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sexta-feira, 19 de abril de 2024


Memórias Infantis de Graciliano Ramos

Cyro de Mattos

 


             Vê-se em Infância (1945), de Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma pobre e as coisas em estado atrasado, disso resultando gestos e impressões com opressão e violência, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com batidas leves.  Assim, nas queimaduras de uma poeira que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer áspero fora acostumado muito cedo aos maus tratos e castigos.

            Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco. Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas de dores e incompreensões.  As informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira pungente, expostas nas páginas ausentes de afeto, desde o amanhecer até quando chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.

            O menino esteve mergulhado certa vez numa comprida manhã de inverno, o açude cheio, a roça tingida de amarelo e vermelho, as folhas pestanejando como cílios, os caminhos estreitos virados em riachos. Convivendo com toda essa paisagem molhada, gostaria que a natureza assim permanecesse na alma.  Com a passagem dos dias, as árvores perderam as folhas, o sol bebeu a água da terra, a natureza indiferente substituiu o que era riqueza pela aridez das estações, que se introduzira na paisagem caracterizada pela solidão e incômodos. A vida passou então a ser lenta, calcinada, o dia envolvia tudo com forte calor, trevas densas ofuscavam claridades quando chegava a noite para a longa duração.  

            Dessa poeira cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante, sofrido.   Agora a realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo seco, focado numa humanidade despreparada para o afeto, acompanhada de momentos toscos vinculados ao tormento. Na angústia fixada com a secura de alma, os sentimentos nas memórias infantis e na ficção do autor de estilo descarnado, unindo o passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos, avultam as atitudes de rancor, seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera sombria feita de niilismo devastador.                  

            Encontram-se nessas memórias da vida calejada com a hostilidade   as marcas pessimistas dos gestos fornecidos pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória, chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca, era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada de sentimentos sem brandura, movidos com a dureza do cotidiano. Montava, atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.

            O espírito infantil de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora hostil, ranzinza, sempre a mexer-se com uma boca má, olhos perscrutantes que em momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos calosas, nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito com suas vozes absolutas.  

            Nesse ambiente familiar de natureza hostil era comum que ouvisse no seu recanto pancadas, tiros, pragas, ruído de espora, pisadas fortes de sapatões no piso gasto. Houvesse a voz severa que comandava com atitudes enérgicas, às vezes vinha acompanhada de um riso cavernoso, alastrava-se nos perigos ocultos alojados por todos os recantos. O medo instalava-se assim como um gigante da alma numa paisagem interior de vida iniciante indefesa, de estrutura insipiente, que hesitante sabia que era impossível se armar com o auxílio de fraquezas; por isso mesmo não podia ter o alcance de bons resultados com sentimentos leves, pensamentos doces, como confessa o escritor em trecho de suas contundentes memórias da infância. (página 10, segunda edição, 1952)

            Nesse círculo familiar, em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis, absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor, nesta circulava uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o cinturão grosso.  

            Na surra terrível com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso em família. Sem afeto e compreensão atuava no papel de réu como uma coisa insignificante, semelhando um objeto inerte, admitindo o desempenho de sua função como normal, por ser frágil, conformado quando então fosse castigado, apanhasse, tomasse surras. Na que tomou com o cinturão grosso, foi antecedida de dura mortificação com a fase preparatória, o quadro apresentava-se com particularidades impiedosas nunca vistas. Refletiam-se através do olho duro a magnetizá-lo, dos gestos ameaçadores, da voz rouca, a mastigar uma interrogação incompreensível.

 

“Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando.  E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)

 

            Subalterno da voz absurda admitia que era justo o que se fazia com ele.  Na surra que tomou com o cinturão acontecera seu primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.

            De suas memórias infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a marca de coisas desagradáveis.  Chico Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Era o vizinho da direita. A casa onde morava o menino ficava perto da residência da família Sabiá. Quando ele falava com o vozeirão, o bendito de D. Conceição murchava, as conversas desapareciam, o cochicho dos moleques, o rumor do abano na cozinha, o crepitar das labaredas que lambiam o angico no fogão.  Era como se o homenzarrão tivesse atravessado portas e paredes, com a cara balofa surgisse de repente junto dele, com os olhos miúdos de porco se tornasse irreconhecível na sua assombração. Parecia um bicho que apavorava, sem as gentilezas que o amaciavam na calçada e na rua.

