perceber em que momento tudo começou, geralmente vem acompanhado da falta de amor próprio, de ver o parceiro como um ser superior. A insegurança faz com que as pessoas fiquem mais suscetíveis a esse tipo de relacionamento.

É nesse contexto que Clarice Lispector nos brinda com um conto atemporal, introspectivo e de suma importância. O conto começa mostrando a simplicidade de Cristina, moça do interior que se casa aos 19 anos e se vê absorvida em uma rotina vazia. Cansada da mesmice da vida pacata, ela começa a questionar a própria felicidade.

Às vezes, melancolia sem causa escurecia-me o rosto, uma saudade morna e incompreensível de épocas nunca vividas me habitava. Nada romântica, afastava-as logo como a um sentimento inútil que não se liga às coisas realmente importantes. Quais? Não as definia bem e englobava-as na expressão ambígua "coisas da vida".

Ao contrair febre tifóide, Cristina vai para Belo Horizonte tratar da saúde. Na nova cidade, sem o marido e os habituais vizinhos os quais ela denominava "multidão dos de olhos fechados", ela passa a despertar para o mundo. Na pensão em que fica hospedada, conhece Daniel, um jovem boêmio que estimula nela o interesse pelo novo.

Daniel era o perigo. E para ele eu caminhava.

Cristina começa a ver Daniel como um professor, ele era inteligente e desafiador. Porém, humilhava Cristina o quanto podia, a via como uma tola, menina fraca do interior que nunca conseguiria se tornar uma mulher forte, mas a mantinha ali, para massagear seu ego.

As almas fracas como você são facilmente levadas a qualquer loucura com um olhar apenas por almas fortes como a minha.

A falta de amor próprio de Cristina e sua busca por uma vida diferente daquela a qual estava acostumada faz com que ela mergulhe cada vez mais em um relacionamento tóxico, onde o parceiro só a diminui.

Cristina só consegue se desvencilhar de Daniel, quando finalmente nota não ser inferior a ele, quando vê que não existe superioridade em uma relação, mas sim uma parceria de igualdade e amor.

Se você nunca esteve em um relacionamento abusivo, possivelmente conhece alguém que esteja! Os danos causados são enormes, afetando a saúde de quem está em uma situação como essa. É necessário sempre alertar, ouvir e compreender quem passa por esse momento. Clarice magistralmente coloca o assunto em pauta em uma época em que falar do tema era muito mais difícil do que nos dias atuais.

Leticia Franco
Estudante de Medicina Veterinária. Faço da leitura meu combustível diário. Apaixonada por mitologia, Tolkien, C.S Lewis, Neil Gaiman e desenhos fofinhos. Gosto de tomar chá enquanto escuto uma boa conversa..



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A SEGUNDA MORTE DE LIMA BARRETO - Por Davi Nunes

As vozes pálidas escrevendo a nossa história, biografando nossas vidas-dores, traço imperioso da ordem de produção de discurso nesse país, parece como uma segunda morte. Aquela morte que se apresenta no filme Corra, do diretor norte americano Jordan Peele, uma morte que é viva a servir angustiosamente a branquitude progressista cool. Vulgo maquiavélica. Morte que zumbifica – alma sugada –  pois o crivo é da mea culpa empalidecida comercial. Lucro de tez pálida.

Talvez Lima Barreto esteja se revirando no túmulo, na vala inócua e fria que o colocaram, como colocam ainda hoje homens e mulheres negras e negros, ao perceber que a sua história (biografia de gênio esgaçado pelo racismo) está sendo escrita por representante(es) de uma “elite intelectual brasileira” que, em sua época, ele combateu, demonstrou suas hipocrisias e obliterações literárias chulas e fora, em vida, condenado por ela.

O jogo revelado por Lima Barreto, assim, o esmagou. Mas agora, após 95 anos de sua morte, a casta literária privilegiada quer lhe dar uma dose simbólica de uma boa cachaça festiva e literária, a paratiana. Talvez eles(as) pensem ainda que todo emparedamento, enredar de obstruções raciais, foi só loucura etílica. “Noias” intelectuais tristes.

O dândi Lima Barreto era de dimensão maior, heroica, pois ele trazia o caos: sacarmos intelectual diante do pedantismo erudito de venta branca, e ironia diante da mediocridade literária que se apresentava grande sendo pequena em sua época.

A segunda morte – arquétipo fantasma da vivência de escritor negro escrita por sujeitos(as) brancos(as) – já era anunciada em República dos Bruzundangas. Os encaixes de discursos de autoridade que aparecem na obra através de personagens tipos, já davam conta de arquétipos sociais, alegorias de intelectuais e políticos brasileiros que apareciam pastosos e ridículos no livro, e que agora pulam fantasticamente da República dos Bruzundangas e estão na realidade a transformá-lo num signo rentável em seus livros e festividades literárias.

