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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

POR QUE SE TÊM EMPREGADO O TERMO “ENTREGA” EM VEZ DE “CONSAGRAÇÃO”?

14 de agosto de 2020

Padre David Francisquini


Pergunta — Durante a pandemia do coronavírus, fiéis de vários países pediram a seus episcopados que renovassem a consagração de suas nações a Nossa Senhora, a fim de obter a sua benevolência e o fim da pandemia. Chamou-me a atenção que os bispos da Itália e de Portugal, nos respectivos atos litúrgicos que realizaram para atender a esse pedido, reservaram a palavra “consagração” exclusivamente a Jesus. No que se refere a Maria, empregaram em Fátima o termo “entrega”; e “no santuário italiano de Caravaggio, “affidamento”, que quer dizer a mesma coisa. Achei isso estranho, já que Nossa Senhora em Fátima pediu a “consagração” da Rússia (não apenas a “entrega”) ao Imaculado Coração de Maria. Se a Rússia pode ser consagrada à nossa Mãe do Céu, por que não Portugal ou Itália, quanto mais em uma emergência tão grave como esta?

Resposta — Essa reticência dos prelados e dos teólogos em empregar o termo “consagração” em relação a Nossa Senhora vem desde o tempo anterior ao Concílio Vaticano II, sob pretexto de que “uma consagração propriamente dita não se faz senão a uma Pessoa divina, pois a consagração é um ato de latria, cujo termo final apenas pode ser Deus”, como escreveu o jesuíta Pe. Juan Alfaro.[1]

De fato, em sentido estrito, a consagração é o ato pelo qual uma coisa é transferida de um uso comum e profano para um uso sagrado; ou o ato pelo qual uma pessoa ou coisa é dedicada ao serviço e ao culto de Deus por meio de orações, ritos e cerimônias. Assim, fala-se da consagração de uma igreja, de um altar ou de um bispo. O conceito tem um aspecto positivo, o de pertencer total e exclusivamente a Deus. E um aspecto negativo, que é o de subtrair o uso profano.

Ao longo dos séculos a Igreja não hesitou em empregar a palavra “consagração” para exprimir o dom e a oferenda que uma pessoa, um grupo humano ou uma região fazem de si a uma criatura de Deus, como Nossa Senhora, a Igreja ou uma Ordem religiosa, como um meio para melhor servir ao próprio Deus. Até na linguagem comum se utiliza esse termo para exprimir uma dedicação total. Por exemplo, quando dizemos que uma pessoa se consagrou a uma causa ou a um trabalho.

Como é isso possível, se somente Deus, Criador e Senhor de tudo quanto existe, tem direito à pertença (domínio) total e exclusiva de suas criaturas? A resposta é que se trata aí da aplicação deste princípio conhecido: quando se diz algo de Deus, a referência é em sentido próprio; quando se diz o mesmo de uma criatura, o sentido é apenas analógico.

O protestantismo é contrário à vassalagem a Nossa Senhora


Na Basílica de São Pedro, imagem de São Luís Maria Grignion de Montfort

Já no século IV a noção de pertencer a Nossa Senhora aparece nos escritos de Santo Efrem, o Siríaco; e no século seguinte, uma “santa servidão” a Ela, pela qual os que a praticavam eram chamados “servos de Maria”. No século VII, provavelmente em 626, depois do cerco dos ávaros e dos persas, a cidade de Constantinopla exprimiu no hino Akathistos sua pertença Àquela que os tinha salvo: “A Vós, capitã e defesa, canções de vitória e de gratidão. Mãe de Deus, eu consagro vossa cidade, libertada de ameaças horríveis”. Santo Ildefonso de Toledo (+667) difundiu a ideia da consagração a Nossa Senhora, ou mais precisamente “da dedicação plena ao seu serviço”.

