17 de setembro de 2019
Péricles Capanema
Não vou tratar aqui do imbróglio Brexit. Deixo suas ameaças
e incompreensões para eventual outro artigo. O caso pode provocar enorme
retrocesso em várias frentes. É de outra regressão, menos imediata, certamente
mais funda, o que esmiúço nas linhas abaixo.
Antígua e Barbuda, Austrália, Belize, Barbados, Canadá,
Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, São Cristóvão e Nevis, Santa
Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão, Bahamas, Tuvalu. British
Commonwealth. O Reino Unido é composto de quatro nações, Inglaterra, Gales,
Escócia e Irlanda do Norte. Inglaterra, Gales e Escócia formam a Grã-Bretanha.
Também British Commonwealth. Constituem todos, repito, a British
Commonwealth, cuja tradução, entre várias, poderia ser comunidade das nações
britânicas. Têm um só chefe de Estado, a rainha Elisabeth II. Ligados por
vários laços construídos pacientemente ao longo das centúrias, esses países
constituem uma liga de mútuos bons ofícios, abertura e benevolência recíprocas.
Um pouco distante, olhando para a mesma direção, encontram-se Estados Unidos,
Índia, Paquistão. De tal comunidade de povos, ligados por tantos laços, e
ressalto, os do afeto, consideração e respeito, advêm enormes vantagens
comerciais mútuas, facilidades de viagens, de estudos, proteção militar, tanta
coisa mais.
Bandeiras dos países-membros da British Commonwealth
No centro, uma pequena ilha, poucas riquezas naturais, governada
por séculos com espantosa continuidade operosa. A realidade empurra o
observador a se inclinar diante do senso político extraordinário ali incrustado
senso de governo que faz lembrar, e quem sabe os supera, os romanos das idades
clássicas.
Senatus Populusque Romanus — o Senado e o Povo Romano.
Chamo a atenção agora para a palavra Senatus. E para a realidade, conselho
formado por pater famílias, os chefes das famílias patrícias. Depois a ela
volto.
Os primeiros-ministros de cinco membros da Commonwealth de
1944 em uma Conferência da Commonwealth. Churchill no centro.
Um salto para a História contemporânea. Corria 1937. Winston
Churchill, então no ostracismo, carreira encerrada, tudo o indicava, pois era
rejeitado no seu partido devido à oposição feroz que fazia ao nazismo e a seu
armamentismo, foi convidado para ir à embaixada alemã em 21 de maio, onde o
esperava o embaixador Joachim von Ribbentrop, depois ministro do Exterior do
Terceiro Reich. Foi-lhe apresentada a proposta de um pacto entre a Alemanha
nazista e a Inglaterra. O político inglês a rejeitou prontamente. Então
Ribbentrop virou as costas bruscamente e disse: “Sendo assim, não há
saída. A guerra é inevitável. Hitler está resolvido. Nada o deterá, nada nos
deterá”. Winston Churchill, calmo, disse ao chefe nazista mais ou menos o
seguinte: “Não subestime a Inglaterra e de modo especial não a julgue
pelas atitudes do presente governo. Ela é muito inteligente. Se vocês nos
afundam em outra grande guerra, ela coligará o mundo inteiro contra vocês, como
fez na última vez”. Ribbentrop redarguiu: “A Inglaterra pode ser muito
inteligente, mas desta vez não coligará o mundo inteiro contra nós”. Churchill
foi embora. Veio a guerra, a Inglaterra coligou o mundo contra Hitler,
venceu-a, é o mesmo senso político em atividade.

Em 1955, a Rainha Elisabeth II com Winston Churchill no
centro
As realidades políticas duradouras estão enraizadas em
realidades sociais, delas recebem a seiva. A classe política inglesa em boa
medida é reflexo da vida, no campo e na cidade, de famílias que em graus muito
diferentes marcaram a história inglesa. Winston Churchill era desse meio. E
mesmo os políticos que dali não vieram respiraram tais ares, moldam seu
comportamento pelos valores e costumes que pautam as relações entre esposos,
filhos, parentela e conhecidos das famílias antigas do Reino Unido. É valor
social, para ficar por aqui, de enorme valia. Mais precisamente, tem enorme
função social. A Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, a própria realeza, sem
essa realidade humana que as embasa, seriam corpos de vida anêmica. Têm elas na
Inglaterra papel análogo ao Senado romano.
A Rainha na abertura do Parlamento, em 2014
Embora já não se possa falar em sociedade de ordens,
referir-se ao fato em comento apenas como sociedade de classes seria apressado,
superficial e deformante. À vera, ainda permanece no ar o perfume da sociedade
de ordens, continua tendo vitalidade o senso do bem comum, não morreram
comportamentos que tiveram seu auge nas épocas de esplendor da cavalaria
cristã. Com tais balizas, a benéfica mobilidade social, para cima e para baixo,
assimilações e decadências, respeitam a estabilidade, fazem-se enfim sem lesar
o bem comum. Estou escondendo os possíveis abusos, deformações, favoritismos
injustificáveis? Não, apenas não os estou colocando no quadro para que o
essencial seja visto em primeiro lugar. Do mesmo modo que faria ao analisar a
situação do bombeiro, de evidente relevância social, sem de início aludir a
profissionais corruptos, relapsos e omissos.
Por que coloquei no título retrocesso na Inglaterra? Para
não deixar passar batida uma involução, um sintoma dela aponto no próximo
parágrafo, que pode, com o tempo, perenizar fossilização regressiva, tantas
vezes característica de sociedades igualitárias.
A Editora Debrett publica desde 1769 um anuário, hoje
intitulado Peerage and Baronetage, [na foto a edição deste ano — a
última], espécie de almanaque da nobreza e aristocracia inglesas. Todos os
títulos ali constantes têm sua história, muito deles de grande ressonância,
significam a justo título muito no mundo saxão, mas não representam a essência
do fenômeno (são dele reflexo) que aqui coloco na lupa: o miolo é o cultivo
amoroso da excelência, no caso, a social, por boa parte do público. Isso é
motor do avanço em qualquer sociedade.
Informa Vivian Oswald no jornal “Globo”, a edição impressa
de 2019 do Peerage and Baronetage, a 150º, será a última. Razão decisiva,
o álbum de dois volumes dá prejuízo. São muito altos os custos de produção,
distribuição e estocagem do artístico e informativo trabalho, capa de couro,
cerca de três mil páginas. A publicação continua na internet, com consulta
paga. A propósito, esta última edição, preço promocional, sai por 405 libras.
Em resumo, parece, o público já não se interessa o
suficiente para ser lucrativo manter em circulação um dos símbolos da grandeza
da Inglaterra. Acostumou-se com horizontes mais acanhados, em que aparece menos
a atração pela excelência, no caso, um marco do apreço pela perfeição social. É
rota para o atraso, fenômeno que pode ter efeitos mais fundos que o imbróglio
Brexit.
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