            Uma das recordações mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando, sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo. Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma vertebrada e muito ágil. 

            De suas memórias marcadas pelo tom pessimista percebe-se de vez em quando que nem todas as pessoas eram dotadas de mesquinharia e rabugice. Em algumas não funcionava o grotesco como marca indelével do do caráter no difícil gesto do viver. D. Maria, a velha professora, era dona de uma serenidade que se aproximava da santidade. De Mário Venâncio via-se um literato que havia chegado à terra, alguns afirmavam que estava nele um sujeito profundo. Tinha o rosto fino como focinho de rato, alguns chegavam a dizer que era um sujeito dono de questões profundas, colaborador de jornais com artigos e crônicas, autor de livros. Esse homem apontado como dono de conhecimento sobre as questões que inquietam os humanos prenunciava para o moço um bom futuro. Via na sua escrita iniciante sinais de um Coelho Neto, nas descrições convincentes vestígios do naturalista Aloisio Azevedo. O vaticínio era repelido, mas não escondia que o engrandecia e ao mesmo tempo alarmava com a desconfiança. A vaidade esmoreceu depois quando examinou os escritos com calma pensando que a vida toda amargaria o provável engano.

            De todas as páginas escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa singular, concisa e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.     

            Em “Um Incêndio”, o menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a cobertura de folhas de Ouricuri.  Tinha conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João.  Fogo imenso com labaredas altas e fumaça impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno de   um resto de gente, um torrão sem braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia morrido queimada no incêndio.  Havia duas meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando de dentro da cabana as coisas que achava como importantes.  Quando pensou que conseguira salvar todas as coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da entrada bloqueada pelo fogo.

 

“Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo seios nem sexo,  perdiam-se os restos da animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente   um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)

 

           Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio. Amaldiçoava   o amigo, que o expusera à tamanha desgraça. Durante o dia voltou a mencionar a visão com o restante de um corpo de gente, a descrevê-la nos detalhes, enojado. Responsabilizou Nossa Senhora como autora daquela agonia sórdida.  Se a criatura não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria  cortando palma de Ouricuri para fazer nova cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação inconveniente. Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do purgatório.  Não lhe convenceu o argumento com a benesse estranha ao drama.  Não lhe pareceu que o fogo do purgatório tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com um defeito de cor, não estava no céu.

 

 “Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia as asas dos anjos”. (pág. 86)

 

         Nessas memórias infantis tomamos conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua ficção regional destinada ao leitor adulto uma atmosfera angustiante coberta de sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. A propósito, ele próprio admitia ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não servem para nada.  Em Buíque, na primeira escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados.  Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos.  

           Já foi dito que a vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida. Toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra magnífica como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos das ruas ásperas, calcinadas, de paisagem sombria em que andamos.   Neste sentido, o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.


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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Tributo A Manoel Dos Passos Galvão Filho

por Sílvio Porto de Oliveira


“O Dr. Galvão Filho foi um visionário e pioneiro na área da cirurgia, cujo notável talento e dedicação revolucionaram o campo médico do Sul da Bahia, salvando vidas e abrindo caminho para avanços médicos futuros."


Este foi outro gigante da nossa medicina.
Ao lado de Alicio Peltier de Queiroz e Alair Castro trouxeram o novo para a nossa medicina regional. Revolucionaram a arte de se fazer medicina com qualidade, ensino e expandir os nossos horizontes científicos com estímulos a produção científica e medicina de valor.
Marcou a vida de uma geração de médicos filhos de Itabuna, valorizando os colegas e o compromisso de voltarem para Itabuna.
Ele dizia: Itabuna tem que valorizar os filhos da terra e recebê-los na sua comunidade médica com todo amor e carinho.
Abrir as portas para todos.
Este sempre foi o seu lema.

O Dr. Galvão Filho deixou um legado inestimável como um médico cujo compromisso com a arte da Medicina e seu foco no valor científico do trabalho médico são exemplos inspiradores para toda a comunidade médica. Sua dedicação incansável em busca de avanços e inovações transformou a vida de inúmeras pessoas, estabelecendo novos padrões de excelência e promovendo o bem-estar da humanidade. Seu legado perdurará como um farol de esperança e inspiração para todos aqueles que amam a Medicina, lembrando-nos da importância de ir além dos limites conhecidos em busca de melhores cuidados de saúde.

