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quinta-feira, 2 de julho de 2020

O PATRIARCA – Helena Borborema

          Como Abraão, ele foi também pai de um numeroso povo. Qual predestinado, teve na vida uma grande missão que soube cumprir com retidão de caráter e grande bondade, sendo a sua passagem pelo mundo uma trajetória de trabalho, idealismo e desprendimento. A história desse Patriarca teve início em março de 1863 quando, ainda adolescente, chegou à região Sul da Bahia em companhia dos pais, irmãs e do avô. Nas matas do Sul ele cresceu e aprendeu a desvendar seus segredos. Ambientou-se ao novo clima, sobreviveu a febres mortais e enfrentou toda a labuta e sacrifícios que o novo meio oferecia no dia-a-dia. José Firmino Alves, foi o seu nome. Filho de desbravador, seu pai, o sergipano José Alves, foi dos primeiros a se lançar na grande aventura do Sul. Quando chegou a essas terras do Município de Ilhéus, acompanhado da família, havia por esses lados apenas a aldeia de índios mansos em Ferradas, dirigida por frades missionários. Tudo o mais era mata com todas as suas características selváticas, onde apenas as clareiras abertas por Félix Severino e Manoel Constantino indicavam o trabalho de pioneirismo.

            O pequeno grupo começou vida dura de desbravadores na mata cerrada, entre índios, com carência de tudo o que fosse necessário à saúde ou ao conforto. Enfrentando chuvas rigorosas e invernos úmidos, falta de qualquer meio de transporte, só mesmo os fortes de espírito podiam suportar as adversidades daquele meio. Mas José Alves se estabeleceu com a família nesse ermo, limpou a terra e plantou cacau. Da luta do homem e mata resultou a vitória do primeiro, quando as verdes plantações de cacaueiros dominaram a terra subjugada pelo trabalho daquele punhado de destemidos sergipanos. A Burundanga foi o reduto dessa família corajosa onde o velho José Alves viria mais tarde a sucumbir.

            Com a morte do pai, o moço José Firmino assumiu a responsabilidade de cuidar da família e continuar o trabalho do velho pioneiro.

            Nas margens do Rio Cachoeira, principal vias dessa terra brabas, outros desbravadores aos poucos se instalaram; com eles, rústicas vendolas surgiram, as “tabocas”, destinadas a atender com o pequeno comércio de fumo, açúcar, querosene, os sertanejos que transitavam de Conquista para Ilhéus com seus carregamentos de requeijão, charque, e por aqui faziam pernoite certo. José Firmino passou também a negociar. Abriu pequena casa de comércio, misto de loja e armazém. As suas atividades se dividiram então entre a roça de cacau e o comércio. Em torno das vendolas ou “tabocas”, da beira do rio, acabou se formando um aglomerado de pequenas casas cobertas de palhas umas, outras de telhas – o arraial das Tabocas (1873).

            A casa comercial de José Firmino tinha mercadoria variada que ia, desde tecidos de algodão a gêneros alimentícios, sabão, querosene, chumbo para caça, o que atendia às necessidades das famílias do nascente arraial e das roças. Já não era mais preciso a longa caminhada para a vila de Cachoeira, pois Tabocas começava a fornecer à pequena população, os gêneros de necessidade. Assim, o pequeno armazém foi prosperando. O amor à terra onde crescera e onde se sentia arraigado, aumentou no moço comerciante o seu sonho de vê-la progredir. Queria ver o arraial das Tabocas crescer, prosperar e que muita gente viesse colaborar para aquele progresso. De sob aquelas árvores, de dentro daquele mato, haveria de sair a Terra da Promissão onde correria, não leite e mel, mas dinheiro, muito dinheiro. Não se limitou o moço sergipano a cuidar somente do seu patrimônio, a simplesmente plantar cacau, multiplicar suas roças e descansar na própria riqueza. Ele queria a prosperidade da terra.

            Famílias foram chegando para o arraial. Na mata, as clareiras aqui e acolá indicavam a penetração de outros bravos pioneiros. O tempo foi passando. Já dono de um sólido patrimônio, conhecido na capital do Estado, onde ia fazer compras para abastecer sua casa de comércio já próspera e forte, o então coronel José Firmino Alves, com crédito firmado, abriu em uma conceituada casa comercial de Salvador uma conta corrente para financiar às suas custas o transporte de patrícios seus, os mais pobres, a fim de que pudessem vir para Tabocas sem dificuldades monetárias, e aqui trabalhar. Distribuía ainda por sua conta, instrumentos de lavoura com os chegantes, que rumavam mata a dentro, abrindo suas próprias roças.