O escritor Lima Barreto, escrevinhado por essa elite, não cabe (talvez só como contrassenso) no Afonso Henrique, homem negro, suburbano que foi escamoteado pela “bruzungandisse” burra e racista dessa laureada gente. O que é louco, pois parece que eles têm formas de uso infinitas de nossas vidas e obras.  E quando nos articulam em linguagem, nos matam e produzem os fantasmas representativos que se acoplam e regulam o discurso dominante.

Lima Barreto foi visionário, previu a sua segunda morte, um mar de palavras e discursos vindos do que ele desprezava, de um foco narrativo elitista, descrevendo os enredos, os eventos, no entanto com filtro higienista, sobre a sua vida.


Davi Nunes é mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livro Infantil



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SAUDADE NÃO É VIVER NO PASSADO - Eurípedes Brito Cunha

Saudade  não é  viver  no passado 


Saudade não é tristeza, nem viver no passado ou tentar revive-lo ( o que passou não se vive de novo, jamais). Saudade é lembrança, e sem lembrança é impossível viver, assim como não se vive  sem  sonhos e sonhos realizam-se no presente e no futuro. Assim, ter saudades é ser feliz, é ter o que contar aos amigos e parentes queridos. Sofrimentos todos temos e teremos sempre, pois a vida , mesmo não sendo um vale de lágrimas, também não é um mar de rosas, misturando-se num amálgama de momentos que nos atingem de maneiras distintas, alegres e felizes, ou tristes e pesarosos,  estes também inafastáveis, por mais dolorosos que possam se mostrar e nos ferir, até porque, “quem,   quem passou pela vida e não sofreu, foi espectro de homem, não foi homem , só passou pela vida, não viveu”.
  
Aproveitando Vinícius , quando a gente nasce começa a morrer. E cada dia vivido é, na verdade um dia a menos e o que vejo, o que percebo, é que o pavor da viagem sem regresso, vai nos deixando mais preocupados e, por isso mesmo, mais próximos da divindade, das Igrejas, dos escritos religiosos. Não sei bem o que acontece comigo, porque está sucedendo exatamente o contrário: cada dia sinto-me mais distante das crenças religiosas de minha infância, quando minha querida mãe, fervorosa e dedicada crista, lia a Bíblia em casa e  nos convencia de sua “verdade” , com uma fé que se mostrou inquebrantável ao longo dos seus 92 anos de plena lucidez  e trabalho constante na elaboração de flores , pinturas , costuras para os filhos e para o  marido que lhe sobreviveu por mais 5 anos. Tenho saudades dessas momentos.

Tenho saudades de minha infância jogando bola de gude com as outras crianças na rua de terra, ou empinando arraias ( pipas), nas tarde de domingo e disputando quem conseguia pegar aquelas que era “cortadas “ e se perdiam nos volteios ao sabor dos ventos.

Saudades das brincadeiras sem conta em torno da estação de trens  , sempre com as roupas domingueiras ( embora os trens nunca  chegasse aos domingos); saudades de ouvir o  rádio que funcionava com bateria de carro e só podia ouvir à noite porque a recarga da bateria era difícil, tinha que procurar na cidade com os poucos proprietários de caminhão, quem ia viajar para carregar a bateria, ou ficar sem rádio mesmo até achar um amigo com disponibilidade para ajudar.

Saudade da  quermesse na praça nos dias de festa da Igreja e de minha mãe zangada com meu pai ( que só fazia sorrir e se divertir), quando as moças o “prendiam” numa roda e cobravam uma prenda para solta-lo. Saudades do “correio elegante” nesses dias alegres, quando “alguém” mandava  dizer a “alguém que está de saia azul  e  blusa branca” , que a ama e quer “voltar”; saudades do pau de sebo, da  “cabra cega” , quando um garoto tentava acertar um grande jarro de barro  com um pedaço de madeira e quando o quebrava de lá saiam um gato desesperado, muitas cinzas, mas também alguns brinquedos e muitos bom-bons; e das zangas  e castigos de minha mãe quando chegava em casa todo sujo de terra e de cinzas  e sem nada nas mãos  ( jamais consegui pegar um único bom-bom..)  mas muito me divertia.

Saudades das  brigas com os outros meninos,  das roupas rasgadas, para desespero de minha mãe,  cabeça quebrada, pernas e braços ralados, nariz sangrando.

Saudades de ler As viagens de Guliver e dos livros de Monteiro Lobato, da sujeira da tinta de escrever que derramava nos livros , nos cadernos e nas fardas do colégio para desespero da professora e de minha saudosa mãe.

Saudades, muitas saudades, alicerces de nossas vidas, não são o reviver do passado  pois, como disse, o que passou, passou. Mas não existimos sem passado, sem  sustentação do que fomos e vivemos, como não vivemos sem sonhos que são o presente e o futuro.


