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quinta-feira, 14 de maio de 2020

A POESIA DESCUIDADA DE IOLANDA COSTA – Cyro de Mattos



A Poesia Descuidada de Iolanda Costa                           
Cyro de Mattos


Iolanda Costa faz sua estreia com Poemas sem nenhum cuidado (2004), editora da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, com prefácio de Jorge de Souza Araújo, em livro duplo, no qual figura Ricardo Dantas como o outro poeta estreante, com a obra Lembrança de uma infância.  O seu segundo livro é Amarelo por dentro (2009), com prefácio de Florisvaldo Mattos. Ela publicou ainda a plaqueta Alguns poemas,  reunidos em pequeno conjunto,  do  período compreendido entre 2004 e 2015.

           Embora o título do livro seja de Poemas sem nenhum cuidado, dando a impressão de elenco poético estruturado no exercício de estética fácil, o que neles se observa é a aptidão de conduta lúdica com as palavras gravadas no jogo dialético da vida. O anúncio que apregoa o título desconcerta-se face a intimidade de uma estética transgressiva, que se serve do lúdico nos   cantos breves. A dicção   transmuda os instantes do mundo em “água rasa de palavras cheias.”
 
           Iolanda Costa é um poeta experimental, mas que não despreza a emoção, o momento sensível que decorre da metáfora, com figurações, analogias, relações do tempo e passagem,   soluço e abafo,  ternuras que oscilam na mão com a perda, presença  do sol e referências da noite que tudo apaga.  Traçado  o poema com poesia, fruto que se quer comunicativo com o componente  lúdico,  no sistema verbal transgredido,   configuram-se então  o tempo e o modo de  peixes e flores, que hão de nascer da boca entreaberta de ideias.
 
           Anote-se que há poesia na vida, sem  poema. Há poema, vazio de significado, sem poesia. A poesia é essa energia que ilumina o ser  e alcança nossa harmonia no mundo. Diz de  sonho acordado, do sentimento  germinado no onírico,  como feixe de  brilhos na visão que absorve  beleza e encantamento dos seres e coisas ante o efêmero e o eterno.  Já o poema resulta da experiência do sentir e do pensar, que se atreve ser  na aventura da  palavra  com  múltiplas faces.   Constituído de tremores,  mora    na asa do ser. Sua capacidade devolve  à existência o que é apenas um momento, um curto  prelúdio  a que  segue o desencanto ou de novo  um outro som ou cor.

        Em Iolanda Costa desprende-se  o poema com poesia aglutinada em ritmos livres, cada verso dá-nos a impressão de total espontaneidade, apenas a impressão. A  ideia que  inaugura proposições novas  vem  com o vocábulo no jogo da semântica,  que se reconhece no instante e desnuda o todo, espraia a sensação de que o enunciado não tem  margens, princípio,  nem fim. Nessa poética do  jogo e apuro da palavra,  a cor e o som  são inscritos numa faixa de presságio, inauguram-se na  benevolência dos contatos,  da carícia que a ave  traz no bico como  sentimento forte do amor. Testemunho de vida, tábua de surpresas,  essa poética  sem a  métrica e a sonoridade da rima  confronta com facilidade,  em nível de  mimese, o eu de um lado e o objeto do outro, mas também faz seus mergulhos no pensamento, transmuda a emoção em ritmos que soam entrecortados de alusões, frente a  mudanças e nudez das linhas.

        Esse jogo usual dos instantes, em conversa constante com a vida, essa ideia de ternura da mão que oscila, entre sons e cores, está dentro de Iolanda Costa. Ressurge nas letras,  fixa-se na escrita gravada por  linhas e situações obtusas, captadas pela  vocação autêntica da  poeta, que sabe armar a brincadeira do poema no ser–estar do mundo  com o fácil, mas  que é sério. Intercala-se respeitável no  interior do mundo, diz de  homens tristes,  desaparecidos no horizonte. A poesia apreendida  nessa música vocabular  está presente em tudo, valoriza-se entre  luzes e sombras, duvidosa não sabe que cor estará vestindo na próxima estação.

        Transforma a  emoção com a forma  de  letras descuidadas,  determinantes do ânimo que impinge no   poema, cunha representações como “sinos, sorrisos, santuários e sendas.”  Entreabertas de sonhos, em espelhos  raros, de madrugada quando são contumazes segredos,  no  vento de amanhecer quando sopram a face órfã das claves  agudas,  ou  quando  desaparecem como objetos nas  sombras.  A fatura do poema revestido de jogo vocabular  dá-se com competência,  torna-se instigante nessas normas inversas  de criatividade. Apresentam-se com a  feição de lúdicas invenções   para com sinais novos  imprimir na pele   segredos e efingies/ impressões  partituras e notas/ de antigos altares.

         Às vezes, o poema que   nasce com os objetos é como um facho  aceso no instante  e  desaparece na sombra, toma forma fugitiva    com  o  seu jeito de breve observação do sentimento.  É emoção e  forma em síntese, reprodução de clima anímico  liricamente coeso no instante. Está no poema “Distância” que “a felicidade/ titubeia / entre o / amor e a / saudade.”
                           
            O exercício qualificado  desses poemas, sinalizados pelo poeta  sem nenhum cuidado, surge também  com os vazios nas linhas,  que servem  como reforço das associações e sugestões do caráter do verso,  composto de  sutilezas determinantes,   nuances  de  ritmo e significado. Poemas sem nenhum cuidado  é livro de poeta estreante com resultados positivos na   estrutura inovadora.  Sua  clara funcionalidade moderna forma o canto  capaz de  atrair o leitor paciente   para  escutar o som interior do mundo,  testemunhar “o fervilhar das cores na disputa dos matizes.”

          Iolanda Costa é graduada em Filosofia e especialista em História Regional pela Universidade Estadual de Santa  Cruz. Participou da antologia Poetas Novos da Região Cacaueira. Sua dissertação no curso de mestrado intitula-se Cinema: Sedução, Lazer e Entretenimento no Cotidiano Itabunense.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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