            José Firmino enxergava muito além do seu tempo. Já estabelecido no arraial, anteviu a cidade que devia nascer e crescer para um futuro de grandeza. Sentiu a necessidade de incentivar a fixação na terra de elementos úteis e de valor que a procurassem. Na falta de um hotel, cedeu uma casa de sua propriedade para acomodar as pessoas de bem que chegassem. Era a “República dos Hóspedes”. Estes aí ficavam acomodados até que se estabelecessem no trabalho e em casa, por conta própria.

            São muitos os que procuram Tabocas, aquela pequena colmeia de sergipanos e sertanejos. Vêm do interior do Estado, do Recôncavo (Santo Amaro é um grande celeiro de migrantes), da capital, de outros Estados e até de terras longínquas do Oriente, das regiões da Síria e do Líbano.

            O incipiente arraial haveria de progredir sob a inspiração mágica daquele coronel que manda construir um sobrado de bonita arquitetura para sua residência, o primeiro e único daquela povoação, pouco importando o aspecto simplório do arraial de chão coberto de lama e capinzal. Aquela construção de aspecto senhorial, com suas janelas de gradis de ferro trabalhado e emolduradas por lindos florões esculpidos em cimento nas suas três fachadas, era um atestado de amor à terra e confiança no seu futuro. Acolhedor, tornou-se aquele sobrado o centro da vida política e social do arraial de Tabocas. Nos seus salões, importantes decisões da política e da vida regional foram tomadas, sem falar nas alegres comemorações nele realizadas e nos animados saraus dançantes feitos sob a claridade de bonitos lustres de bico de gás e ao som de um piano que o Coronel mandara buscar em Salvador. Entre jarrões de louça alemã e o tinir de cristais, poesias eram declamadas pelos moços da terra e, pelas jovens mais dotadas de voz, belas canções quebravam o silêncio das noites do arraial. Eram os encontros de congraçamento que o “sobrado do coronel” proporcionava, consolidando, fortalecendo uma sociedade em formação. O bonito sobrado era o cérebro e a alma do arraial e depois vila de Itabuna.

            Já tendo constituído família, casado com dona Lucrécia Selmann, de tradicional família ilheense, coronel, Firmino Alves envia suas filhas a estudarem em Salvador, a despeito de todas as dificuldades de transporte da época e embora vivendo num meio onde poucas mulheres tinham acesso à instrução.

            Esse coronel de maneiras simples e afáveis, crescido e vivido na mata e depois no arraial, tinha alma de esteta. Além da bonita construção de sua residência, presenteia uma de suas filhas casadas com um outro belo sobrado de inusitado estilo para aquele meio, aqueles primeiros tempos de Itabuna, uma imitação de um castelo medieval. Essa construção foi entregue à direção do mestre de obras, o português “seo Américo”, responsável por muitas das melhores obras de Itabuna. Internamente, as suas paredes foram decoradas com lindas pinturas de flores e guirlandas em suave colorido, num trabalho primoroso de um pintor vindo especialmente de Salvador para executá-lo. O lindo teto de madeira trabalhada e o piso de madeira de lei, além da bela porta de madeira entalhada e vidro bisotado, acabavam de enriquecer todo o conjunto. Esse sobrado, o “castelo” como era chamado, ficou como um marco na paisagem urbanística de Itabuna pela sua beleza e arquitetura fora do comum.

            O progresso material em Tabocas era sensível, corria dinheiro, casas eram construídas, as sacas de cacau se empilhavam nos depósitos das fazendas e nos armazéns, as tropas cresciam, o comércio se movimentava, mas a população crente e fervorosa se ressentia da falta de vida espiritual. Atendendo aos apelos das almas piedosas, José Firmino dá uma área de suas próprias terras para que fosse nela erigida uma igreja sob o patrocínio de São José – à qual seria mais tarde a igreja matriz de Itabuna (1893).

