O que mais
me recorda na fazenda Boa sorte é um cortiço que havia no meio de uma queimada
próximo à sede da fazenda. Meu tio, que tinha faro para essas coisas do mato, foi
quem descobriu; ficava entre uns tocos de juremeiras queimados na capoeira.
Chegamos sol
a pino, cansados, os animais sedentos, emperrando depois de quatro léguas entre
ladeiras, alagados e piçarras. A água conduzida por meu tio, num aió, era morna
e só fazia encher a barriga da gente. Vez em quando ele sumia pelo mato e
voltava com o embornal cheio de imbus, “chupem que mata a sede”, dizia.
De tempo
em tempo meu pai sugeria um descanso para a gente, minha mãe maldizia a viagem.
De cabelo preso em popa, saia beirando os tornozelos, ia de banda na anca de um
cavalo alazão que tinha as crinas longas e um picado miúdo. Eu e meus irmãos,
mergulhados em caçuás, íamos quase impedidos de ver as coisas; mesmo assim lembro-me
de gado pastando junto a alagados; cabras remoendo pelas ribanceiras e urubus
revoando pelo céu limpo, acinzentado.
Era meio-dia
quando entramos pela porteira de frente à casa grande da fazenda, que ficava no topo de uma elevação
disfarçada. Antes, havia uma represa de água barrenta onde patos brancos
deslizavam, mergulhando os bicos pela superfície. O sol fazia o espaço tremulante.
Pessoas na varanda movimentaram-se com a
nossa chegada. Havia um homem corpulento, de paletó branco e colete cor de
cinza, botas e espora; dois meninos pelados, e uma mulher franzina e alta, de
cabelo curto e ondeado. Eram nossos parentes.
Em meu juízo, espantado com as novidades,
passavam imagens que ficaram distantes – a igreja, nossa casa defronte; os
repiques de sinos, os meninos tomando banho nus em um braço de rio que passava
embaixo de uma ingazeira.
Durante o
almoço causei muito desgosto à minha mãe, pondo em prática meus modos
desatinados. Felizmente meus parentes eram pessoas simples e não se mostraram
constrangidos com o meu comportamento. Não foi necessário muito tempo para
acostumar-me com o novo ambiente onde eu corria atrás das cabras, trepava pelas
cercas do curral para ver as vacas leiteiras trocando chifradas, dando joelhadas nos bezerros esticando os
úberes inchados de leite. Ia decorando os nomes dos animais com letras nas traseiras,
marcadas com ferro em brasa. Quem fazia a “ferra” era um vaqueiro preto e
baixo, de um olho só. Os garrotes e as novilhas esperneavam urrando; o negro,
ajoelhado nos vazios, queimava sem piedade. Meu tio orientava a cabroeira que
ajudava no serviço.
No dia em
que deixamos a fazenda, caía uma chuva fina e as vacas leiteiras se espalhavam
pela pastagem em frente à casa grande onde um touro malhado urrava e batia as
patas no chão empoçado. Saímos por outro caminho que não passava pela capoeira
onde meu tio encontrou o cortiço.
Voltar atrás na questão da prisão após condenação em 2ª
instância incentiva esquemas de corrupção
O ministro do STF Luís Roberto Barroso, que defende prisão
após condenação em 2º grau - Fátima Meira/Futura Press/Folhapress
LUÍS ROBERTO BARROSO
E ROGERIO SCHIETTI
Processos --cíveis ou criminais-- deveriam demorar seis
meses, um ano. Um ano e meio quando muito complexos. No entanto, acostumamo-nos
com um patamar muito ruim de celeridade, em que os casos levam 3, 5, 10, 20
anos até serem concluídos. O Judiciário passou a ser o refúgio de quem não tem
razão, porque no mínimo se consegue adiar por muitos anos qualquer
responsabilização. Esse atraso tem custo social, econômico e moral.
O sistema penal brasileiro, por sua vez, é extremamente
disfuncional. A sociedade tem duas grandes aflições: violência e corrupção.
Porém, mais da metade dos 726 mil internos estão nas nossas tétricas
penitenciárias por crimes não violentos. Quase 30% estão lá por delitos punidos
pela Lei de Drogas. Geralmente são presos em flagrante e permanecem presos
desde antes da decisão de primeiro grau. Com essas pessoas, o sistema é bem
duro.
Já os presos por corrupção e delitos afins correspondem a
menos de 1% do total. Criminosos do colarinho branco, que só na aparência não
são violentos --muita gente morre e adoece por conta dos dinheiros desviados--,
utilizam sucessivos recursos, adiando o julgamento definitivo, o que, não raro,
leva à prescrição. Com essas pessoas, o sistema é bem manso.
Em 2016, por três vezes, o Supremo Tribunal Federal deu um
importante passo para mudar esse quadro. E, assim, passou a permitir a execução
da pena após a decisão de segundo grau. Como é em quase todo o mundo.