No século VIII, São João Damasceno elaborou ainda mais o tema da consagração a Maria. Numa passagem de seu sermão sobre a dormição, escreveu: “A Vós consagramos nossas mentes, nossas almas e nossos corpos – em uma palavra, todo nosso ser”. Empregou sem hesitar o verbo grego anathemeni, que significa reservar para uso sagrado, configurar como presente votivo, dedicar, separar.

Na sociedade feudal da Idade Média, não causava nenhuma estranheza a ideia da dedicação total a um senhor feudal inferior. A sociedade era então baseada sobre um sistema de vassalagens sucessivas, pelo qual o senhor de um vassalo era, por sua vez, vassalo de um senhor mais alto, até chegar ao rei. E todos compreendiam que, se cada vassalo em seu respectivo nível servisse bem ao seu senhor, o maior beneficiário final dessas dedicações era o soberano.

Assim, a ideia da consagração a Deus por meio de Maria entrou muito fundo na espiritualidade de muitos santos, de várias Ordens, congregações e do próprio povo. O conceito de vassalagem a Nossa Senhora só foi questionado pela revolução protestante, com a orgulhosa pretensão de que cada batizado estabeleça uma relação direta com Deus, sem nenhuma intermediação da Igreja, de seus sacramentos e de seu magistério. O pretexto para isso é que tal vassalagem afastaria de Cristo, único Mediador.

O Cardeal Pierre de Bérulle (+1629), fundador da chamada “escola francesa” de espiritualidade, impôs à Congregação do Oratório e aos carmelitas o voto de servidão a Maria. Levantou-se então grande ofensiva de libelos anônimos motivados pelo jansenismo, que era uma versão moderada dos erros protestantes. O voto de escravidão proposto pelo Cardeal de Bérulle foi condenado pelas universidades de Louvain e Douai.

Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria

No Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, São Luís Maria Grignion de Montfort fundamenta de modo irrefutável que a escravidão a Maria é o meio mais rápido, fácil e seguro de se conformar a Jesus Cristo. Para evitar uma condenação semelhante à do Cardeal de Bérulle, o grande santo mariano tomou o cuidado de intitular sua fórmula de escravidão mariana “Ato de consagração a Jesus Cristo, a Sabedoria Encarnada, pelas mãos de Maria”. A descoberta desse livro em meados do século XIX fez com que a Mariologia se desenvolvesse resolutamente nos meios teológicos, e que dezenas de milhares de fiéis fizessem sua consagração a Nossa Senhora nos termos propostos por São Luís de Montfort.

Esse movimento de entusiasmo por parte dos escravos de amor da Santíssima Virgem foi indiretamente convalidado pelas aparições de Nossa Senhora em Fátima, nas quais Ela disse que viria solicitar a consagração da Rússia ao seu Imaculado Coração, a ser realizada pelo Papa em união com todos os bispos do mundo.

No dia 31 de outubro de 1942, num momento crítico da Segunda Guerra Mundial, o Papa Pio XII, numa Radiomensagem aos fiéis portugueses, fez um ato de consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, nos seguintes termos: “A Vós, ao vosso Coração Imaculado, nesta hora trágica da história humana, confiamos, entregamos, consagramos não só a Santa Igreja, corpo místico de vosso Jesus, que pena e sangra em tantas partes e por tantos modos atribulada, mas também todo o mundo, dilacerado por mortíferas discórdias, abrasado em incêndios de ódio, vítima de suas próprias iniquidades”. Um pouco adiante o Papa fez uma analogia entre seu ato e aquele de seu predecessor Leão XIII: “Como ao Coração do vosso Jesus foram consagrados a Igreja e todo o gênero humano, […] assim desde hoje Vos sejam perpetuamente consagrados também a Vós e ao vosso Coração Imaculado, ó Mãe nossa e Rainha do mundo”.