            O povoado de casinhas modestas e ruas enladeiradas crescia cada vez mais. Gente boa e gente ruim nela fincava pouso; era a aventura do dinheiro, o desejo da fortuna através dos frutos amarelos dos cacaueiros.

            Chega o ano de 1906. O distrito de Tabocas, desmembrado do município de Ilhéus, passa a município, vila e termo com o nome de Itabuna. Uma representação fora enviada à Câmara dos Deputados Estaduais, pedindo a criação do Município de Itabuna. Um dos signatários era o coronel José Firmino Alves, que se comprometia a doar os prédios necessários para a Intendência, o Quartel da Polícia e a casa do Juiz Preparador. Vai à capital do Estado e solicita, pessoalmente, do Arcebispo Dom Jerônimo Tomé da Silva, a criação da Paróquia. Diante das dificuldades apresentadas pela falta de padres disponíveis, José Firmino faz uma discreta advertência: “Bem, Eminência, se não há um sacerdote católico que possa ir para a vila de Itabuna, então convidarei um Pastor protestante”. O impasse é logo resolvido e fica garantida a vinda de um vigário para a futura paróquia, comprometendo-se mais uma vez Firmino Alves a doar como patrimônio da mesma uma casa para residência do vigário, que seria o Monsenhor Moisés Gonçalves do Couto, o primeiro a ocupar o importante cargo. Assim foi criada a Paróquia de São José (1908).

            Em recompensa pelos seus serviços no campo espiritual, foi Firmino Alves agraciado pelo Santo Padre Pio X, com a comenda Pró Eclesia et Pontifice e a bênção papal (1913).

            Esse homem de espírito batalhador e coração generoso ficou rico, conservando uma modéstia singular. Chefe político de grande prestígio, jamais pleiteou para si uma eleição, como também jamais deu guarida a jagunços em suas fazendas ou praticou um ato que desabonasse a sua conduta.

            A vila de Itabuna prosperava rápido. Muita gente para ela convergia. Vieram os morigerados e trabalhadores, vieram assassinos e desordeiros. Dias alegres e dias de terror marcavam seu calendário. Firmino Alves participa de memoráveis acontecimentos políticos como líder respeitado. Num período de muitas violências, quando o banditismo atingiu uma de suas fases mais agudas, ele foi a Salvador e, pessoalmente, expôs ao Governador, o dr. Araújo Pinho, a caótica situação. Inteirado das terríveis ocorrências, o dr. Araújo Pinho, que tinha conhecimento do valor moral de Firmino Alves e do seu espírito ordeiro, ofereceu-lhe as posições políticas do Município e cargos para seus amigos, o que lhe dava com isso, amplos poderes para mandar e desmandar. Mas, delicadamente, ele recusa o poder e diz ao governador que nada deseja para si próprio, queria apenas uma coisa: a manutenção da ordem, e ficava satisfeito. O governador promete atender o seu pedido e nesse sentido nomeia um Delegado Regional que vem com uma força policial manter a ordem e pacificar o Município.

            Os anos passaram e o Patriarca de olhar calmo e semblante plácido viu o seu povo crescer. Viu crescer a cidade que ele criou com amor e com honradez a legou à posteridade.

            A sua vida de trabalho e lutas políticas não passou incólume de sofrimentos e ingratidões. Amargou os dissabores da política e do banditismo. De certa feita teve de refugiar-se em Salvador por mais de seis meses para escapar à fúria assassina de seus adversários políticos, mas sem nunca deixar de lutar pelos interesses de sua terra.

            Com elevado espírito público viveu com desprendimento, amando a cidade que nasceu de seu sonho, dando a ela tudo o que pôde dar de bom e de si mesmo.

             Por motivos particulares, nos últimos anos de sua vida passou a residir em Salvador. Era o pássaro ferido, engaiolado, saudoso da amplidão das matas verdejantes onde vivera.

            Sentindo o peso da idade, sentia também saudades da terra querida, daquele chão que pisara desde a adolescência, daquele céu que tantas vezes mirara, daquelas estrelas que tantas vezes tentara contar nas noites escuras da mata. E volta em busca de sua Itabuna querida, para nela dormir o sono derradeiro e entregar à terra amada os despojos do velho guerreiro, já cansado e combalido de tantas lutas. Não quis dormir em terras alheias, buscou o seu povo, o Patriarca que previu o futuro e grandeza de uma cidade.

(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema

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