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quarta-feira, 3 de junho de 2020

O ROMANCISTA AFRÂNIO PEIXOTO - Cyro de Mattos


O Romancista Afrânio Peixoto

Cyro de Mattos


            Baiano de Lençóis, Afrânio Peixoto (1876-1947) formou-se em medicina. Dedicou-se  à  higiene e medicina legal. Passou a infância e mocidade em Canavieiras, no sul da Bahia,  município onde foi plantada a primeira muda de cacau trazida do Pará, que produziria uma lavra de duração  permanente, tornada poderosa ao se espalhar  tempos depois pelo  território sulino do Estado.
            Ainda não se configura  no romance Maria Bonita, de Afrânio Peixoto,   o legítimo  homem do cacau,  ávido por ser o dono de um fruto poderoso, fomentador de riquezas,  motivador de tocaias e lutas sangrentas.  O cacau não é assim  determinante de  conflitos extremos na teia romanesca de Maria Bonita,  ficando  visível que a lavra dos frutos dourados à época  dava  os seus primeiros passos sem a épica de um parto difícil,   que se fez  na terra fértil, com a mata ainda não descoberta  e cercada de perigo. O cacau concorre em Maria Bonita  somente  para que a terra seja apresentada com uma cor diferente, insipiente como fonte de riqueza,  basta notar que as amêndoas do fruto   eram secadas  no tabuleiro com rodas e trilhos de madeira, transportadas depois  para Canavieiras  através da canoa,  pelo rio Pardo.
          Em Maria Bonita,  o autor  pode ser visto como visionário dos temas propostos pelo Movimento  da Semana de Arte Moderna de  22, em São Paulo, os quais correspondiam ao que tudo  nas primeiras décadas do século XX  situasse a problemática de nossa realidade social e cultural.  Essa coordenada mostra-se evidente   quando o romancista transpõe para o plano literário o cenário regional com o arraial de Jacarandá, o ponto de encontro  de populações disseminadas pelas margens do rio Pardo e outros cursos d’água  numa zona de algumas léguas, que se estendiam “ainda para o interior nos barracões de piaçava, do Campinho ou do Zinco, ou nas minas de  diamantes do Salobro.”
             Com um  caldeamento humano heterogêneo, formado por gente de nível social e cultural baixo,  algumas pessoas se distinguiam no arraial  pela educação, préstimos provados,  condição econômica privilegiada como donos de fazendas.  Na relação dos personagens nucleares, viviam na   fazenda  Boa Vista  como os donos da terra os Moreira, representados por Dona Mariana, matriarca autoritária, e  o marido Quinquim, “homenzinho murcho, de fisionomia inexpressiva,  barba grisalha’, de temperamento pusilânime. A família completava-se com os  três filhos, Pequenina, Diogo e Luís.  A matriarca  reunia  nas mãos todos os  poderes, era sisuda, impetuosa, enquanto o marido, a prole, os agregados e o povo de Jacarandá respeitavam  a sua vontade forte.
         Maria Bonita é  um romance de amor com linguagem agradável, equilibrado nas descrições do ambiente,  que se presta à  ocorrência das cenas,  personagens  típicos e costumes  mostrados nas linhas de seu enredo   com infiltrações românticas. Apresenta Maria Bonita como um tipo de criatura bem descrita  nos traços externos e interiores, que lhe dão crédito para ser inscrita com a sua beleza e caráter  na galeria  dos personagens femininos de nossa prosa de ficção.
           Luís apaixona-se por Maria Bonita,  reconhecida por Dona Mariana como criatura de origens indignas,  classe social inferior,   sem  a grandeza aristocrática para casar com um de seus filhos. Em seus rompantes neuróticos, a arrogante  matriarca alardeava ser descendente de Diogo  Álvares Cabral, o Caramuru, e Catarina Paraguaçu,  o casal que representava a origem da nobre família brasileira.  Filho seu não estava destinado para se casar com qualquer grapiunazinha*, gente de nível baixo.
          Quando mais precisava da proteção e carinho,  Maria Bonita se vê  abandonada por Luís,  que  prefere fugir a enfrentar situação adversa, mostrando-se sem brios nessa hora em que o amor  cobra coragem de quem deve se mover pelo sentimento forte do coração apaixonado.   Obedeceu  às ordens da mãe e vai para a  Capital terminar os estudos.  De  retorno a Cajazeira toma conhecimento que Maria Bonita estava casada com João, homem  atencioso, leal, dedicado  à esposa e ao filho que tinha com ela.  Sem conseguir abafar  a vontade de se encontrar com Maria Bonita,   sente que não ficara esquecido o seu amor verdadeiro.
           O final com ritmo de tragédia,  que obedece às determinantes do destino, cujas forças não se pode mudar, acontece com o desespero de  Maria Bonita. As mãos em garra  arranham o rosto num gesto alucinado, “embora sem culpa, era a causa  de tudo.” Culpa de tanta desgraça e todo o mal.
          Afrânio Peixoto é herdeiro moderado do Machado de Assis analista e do José Alencar descritivo. Usa os diálogos no momento certo com  bom aproveitamento,  recorre  aos  versos dos poetas populares e os   insere no texto, tornando a narrativa prazerosa. Estiliza  a linguagem em nível de como é falada e da norma culta  codificada pelo gramático, sem transmudá-la como cópia integral da fala do povo corrompida, mas  que faz comunicativa a língua na sua dinâmica.
           Se o espaço do romance regionalista  configura-se no alcance  do ambiente, tipos  e costumes, em Maria Bonita a criatura humana mostra-se como o  foco dos conflitos da sua própria condição,  caracterizada pela beleza  e formosa presença de  mulher. Pelo conteúdo vê-se que o romance tem como centro a  beleza de uma mulher, que desde criança os que a  conhecem querem  bem,  embora o mundo não perdoe a ninguém quando se é dono de atraente atributo.  Certo trecho do romance informa que  “é  motivo de infelicidade não ser quase igual a todo mundo ou a muita gente no mundo”.  A observação completa-se numa  aferição de essência dramática  sobre a vida.   “A beleza, o talento, a riqueza, são dons funestos: despertam cobiça e inveja, nunca simpatia e afeição.” (O artigo ora publicado integra  o  livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia, um testemunho crítico, reunindo estudos sobre 47 prosadores e poetas do sul da Bahia, no prelo da Editora Via Litterarum).

* Grapiunazinha, diminutivo de grapiúna, termo de origem indígena, que significa os que chegaram ao sul da Bahia no tempo da conquista e povoamento da terra.

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Cyro de Mattos,  escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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