Há quem se oponha a esse entendimento e defenda que se deva
aguardar o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), na crença de que
assim se evitaria uma grande quantidade de erros judiciários. Porém, pesquisa
desenvolvida a pedido do primeiro autor deste texto, coordenada pelo segundo
autor e executada pela Coordenadoria de Gestão da Informação do STJ, revela que
a preocupação não se justifica. Todos têm direito à própria opinião. Mas eis os
fatos.
O percentual de absolvição em todos os recursos julgados
pelo STJ no período de dois anos, entre 1/9/2015 e 31/8/2017, foi de menos de
1%. Para ser exato, foi de 0,62%. Outro dado a ser considerado: 1,02% das
decisões importou na substituição da pena privativa de liberdade por pena
restritiva de direitos. Isso é, o réu foi condenado, mas recebeu o benefício de
não ir preso.
A soma dos percentuais de absolvição e de substituição de
pena é de 1,64%, revelando o baixo número de decisões reformadas que produzem
impacto sobre a liberdade dos condenados. E, mediante habeas corpus ou medida
cautelar, é possível ao STJ e ao STF suspender o início do cumprimento da pena
quando vislumbre possibilidade relevante de reforma da decisão. Ou seja: os
réus jamais serão impedidos de continuar a pedir que os tribunais superiores
reexaminem todas as questões jurídicas que considerem merecedoras de nova
decisão.
Diante desses dados, é ilógico moldar o sistema em função da
exceção, e não da regra. Veja-se que os demais casos de acolhimento de recursos
da defesa envolvem prescrição (0,76%), diminuição de pena (6,51%) e alteração
de regime prisional (4,57%).
Em suma: voltar atrás nessa matéria traz pouco benefício
para a Justiça e grande incentivo à continuidade dos esquemas de corrupção, já
que a redução do risco de ser punido manterá a atratividade do crime e trará
desestímulo à colaboração com a Justiça.
Em vez de incentivar empreendedores honestos, o sistema
continuará a favorecer quem transgride as leis penais.
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Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião
do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos
problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do
pensamento contemporâneo.
LUÍS ROBERTO BARROSO, professor-titular de direito
constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e do Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB), é ministro do Supremo Tribunal Federal
ROGERIO SCHIETTI, doutor e mestre em direito processual pela Universidade de
São Paulo, é ministro do Superior Tribunal de Justiça
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
Marcos.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago
e João, para a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo
contaram a Jesus.
E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a
levantar-se. Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los.
À tarde, depois do pôr do sol, levaram a Jesus todos os
doentes e os possuídos pelo demônio. A cidade inteira se reuniu em frente
da casa.
Jesus curou muitas pessoas de diversas doenças e expulsou
muitos demônios. E não deixava que os demônios falassem, pois sabiam quem ele
era.
De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou
e foi rezar num lugar deserto.
Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando
o encontraram, disseram: “Todos estão te procurando”.
Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da
redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim”. E
andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os
demônios.
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa
de Simão e André” (Mc 1,29)
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de encontro e
comunhão, de palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino.
No relato de hoje, Jesus desloca-se da sinagoga, lugar
oficial da religião judaica, à casa, onde se vive a vida cotidiana, junto aos
entes mais queridos. Nessa casa vai sendo gestada a nova família de Jesus. As
comunidades cristãs devem recordar que não são um lugar religioso onde se vive
da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.
A primitiva comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus
não começou formando uma nova religião instituída, mas uma federação de casas
abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e
de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do
Espírito do mesmo Jesus. “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam
tudo em comum... partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e
simplicidade de coração” (At. 2,44-46).
A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A
comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se
expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária. A
casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade
vão se solidificando. Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora.
O evangelho de Marcos apresenta Jesus como “tekton” (6,3),
construtor (pedreiro, ferreiro, carpinteiro…), e seu ofício era construir
casas. Um dia descobriu que sua missão não era construir mais casas para o
sistema injusto; deslocou-se, então, para as periferias, em direção aos
sem-teto e iniciou um movimento de transformação, a fim de que todos pudessem
ter “casa na terra de Deus”. Quis construir sobre o mundo a nova Casa do Reino,
aberta a todos, com pão, com palavra, com amor mútuo. Ele, que não teve onde
reclinar a cabeça, quis que todos os homens e mulheres tivessem casa,
família... cem vezes mais. Assim, deixando seu trabalho de construtor, se fez
“arqui-tekton” do Reino de Deus, onde todos pudessem construir suas casas em
bases sólidas, começando pelos excluídos sociais: leprosos, cegos, paralíticos,
coxos... Não construiu casinhas para pobres sem teto nas ladeiras e encostas da
Galileia, mas moradas com fundamentos na rocha; ou seja, ofereceu-lhes
dignidade e consciência, solidariedade e desejo de viver, espírito de comunhão
e partilha... para que eles mesmos pudessem criar novas moradas (construí-las e
compartilhá-las). A boa nova da “Casa de Deus” (para todos) devia começar pelos
mais pobres, excluídos, sem-teto e sem-terra, portadores de uma nova esperança
de vida e casa compartilhada.