Dr. Galvão foi um pioneiro na oncologia cirúrgica, deixando um impacto significativo no campo da saúde e bem-estar das mulheres na região cacaueira da Bahia. Sua dedicação e trabalho incansável na prevenção do câncer ginecológico trouxe uma nova perspectiva para a saúde feminina, capacitando e educando a população local sobre cuidados preventivos e exames de rastreamento. Seu compromisso em oferecer acesso igualitário aos serviços de saúde e sua busca contínua para melhorar a qualidade de vida das mulheres foi exemplar. O legado do Dr. Galvão certamente viverá como um exemplo de como a medicina pode fazer a diferença positiva na vida das pessoas e comunidades.
O trabalho de prevenção do câncer ginecológico na região cacaueira, que foi aceito e apresentado em Congresso Internacional na Alemanha, bem como a primeira cirurgia laparoscópica realizada na Bahia foram marcos importantes na consolidação de Itabuna como um centro médico respeitado no interior da Bahia.
Com justiça e merecimento Dr. Manoel dos Passos Galvão Filho fica imortalizado na nossa Academia de Medicina .

 Hoje no dia de seu aniversário nosso reconhecimento ao extraordinário trabalho e contribuição a medicina do Sul da Bahia, da Bahia e do Brasil.
Vida longa para Galvão Filho!


Silvio Porto de Oliveira
Itabuna 18/04/2024

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sexta-feira, 12 de abril de 2024

 

Mundo Indígena

Cyro de Mattos

 


          Bahetá, a velha indígena, ensinava como era importante o milho para o batismo quando então o pajem colocava o nome na criança simbolizando a sua verdadeira alma. Lembrava que algumas partes da anta deviam ser reservadas para os espíritos. Certa porção era preparada e depositada na mata para os encantados. Aconselhava ao caçador que ingerisse infusão de vegetais aromáticos antes de sair para caçar. A escolha do vegetal dependia da espécie de animal escolhido para caçar.

          Acreditava que alguns alimentos não deviam ser consumidos em certo período para evitar transtorno. As mulheres, após darem à luz, não comem carne de tatu ou de cágado d’água, tais alimentos tornam o recém-nascido com a saúde precária, são proibidos de serem ingeridos pelas indígenas da aldeia.  

          Deviam ter gratidão pelo tamanduá, não matando, nem se alimentando dele. Foi ele quem ensinou cantos e danças, pois em outros tempos já tinha sido gente como eles. Um caçador oferece para uma mulher um alimento que trouxe da mata, e, em retribuição, recebe uma comida por ela preparada. Dessa forma, a amizade entre as famílias era constantemente fortalecida.

         Chamava atenção para alimentos considerados como sagrados, agindo espiritualmente naquele que se alimenta deles como ingredientes positivos. No período da puberdade, o beiju com molho de pimenta, o peixe cozido e a cabeça de peixe são benzidos e defumados antes de serem consumidos pelas meninas.          

          Conhecia dezenas de lendas pertencentes ao seu povo. Era com alegria contagiante que contava a lenda da mandioca. Explicava a sua história e a origem.  Mani era ainda pequena e muito querida pela aldeia.  Neta do cacique, foi motivo de tristeza para o chefe da tribo quando apareceu grávida. Isso porque não era casada com um bravo guerreiro, como ele desejava.

          O cacique obrigou a filha a dizer quem era o pai do seu filho, mas ela   dizia que não sabia como tinha ficado grávida. A desonestidade da filha desagradava muito o cacique. Até que um dia ele teve um sonho que o aconselhava a acreditar na filha, ela continuava pura e dizia a verdade ao pai. Desde então, aceitou a gravidez e ficou muito contente com a chegada da sua neta.

