Total de visualizações de página

domingo, 3 de novembro de 2019

O CIRCO – Cyro de Mattos


O Circo
Cyro de Mattos


Como me esquecer do circo? Ficava a semana toda aguardando que o homem nas pernas de pau anunciasse a sua chegada. Quando isso acontecia, saía em disparada atrás dele, o coração preste a sair pela boca. Juntava-me a outros meninos, passando a fazer parte do coro de vozes ao redor do homem nas pernas de pau. À pergunta que ele repetia a todo instante, “o palhaço o que é”?, nossa resposta era uma só, explodindo a gritaria no ar, “é ladrão de mulher!
 
Os circos que apareceram no início eram pequenos. Num desses, a lona furada, poucas luzes na fachada, conheci uma dupla de palhaço que nunca esqueci. Bacurau com a sua cara de mau e Perereca que sempre levava do parceiro um tapa na careca. Bacurau era catroca e tinha o nariz de pipoca. Perereca era um contador de piada sem igual e tinha um calombo na careca.

O circo ficava um mês na cidade. Filho de pais pobres, eu e meu irmão só tínhamos direito de ir ao circo uma única vez, geralmente no domingo. Sempre dava um jeito para ir ao circo mais vezes. Entrava pelo buraco da lona quando o vigia descuidava-se. Vendia jornal na venda, gibi velho na porta do cinema, até garrafa, com o dinheiro apurado comprava o ingresso do circo. Lá estava eu com o coração a bater acelerado, antes que desse início o espetáculo. Não me importava que os números fossem quase sempre os mesmos. Era bom sorrir com as piadas do palhaço, ficar todo arrepiado com o salto mortal que davam os irmãos Vilalba, lá em cima no trapézio da morte.

Foi grande a emoção quando apareceu o primeiro circo com as suas feras amestradas. Leão, tigre, elefante. O chimpanzé andava de bicicleta, fazia piruetas em cima da zebra, dando voltas seguidas no picadeiro. E o sensacional número do globo da morte? Era mesmo aquele circo o maior espetáculo da terra. Acrobatas, trapezistas, equilibristas, malabaristas. Dois times de cães pequenos faziam a bola correr num vaivém que nunca cessava. Flamengo contra o Vasco, a garotada numa gritaria doida quando o gol era marcado. O domador botava a cara dentro da boca do leão. O circo todo em silêncio, um frio corria na espinha, os aplausos demorados para aquele número inacreditável.
 
O circo sempre foi para mim aquele mundo feito de aventura, riso e humildade. O mundo permanente de graça na boca escancarada do palhaço com a linguona de fora. Certamente comia palha e aço, daí ser chamado palhaço.  Doçura no frio com a equilibrista que tinha pernas formosas. Vontade de voar como pássaro com aqueles trapezistas lá no alto, no salto de vida ou morte. O perigo vivido com o domador que si arriscava na aventura de fazer com que cinco leões deitassem junto a seus pés, como se fossem uns pequenos grandes felinos bem comportados. Em mim, sensação de que a morte não existia. Meus olhos rodavam rápidos com aqueles dois irmãos que cruzavam e se encruzavam nas motos barulhentas dentro de um globo, onde circulava a perícia feita de nervos e aço.

Como me esquecer da pipoca, algodão doce, cocada, amendoim torradinho e roletes de cana?

Um dia, eu e os amigos resolvemos fazer um circo no quintal. Com palhaço de pernas tortas, a menina Dolores como a fada das flores, Dom Chicote, o incrível domador e suas terríveis feras, Lero-Lero, o cão que dançava bolero, e Cheiroso, o gato manhoso, além do trio que tocava zabumba, sanfona e reco-reco. Era o circo do Ciroca com palco armado embaixo de uma mangueira. O bilheteiro, o próprio dono do circo, feito um general usava grande chapéu de jornal e tinha uma espada de pau.

Uma pena aquele circo ter dado apenas um espetáculo. A plateia não se conformou com a ausência do macaco Caolho, que deveria subir no mastro de cabeça para baixo em menos de um minuto. Entre assobios e gritaria, a plateia começou então a jogar tomates no verde homem-jibóia e no anão Pimpão, que de tão pequeno não saía do chão. Foi tomate para todo lado, assovio, corre-corre, empurrão, nome feio, vexame. Quando o pano caiu por terra, foi logo rasgado em pedaços. O espetáculo foi encerrado com a plateia toda gritando sem parar um só instante: Queremos o macaco Caolho! Queremos nosso dinheiro de volta! Queremos mais espetáculo!


Cyro de Mattos é escritor e poeta. Vários livros publicados no exterior. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

* * *

PALAVRA DA SALVAÇÃO (155)


31º Domingo do Tempo Comum - Solenidade de Todos os Santos

Anúncio do Evangelho (Mt 5,1-12a)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.
---
Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Padre Roger Araújo:

 ---
Finados: todos vivem n´Aquele que vive

“...que eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39

Ao celebrar o “Dia dos mortos”, todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, eclosão, nascimento; que nela entramos nesse processo definitivo de libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...