Honrando a Santíssima Virgem, honra-se Jesus Cristo

Papa Pio XII

Dez anos mais tarde, em julho de 1952, o mesmo Pio XII, atendendo às instantes súplicas recebidas do mundo inteiro, declarou solenemente na Carta Apostólica Sacro Vergente Anno: “Tal como há alguns anos Nós consagramos todo o gênero humano ao Coração Imaculado de Maria, Mãe de Deus, hoje consagramos e confiamos todos os povos da Rússia a este Imaculado Coração”.

Durante sua visita a Fátima, no cinquentenário das aparições, Paulo VI publicou a exortação Signum Magnum,na qual encorajou todos os filhos da Igreja “a renovar sua consagração ao Imaculado Coração de Maria”. No sermão que fez em Fátima no dia 13 de maio de 1982, João Paulo II declarou: “Consagrar o mundo ao Coração Imaculado de Maria significa aproximar-nos, mediante a intercessão da Mãe, da própria Fonte da Vida, nascida no Gólgota. […] Consagrar o mundo ao Imaculado Coração da Mãe significa voltar de novo junto da Cruz do Filho. Mais quer dizer, ainda: consagrar este mundo ao Coração transpassado do Salvador, reconduzindo-o à própria fonte da Redenção”. Em 25 de março de 1984, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, levada a Roma para a ocasião, João Paulo II proclamou: “Abraçai, com o amor da Mãe e Serva do Senhor, este nosso mundo humano, que Vos confiamos e consagramos, cheios de inquietude pela sorte terrena e eterna dos homens e dos povos. De modo especial Vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações que desta entrega e desta consagração têm particularmente necessidade”.

Não obstante essa utilização pelos Papas da expressão “consagração”, em ocasiões solenes, para referir-se à entrega do mundo a Maria ou ao seu Imaculado Coração, nos ambientes progressistas o emprego dessa expressão é asperamente contestado, em nome dos princípios do Concílio Vaticano II. Para os prelados e os teólogos dessa corrente, a inserção da Igreja no mundo leva a uma minoração do sagrado e da ideia de consagração, enquanto implicando uma separação do mundo, em lugar de uma presença e comunhão fraternas junto a ele. Além do mais, a redescoberta da consagração fundamental a Deus, no batismo, tornaria supérfluas quaisquer outras consagrações ou devoções. E alegam finalmente que um maior rigor na linguagem teológica desaconselharia aplicar o mesmo vocábulo para se referir à entrega a Deus e a Maria.


No peito da imagem, o medalhão com as belas palavras: “Consagração da Paróquia d’Ars a Maria concebida sem pecado, feita em maio de 1836 pelo Pe. João Maria Vianney, o cura d’Ars”. [Foto: Frederico Viotti]

Essas críticas fazem lembrar aquilo que São Luís Grignion de Montfort diz a respeito dos devotos escrupulosos: “São pessoas que têm receio de desonrar o Filho ao honrar a Mãe, de rebaixar o primeiro ao elevar a segunda. Eles conseguem suportar que se deem à Santa Virgem louvores muito justos, como lhe deram os santos Padres; eles não suportam senão com dificuldade que haja mais gente de joelhos diante de um altar da Santa Virgem do que diante do Santíssimo Sacramento, como se um fosse contrário ao outro; como se aqueles que rezam à Santa Virgem não rezassem a Jesus Cristo! […] Trata-se de uma perigosa e sutil armadilha do maligno, com a desculpa de promover um bem maior; pois jamais se honra mais a Jesus Cristo do que quando se honra a Santíssima Virgem, porquanto não se honra a Mãe a não ser com a finalidade de honrar mais perfeitamente o Filho, pois só se vai a Ela como sendo o caminho para encontrar o termo aonde se vai, que é Jesus Cristo”.

A conclusão do santo é de que a melhor forma de devoção a Nossa Senhora é consagrar-se a Ela como escravo, pois “esta Consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo: à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nos unir a Ele; a Nosso Senhor como ao nosso fim último, a quem devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus. Com esta devoção damos a Jesus Cristo tudo o que lhe podemos dar, e da maneira mais perfeita, porque o fazemos pelas próprias mãos de Maria”.