          Um dia, perto de clarear a manhã, Mani foi encontrada morta na taba. Ela simplesmente tinha morrido durante o sono e, embora sem vida, apresentava um rosto alegre. Foi enterrada dentro da sua oca por sua mãe, cujas lágrimas umedeciam a terra tal como se estivesse sendo regada. Dias depois, nesse mesmo local nasceu uma planta, diferente de todas as que a tribo conhecia.  Percebendo que a terra estava ficando rachada, cavou na esperança de que pudesse desenterrar sua filha com vida. A mãe da menina encontrou uma raiz, a mandioca, que recebeu esse nome em decorrência da união do nome de Mani e da palavra oca, que significa moradia indígena de uma ou mais famílias.

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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, ensaísta, cronista, romancista e autor de literatura infantojuvenil. Editado também em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha e Estados Unidos. Premiado no Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.  Autor de mais de 80 livros.

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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Editora de Portugal Publica

Outro Livro de Cyro de Mattos

Inspirado no Rio Cachoeira


 

A editora Palimage, de Coimbra, Portugal, acaba de publicar Águas de Meu Rio, de Cyro de Mattos, livro que contém um poema dividido em vinte partes em que o autor denuncia em versos pungentes e doloridos o estado atual do Rio Cachoeira, largado ao abandono como um grande esgoto que escorre a céu aberto. Com prefácio da poeta e musicista Denise Emmer, da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, Rio de Janeiro, traz na capa uma foto histórica com o autor sentado em uma pedra das margens do rio, observando as lavadeiras quando lavavam as roupas numa manhã ensolarada, em 1966. No Brasil, Águas de Meu Rio foi publicado pela Editora Ibis Libris, do Rio de Janeiro. Este livro forma com os volumes Vinte Poemas do Rio e O Discurso do Rio a Trilogia das Águas, inspirada no rio Cachoeira. A Editora Palimage (www.palimage.pt) publicou anteriormente cinco livros do poeta grapiúna e que são estes: Vinte Poemas do Rio, O Discurso do Rio, Vinte e Um Poemas de Amor, Ecológico e Poemas Ibero Americanos. Sobre a poesia de Cyro motivada pelo rio de sua terra natal disse o poeta Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras: “Poeta de voz límpida como o seu rio, de música e sabedoria do silêncio”. E a poeta e ficcionista Stella Leonardos, detentora de prêmios literários importantes, observou: “A poesia de Cyro de Mattos é da boa, inventando o seu próprio ritmo (como queria o mestre Manuel Bandeira) dentro do soneto, com recursos verbicovisuais e, inclusive, neologismos adequados”.

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sexta-feira, 29 de março de 2024

 

Crônica da Procissão da Sexta-Feira Santa 

Cyro de Mattos  

 


          Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer por isso. 

            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens. 

            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus na cruz de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus, muita gente chorava. 

            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora, o cinema quase vinha abaixo com as vaias da plateia. 

           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas principais da cidade sob os cantos orantes, que falavam de pesares  e perdão: 

 

                             Perdoai, Senhor, por piedade, 

                             Perdoai, Senhor, tanta maldade, 

                             Antes morrer, antes morrer 

                             Do que Vos ofender, 

                       Perdoai, Deus do amor. 

             

        A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto, as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo Salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido roxo, que tocava os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário. 

            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava. 

                              

                           Pai salvador, 

                          Misericordioso, 

                         Toca no meu peito 

                        O sofrimento Teu.                   

                        Fadiga, sede, fome. 

                       Cuspe, espinho, sangue,                    

                       Chicotada, prego, 

                       Madeira feita cruz, 

                       Meu Pai, perdoai 

                       Os pecados meus. 

 

            Naquele ano, em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja, para ser colocada no altar, quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados. 

            No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As botinas novas apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. Os calos estão doendo muito, não aguento mais, disse aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim. 

            Preferi não obedecer à minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse uma situação muito pior do que aquela que se deu com a beata Detinha. Como ela, eu desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo. 

            Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão com a sua voz bondosa, escutei ela dizer que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas. 

            Mas muita gente reparou depois na atitude de minha mãe, achou que menino mimado daquele jeito poderia não dar certo no futuro.        