Este dia, em que fazemos “memória daqueles(as) que já vivem a Páscoa definitiva”, é uma ocasião privilegiada para considerar a morte como evento humano e cristão; sabemos do seu aspecto doloroso, mas, a experiência cristã insiste que ela deve ser entendida também como um gesto de generosidade: “morrer é deixar um lugar para os outros”.

Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança, a ilusão de sermos imortais, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.

O Evangelho nos ajuda a descobrir que o cuidado doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida em que ela é entregue para dar vida a outros.

O ser humano não deve admitir sua morte como uma derrota humilhante, mas, do mesmo modo que pode dar direção à sua própria vida, deve também incluir o ato de morrer, o último ato de sua vida, o ápice de sua existência temporal. 

A morte somente pode ter um sentido e significação se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz.  Aqueles que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização. 

Conscientes de ter vivido por alguma causa, de ter levado uma vida plena, podem dar sentido e significado espontâneos ao último ato de sua existência, a morte. É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, despertam impulsos para se levantar e sair da superficialidade e da mediocridade. 

Sabemos que toda expressão de vida flui para a morte. No entanto, porque sabemos que somos mortais e dotados de liberdade, nós, seres humanos, nos interrogamos sobre o sentido da vida; somos capazes de vivê-la como um projeto, fruto de nossa decisão e podemos transformar a morte no último e supremo ato de nosso viver. 

A consciência de que se morre por alguma grande e nobre causa despoja a morte de seu caráter de catástrofe absurda, não somente aos olhos de quem vai morrer, mas também aos olhos dos que o amam. 

A morte se transforma em “fator de criação de vida”, em “boa notícia” para aqueles que se atreveram a viver como Jesus viveu. Viveram para dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida como entrega e sua morte foi uma consequência lógica de seu modo de vida. Levaram a existência até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma semente permanente de vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas continua semeando vontade de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte. 

De fato, o modo de viver de Jesus recebe o sim definitivo de Deus e nos mostra que a vida entregue para dar vida é o caminho para derrotar a morte e continuar vivendo. No acontecimento infinitamente doloroso da morte de Jesus se revela e se promete o sentido último do viver e do morrer humano. “Jesus morreu de tanto viver”.

Fazer “memória” desta morte é abrir-nos para a vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas também à mais profunda qualidade desta vida presente: bondade e esperança lúcidas, solidariedade alegre, compaixão ousada, liberdade arriscada, proximidade santificadora... 

Como seguidores(as) de Jesus, não nos limitamos a assistir passivamente o fato da morte. Confiando n’Aquele que é Fonte de Vida, acompanhamos nossos entes queridos com amor e com nossa oração, nesse misterioso encontro com Deus. Na liturgia cristã pelos mortos não há desolação, rebelião ou desesperança. Em seu centro, só uma oração de confiança: “Em vossas mãos, Pai de bondade, confiamos a vida do nosso ser querido”. 

E afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças, tirando da Cruz aqueles que nela estão dependurados...

A ressurreição nos faz experimentar que esta vida peregrina se revela como tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, quer na vida ou quer na morte, nos sintamos sempre envolvidos pelo Amor criativo d’Aquele que é sempre Vida. Nesse sentido, “ninguém morre”, pois todos “vivem n’Aquele que vive”. 

Portanto, “re-cordar” (visitar de novo com o coração) os entes queridos que já fizeram a “grande travessia”, nos capacita a uma nova visão da morte e a assumi-la como acontecimento que faz parte de nossa vida. Afinal, todos morrem, mas nem todos sabem viver.

- A primeira consequência positiva do “fazer memória” é que a morte nos faz viver agradecidos: quando tomamos consciência da morte, nós nos damos conta de que a vida é um verdadeiro milagre, que cada instante aqui deve ser vivido como um presente e devemos saboreá-lo o máximo possível, porque não sabemos quando se acabará.

- A segunda, é que a morte põe as coisas em seu devido lugar: a morte desloca, sim, mas também realoca, porque nos faz tomar consciência daquilo que é o mais importante em nossa vida e o que de verdade merece a pena. Ela nos faz repensar como nos relacionamos, como usamos as coisas, o dinheiro, onde investimos a vida, quais são os verdadeiros valores, etc...

- E por último, a morte nos ajuda a tomar decisões em favor da vida e a nos comprometer. S. Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, aconselha, como critério para decidir, imaginar-nos à hora da morte e pensar qual decisão gostaríamos de ter tomado. Essa decisão leva irremediavelmente a um compromisso por toda a vida, pois ela nos torna conscientes de que esta vida passa, e passa rápido, e não queremos ficar preso às afeições desordenadas, mas desejamos investir toda nossa vida em um projeto que nos dê sentido e nos implique totalmente.

A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade diante da nossa própria vida. 
Texto bíblico:  Jo 6,37-40

Na oração: “Fazer memória agradecida” de tantos familiares, amigos ou pessoas mais próximas que viveram intensamente e que, generosamente, partiram e “deixaram um cantinho deste mundo” mais iluminado. 


Pe. Adroaldo Palaoro sj


* * *