Pelo exposto, compreende-se que é totalmente infundado, e contrário ao ensino constante do Magistério e dos santos, o receio dos bispos italianos e portugueses de empregar o termo “consagração” no ato de confiar seus países e seus povos a Nossa Senhora, pedindo sua proteção na atual epidemia.

Não duvidamos em afirmar que essa frieza de altos prelados em relação à sua Mãe é o espinho mais doloroso que fere o Sagrado Coração de seu Filho. Ofereçamos a Ele, em reparação, nossa mais terna devoção a Nossa Senhora e nossa consagração a Ela, de preferência segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort.


[1] “Il cristocentrismo della consacrazione a Maria nella congregazione mariana”, Stella mattutina, Roma, 1962, p. 21.

https://www.abim.inf.br/por-que-se-tem-empregado-o-termo-entrega-em-vez-de-consagracao/


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MENINA E MOÇA - José Sarney

Tomei emprestado para este artigo o título do livro de Bernardim Ribeiro, que na minha adolescência fazia parte da formação clássica. É velho como a Sé de Braga, como se diz em Portugal, de 1554. Começa — cito de memória e me sujeito a erros — assim: “Menina e moça me levaram da casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.”

Lembro isso pelo caso que nos revoltou pela violência e pela maldade: a gravidez da menina de dez anos, violentada desde os seis, no Espírito Santo. Não entra em nosso entendimento, neste conjunto de valores que Deus nos deu, que se possa aceitar isso. É o mundo louco que a cada dia se revela. Certamente minha avó diria “é o fim do mundo”.

Essa atrocidade revoltou o Brasil, nosso povo, independentemente da formação religiosa, independente da controvertida posição sobre o aborto. É uma brutal atrocidade que nos choca a começar pela monstruosidade corporal. Uma criança pura de sentimentos, sem saber o que é sexo e cujo corpo não está fisiologicamente apto para o ato sexual.

O nosso sistema jurídico só permite o casamento a partir dos 16 anos, assim mesmo com o consentimento dos pais, pois a idade legal de casar é 18 anos. Com menos de 16 só em caso de gravidez. É verdade que a realidade é bem outra. Estamos em 4º lugar em casamentos de crianças de até 15 anos, precedidos pela Índia, Bangladesh e Nigéria. E pasmem: no Brasil o Estado onde é primeiro é o Maranhão.

Uma vez ouvi em Bacabal de um chefe político a história de um fazendeiro que tinha a fama de comprar virgindade, quase sempre de mocinhas pobres. Fiquei chocado, mas atribuí a informação em parte a essas infâmias que, no interior, colam nos adversários políticos para desqualificá-los e destruí-los.

Verdade é que essa menina ficará como um caso ultrajante na história dos nossos costumes. Pensar numa menina grávida aos dez anos, violentada pelo tio, e no martírio da violação desde os seis anos de idade, cria indignação e revolta.

É que o ato sexual não envolve só o contato corporal, mas uma gama de sentimentos contraditórios que vão desde o amor até à vivência das relações pessoais, do afeto até a devassidão e o ultraje, para os quais as pessoas têm de ter a faculdade de reação. Envolve a pureza e o carinho de estar junto. Foi o Criador, segundo o Gênesis, que melhor o definiu dizendo que “serão dois em um”.

A inocência, esse aspecto de fragilidade e ternura que envolve a meninice, nos leva a ter a infância como uma fonte sublime e pura da existência humana. Ela se revela na alegria da graça da vida, num tempo que forma nossas referências e fica como memória. Mas esse período ficará para essa menina como apenas o horror desse bárbaro episódio.

A menina não perdeu somente a virgindade e inocência. Perdeu o nome, perdeu a identidade, tem que ser outra para ser a mesma.

Como viverá daqui para frente? Como apagará essa indelével mancha?

O Estado do Maranhão, 22/08/2020

 

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.


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