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quinta-feira, 20 de maio de 2021

PLEBISCITO – Artur Azevedo



Plebiscito

Artur Azevedo

 

          A cena passa-se em 1890.

          A família está toda reunida na sala de jantar.

          O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

          Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

          Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

          Silêncio.

 

          De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

          - Papai, o que é plebiscito?

          O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

          O pequeno insiste:

          - Papai?

          Pausa:

          - Papai?

          Dona Bernardina intervém:

          - Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.

          O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

          - Que é? Que desejam vocês?

          - Eu queria que papai me dissesse o que é Plebiscito.

          - Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

          - Se soubesse não perguntava.

          O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

          - Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

          - Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

          - Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

          - Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

          - Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

          - A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

          - A senhora o que quer é enfezar-me!

          - Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber!

          - Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

          - Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

          - Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

          - Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: -  Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

          O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

          - Mas se eu sei!

          - Pois se sabe, diga!

          - Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

          E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

          No quarto havia o que de mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

 

          A menina toma a palavra:

          - Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é perigoso!

          - Não fosse tolo – observou dona Bernardina – e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

          - Pois sim – acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão – pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

          - Sim! sim! Façam as pazes! – Diz a menina em tom meigo e suplicante. – Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!

         - Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

         - Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

          O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

 

          - É boa! – brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; - é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

          A mulher e os filhos aproximam-se dele.

          O homem continua num tom profundamente dogmático:

          - Plebiscito...

          E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

          - Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

          - Ah! – suspiram todos, aliviados.

          - Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

 * * *