Eurípedes  Brito  Cunha - Advogado, pós graduação em Direito Imobiliário pela Universidade Católica do Porto, Portugal; foi presidente da Seção da Bahia da OAB e Conselheiro Federal da OAB; Comendador pelo Estado da Bahia; portador da Medalha Tomé de Souza pela Câmara de Vereadores de Salvador, Bahia; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia; Presidente do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho; professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Escola Superior de Advocacia da OAB/Bahia; membro da Academia de Letras da Cidade de São Bento, Maranhão; articulista do Jornal e da Revista Direitos. Faleceu dia 13 de abril de 2014.



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ATIRE A PEDRA – Agenilda Palmeira


Atire a Pedra


As redes sociais e a imprensa veicularam o linchamento de uma senhora no Guarujá(SP), informações desencontradas levaram uma turba a cometer uma atrocidade em plena metade da segunda década do século XXI. Não vamos aqui, caro leitor, especular a novidade do fato, pois não o há. Na Palestina, há mais de dois mil anos, uma mulher foi pega em flagrante adultério – para tanto, imagina-se que foi posta para fora, completamente despida. E todos sem exceção aguardavam a ordem para o apedrejamento. Na realidade o que se ouviu não foi uma ordem sumária de execução, mas o estabelecimento de critérios, “quem for isento de pecado, que atire a primeira pedra” e a execução foi cancelada.

Entretanto, Fabiane Maria de Jesus, não teve a mesma sorte. A justiça foi feita, mesmo que com as próprias mãos. Mas por que faltou bom senso em uma tragédia desta? Ela foi injustamente acusada de bruxaria, sequestro, infanticídio e os boatos garantiram a “legítima defesa coletiva”, pois os agressores usaram o argumento de que fizeram tal barbárie para proteger as crianças. Agora fala-se em arrependimento. Voltamos aqui ao texto Pedrinhas, rolezinhos e Revolução Francesa. No Guarujá foi feito um rolezinho e o divertimento era trucidar uma senhora, mãe de dois filhos. É o fenômeno das multidões, já não vimos tal situação no futebol? O fato é que o linchamento é covarde pois garante o anonimato.

Se juridicamente, o Estado não agir de forma rápida, estas cenas tendem a se repetir, é preciso que medidas sejam tomadas para que o monopólio da justiça volte às mãos do Estado É fato que o Estado ainda apresenta uma conta deficitária saúde, moradia, cultura, justiça e principalmente educação de qualidade que aliada a cultura promove uma vida pensante. A educação pode até estar massificada mas sua qualidade ainda é muito baixa. O resultado é que os equipamentos culturais da grande maioria populacional, não promovem uma reflexão sobre a notícia e para tanto; informação pura e simples, fica refém do achismo e o “eu acho que é ela” ganha força. .

Um linchamento nos leva a refletir sobre a ausência do Estado. Gradativamente, o poder político afastou-se das comunidades carentes, fazendo surgir zonas de exclusão e essas lacunas sociais se agravaram nas décadas de oitenta e noventa promovendo o surgimento de Estados embrionários como o narcotráfico e as milícias, que promovem justiciamento à margem do Estado Democrático de Direito. Assim, qualquer um pode cair nas mãos dos justiceiros, mas na prática a teoria é outra e as pessoas mais pobres são e estão mais vulneráveis por conta da lacuna da legalidade, pelo fato do braço estatal que as comunidades carentes conhecem é a polícia. Como se vê a violência não é só um caso de polícia. É sobretudo de política social. Não há uma fórmula capaz de, por si, assegurar a convivência pacífica entre as pessoas. Mas é certo que sem justiça social, sem ações contra o fosso social e sem investimentos em áreas básicas como educação e saúde, persistirá o quadro de desigualdades, insegurança e medo que marca o cotidiano e a realidade de todos nós.

Os políticos prometem proteger os princípios constitucionais. Atribuir culpa as esferas Estadual. Federal, Municipal é pura generalização. O fato de o tecido social está gangrenado pela corrupção, a educação que promove uma ética estimuladora de cidadania e que o caldeirão da ignorância não entorne na forma de violência como vimos. Os justiceiros surgem por conta da anomia e da impunidade, que os tornam pessoas acima das leis e das autoridades. Temo tal cenário, pois esta sociedade doente pode legitimar um regime autoritário que se julgue capaz de por ordem na bagunça.

O que não seria necessário pois o império das leis (Estado Democrático de Direito) tem remédios constitucionais como o habeas corpus que protegem o indivíduo dos abusos estatais. Não nos falta justiça. Falta juízo e isto quem pode nos dar é a educação. Ela deve ser prioridade porque é um fator que contribui para o desenvolvimento do país. Essa é em geral a ideia dos que defendem a revolução pela educação. Mas a instrução universal, por si, não produz toda a mudança social no sentido de
mocrático. Antes, é a mudança social profunda que permite chegar a uma verdadeira instrução para todos. Se a sociedade é a morada do homem, a educação é alicerce e teto dessa construção.

Agenilda Palmeira, professora

Membro da Academia Grapiúna de Letras (AGRAL) Itabuna – Bahia.

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