Chegou em casa meio cansado, o cenário da rua era o mesmo de todo dia. “Boa tarde, dona Dos Anjos”. Era a vizinha da frente que ficava todo dia sentada na ponta do passeio quando a sombra chegava.
Ele lembrava de coisas vagas, de pessoas. A chuva vai desabar neste instante, pensou olhando para a barra escura formando-se para as bandas do Sul; parecia que a noite chegava, mas a Ave Maria ainda estava longe. Destrancou a porta e entrou, tudo turvo e quente; acendeu a lâmpada da sala e avistou, no meio da mesa ao centro, um pedaço de papel branco com uma caneta ao lado; na tira de papel estava escrito: Eliana; reconheceu, perfeitamente, a caligrafia de Eliana , graúda, letras irregulares; embaixo, outra vez, agora garatujada , parecendo escrita às pressas.
Não deixara nenhum pedaço de papel sobre a mesa, nem caneta; sentiu uma sensação estranha e a primeira coisa que lembrou foi dos pés de Eliana; pelo Natal do ano passado comprara para ela um par de sandálias brancas número 34. Depois de um ano sumida, Eliana aparecia agora. Como conseguiu entrar se a porta estava trancada?
O pedaço
de papel escrito seria qualquer papel antigo levado pelo vento para o centro da
mesa; e a caneta?
Sentia-se
confuso. O nome repetido teria sido escrito naquele instante, a tinta ainda
estava fresca – Eliana. A mesma caligrafia, em cima e embaixo; não era bonita, igual
a do ano passado: “Boas Festas e Feliz Ano Novo. Beijos” Se ainda tivesse
aquele cartão de Natal faria uma comparação entre ele e o escrito no pedaço de
papel; nem precisava isso, era uma cópia, a mesma coisa, até a irregularidade
das letras - umas, verticais; outras, inclinadas. Eliana escrevia sempre assim.
E a caneta ao lado do pedaço de papel? Não havia deixado nada disso sobre a
mesa. Eliana gostava de futucar pela geladeira, pelo armário, mas na geladeira
e no armário não havia nada fora do lugar, até uma lata com doce seco estava lá,
intacta como deixara. Eliana teria entrado às pressas. Por que não deixou uma
explicação? “Estive aqui, quero lhe ver!” Ou qualquer coisa assim, mesmo sem
desejar-lhe Boas Festas.
Queria
esquecê-la, passar o Natal sem recordá-la em nenhum momento. Mas agora, na
antevéspera, ela teria voltado para reviver momentos amargos e ditosos. Lembrou
das tardes de sol, tomando sorvete com ela no Jardim da igreja, olhava para os
pés pequenos de Eliana, para as pernas cruzadas cor de bronze, para o cabelo
voando pelo vento; da despedida cheio de tristeza. “Será que eu ainda me encontrava
em casa quando ela destrancou a porta?” Tornou a ler o nome de Eliana no pedaço
de papel, em cima e embaixo cópia fiel, as letras disformes; gostaria de ver Eliana
frente a frente. Ela teria ainda o mesmo sorriso? Certamente. Um ano não
mudaria o sorriso dela. Lembrava das sandálias brancas; pensou perguntar a
vizinha da frente se ela teria visto Eliana entrar, mas a vizinha não conhecia Eliana,
era novata na rua. Pelo menos informaria se alguém havia entrado. Como, se a
porta estava trancada e Eliana não tinha a chave? Lembrou novamente do pedaço de
papel, da caneta ao lado. “Eliana”, estava escrito duas vezes, letra autêntica,
inquestionável. Leu e releu, estava conferido. Ninguém mais que ele conhecia a
letra de Eliana, desde o tempo dos bilhetinhos; a tinta ainda estava fresca, não
se tratava, assim, de coisa antiga. Fez conjeturas, voltou a ler o nome escrito
duas vezes no pedaço de papel em cima da mesa, revivendo sentimentos, lembranças
renascendo, os pés de Eliana, as sandálias brancas número 34.
Ela teria
jogado o pedaço de papel por baixo da porta? “Impossível”. Por que estava lá
no centro da mesa, com uma caneta ao lado? Se soubesse onde Eliana se
encontrava seria capaz de procurá-la para uma explicação. E se fosse repelido por
ela! Eliana não é mal-educada e diria qualquer coisa, calma, mesmo sem um ar de
riso. Foi assim, assim; diria tudo a ela. As assinaturas pareciam dizer: “quero
voltar”, que ainda o lembrava com algum afeto. A letra era do próprio punho, nem
tinha dúvida. Repelia a ideia de uma reconciliação, mas gostaria de um esclarecimento.
A noite acabava de descer; foi deitar-se sem um pingo de sono, com o juízo sem
mudar de rumo. “Se Eliana batesse agora na porta?” Compraria um presente para
ela, de preferência umas sandálias brancas número 34.
Tudo isso
foi imaginação de João Lopes, menos a vizinha, era somente saudade de Eliana que
nunca desapareceu de sua cabeça, com mais força quando o Natal se aproxima.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da
Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado,
primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu
por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A
Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico ‘Terra
Nossa’, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em
Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de
Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.
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