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Cyro de Mattos é contista, poeta, romancista, ensaísta, cronista e autor de livros para crianças. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz

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quinta-feira, 21 de março de 2024

 

Livraria Civilização

Cyro de Mattos



Quando estudante universitário, uma das coisas que gostava era de ir à Rua Chile. Quase todos os dias, visitava a Livraria Civilização Brasileira como uma necessidade que o tempo impunha, semelhante àquela quando se tem sede ou fome. Na Livraria Civilização, de Dmeval Chaves, livreiro muito amigo de Jorge Amado, percorria as prateleiras, procurando achar algumas dessas raridades literárias, que há algum tempo estivessem com a edição esgotada. Perguntava ao vendedor Toninho se havia chegado algum livro novo de literatura. Examinava na vitrina as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Lima Barreto. Os livros de Dostoiewski, Hemingway, Faulkner, Sartre e Camus. Sagarana, de João Guimarães Rosa, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, lá estavam para causar impacto e opiniões acaloradas entre os companheiros de geração.

Era na Livraria Civilização que me encontrava com os companheiros de geração, à qual alguns deles pertenciam por afinidades eletivas, enquanto outros em razão da idade. Ildásio Tavares, Alberto Silva, Ricardo Cruz, Marcos Santarrita, Orlando Sena, Olney São Paulo, João Ubaldo Ribeiro, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Davi Sales, João de Góes Berbert, Carlos Falk e Carlos Nelson Coutinho. Encontrava, quase todos os dias, com três ou quatro desses companheiros de militância cultural, que se iniciava como botão ou rosa entreaberta no mundo da ideia e emoção.

Conversava com Calasans Neto, Jurema Pena e Florisvaldo Mattos. Via o professor Machado Neto com os olhos atentos por trás dos óculos de lentes fortes perscrutando algum exemplar, provavelmente de sociologia ou filosofia. Cruzava com Hélio Rocha, Nélson de Araújo, Vivaldo Costa Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Sonia Coutinho. Era comum naquele tempo Glauber Rocha aparecer com Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres, ou ainda com Carlos Anísio Melhor e Oto Bastos. Inteligência privilegiada, Glauber Rocha formava com os seus companheiros de geração um grupo de intelectuais irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador.

Na Rua Chile, às sextas-feiras, pelo fim da tarde, gostava de ficar olhando nas vitrinas as camisas da última moda, a serem usadas pelos jovens no verão. Depois, naquele momento antecedido de ânsia, lá ficava no passeio de alguma loja, recostado à parede, vendo as garotas que desfilavam com uma ginga provocante. Mulatas, morenas, louras. Nelas aquele cheiro bom de maresia e ventos por toda a extensão da pele. Minhas preferidas eram as mulatas. De olhos gateados, seios despontantes, curvas sensuais. Não podia ver uma dessas mulatas com os quadris rebolando, com todo aquele sabor na pele de fruta gostosa, como já me referi. O romancista João Ubaldo Ribeiro se aqui estivesse agora não me deixaria mentir.

Era lá na Livraria Civilização Brasileira que, entre um cafezinho e outro, intelectuais discutiam e compravam livros. A livraria famosa acabou num incêndio. A Rua Chile despareceu depois que a cidade transportou sua vida empresarial para o Polo Iguatemi.

Como conforto de tudo que se evaporou, o tempo me fez autor de 70 livros, de diversos gêneros. Alguns fossem publicados também em outros idiomas. Quis que vários deles fossem adotados na escola e universidade. Constassem do acervo de livrarias importantes, como Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Fundação Eugênio de Andrade, Porto, Portugal; Biblioteca da Universidade de Austin, Texas; Biblioteca do Congresso, Washington, USA, Biblioteca da Universidade do México, EUA; Biblioteca Nacional (Rio), Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, Biblioteca Pública do Estado da Bahia, Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, Salvador; Biblioteca Municipal de Itabuna, Biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz, Sul da Bahia, Biblioteca da Universidade da Maramata, Ilhéus; Biblioteca do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões, Centro de Documentação, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Biblioteca Pública Central dos Barris, Salvador.

Nessa estrada dos livros, a essa altura comprida, nunca vou me esquecer do vendedor Toninho, da Livraria Civilização Brasileira. Vendeu muitos livros em prestações razoáveis ao moço do interior, de mesada apertada, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Sempre me reservava boas surpresas.

- Olhe aqui o que eu guardei para você – mostrava-me o livro com o riso costumeiro.

Era o último exemplar de O Muro, contos, de Jean Paul Sartre.

 

Cyro de Mattos - Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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