Em um mundo no qual as relações se estabeleciam através da
força, da dominação, de uma maneira de exercer o poder em que o forte se impõe
sobre o fraco, o rico sobre o pobre, o que possui informação sobre o ignorante,
o relato da mulher curada por Jesus, no evangelho de hoje, nos introduz na nova
ordem de relações que devem caracterizar o Reino: nele a vinculação fundamental
é a da irmandade no serviço mútuo.
A prática de Jesus desestabiliza todos os padrões e modelos
mundanos de poder, desqualificando qualquer manifestação de domínio de uns
sobre os outros: inaugura-se um estilo novo no qual o “desenho circular”
desloca e dá por superado o “modelo hierárquico”. Sua maneira de se relacionar
com as pessoas marginalizadas e excluídas põe em marcha um movimento de inclusão
onde, uma casa acolhedora e uma mesa partilhada com os menos favorecidos,
invalidavam qualquer pretensão de poder, de prestígio, de situar-se acima dos
outros, devolvendo a todos a dignidade perdida.
Do “exorcismo” da sinagoga passamos às “curas” nas casas e a
primeira destinatária da ação de Jesus é a sogra de Pedro, erguendo-a da cama e
curando-a no dia de sábado. Ela, uma vez curada, respondeu com um gesto de
serviço, em sua casa, oferecendo uma refeição a Jesus e seus companheiros, como
uma ação que inaugura o primeiro ministério cristão.
Assim está Jesus sempre presente entre os seus: com uma mão
estendida que a todos levanta, como um amigo próximo que infunde vida. Jesus só
sabe servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele se põe a “servir”
a todos; ela foi integrada em seu grupo de seguidores(as) e pode então
“servir”, construindo a comunidade de iguais que Jesus queria, rompendo com a
mentalidade patriarcal. Seus seguidores e seguidoras deverão viver acolhendo-se
e cuidando-se uns dos outros.
Tanto Jesus como a sogra de Pedro superaram uma compreensão
atrofiada do sábado, porque Ele curou e ela serviu nesse dia. Ninguém precisou
dizer a ela o que deveria ser feito; não aprendeu de nenhuma exegese rabínica.
Ela mesma compreendeu, como mulher, o que significa estar a serviço da vida.
Com gratidão, correspondeu à ação de Jesus que lhe estendeu a mão para
levantá-la de sua enfermidade, precisamente no dia de sábado; seu gesto
(deixar-se levantar por Jesus e servir aos outros) marcará, de agora em diante
todo o evangelho de Marcos, onde as mulheres serão as protagonistas. Ela
superou um tipo de religião farisaica e se vinculou a Jesus de um modo pessoal,
como servidora, a “ministra” da comunidade cristã.
Por isso, quando Marcos nos apresenta a sogra de Pedro
“servindo”, está nos dizendo: aqui há alguém que entrou no círculo de Jesus,
que “alistou-se” no seu movimento, que respondeu ao seu convite para colocar-se
aos pés dos outros e começou a “ter parte com Ele” (Jo 13,8). Muitas dificuldades
que temos na vida relacional procedem justamente de nossa resistência em nos
colocar na atitude básica de um serviço que não pede recompensas, nem exige
agradecimentos... Quem busca viver assim, basta-lhe a alegria e o prazer de
poder estar, como Jesus, com a mão estendida para erguer o que está prostrado
sob o peso da enfermidade.
Quantas distâncias se encurtam quando se toma alguém pela
mão! Quantas suspeitas se dissipam quando se toma alguém pela mão! Quantos
medos são superados quando se toma alguém pela mão!... As mãos são divinas:
expressam ternura, proteção, cuidado. Para Jesus, as mãos são para isso:
levantar o outro, ajudar o outro a colocar-se de pé, devolver ao outro a
capacidade de dar direção à própria vida.
Graças a muitas pessoas que se deixaram “tomar pela mão” por
Jesus para “levantar-se” e “servir”, o cristianismo primitivo foi se
constituindo em pequenas comunidades domésticas, reunidas nas casas, onde
muitas mulheres assumiram funções eclesiais, ora como missionárias itinerantes
e ora como responsáveis pelas igrejas familiares, onde presidiam a oração e a
fração do pão.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O evangelho convida a nos deslocar e nos
aproximar dos lugares onde estão os prostrados da vida, tomá-los pela mão e
ajudá-los a levantar-se. Então, todos juntos, nos disporemos a servir,
teceremos o manto da solidariedade social e eclesial a partir da cotidianidade;
seremos assim testemunhas mobilizadoras numa sociedade cansada de palavras e
necessitada de experiências que se façam verdade e vida.
- Você percebe que sua casa é prolongamento da Casa do Reino,
desejada e construída por Jesus? Quê sinais você encontra nela que confirmam
ser uma “casa cristificada”?