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quinta-feira, 30 de junho de 2022

O JOGADOR - Ignácio de Loyola Brandão

 




Dificilmente confiro os resultados. Nunca sei se perdi ou ganhei. Talvez tenha ganho fortunas.

Para Dostoievski, humildemente.

Sou igual à maioria dos brasileiros. Um tolo que joga na Mega Sena. Sei, sabemos todos, que não vamos ganhar. Mas jogo, acreditando que naquele dia tudo vai virar. Assim como já virou no Brasil e deu o que está dando, um recuo como nunca se viu, logo estaremos na pré-história. Políticos iguais, assembleias legislativas medíocres (para a estadual não voto nunca mais). Penso se vale a pena votar para prefeito. Olho as ruas, sujeira, lama correndo junto ao meio-fio, produzida por construtoras, ônibus nas mãos da bandidagem. Olhem as crateras que os caminhões deixam no asfalto das ruas, o prejuízo que dão à comunidade. Quem é o prefeito atual? Olhando a cidade abandonada, tenho certeza de que não existe. Mas nada de desânimo, assim como sei que um dia ganharei a Mega Sena, teremos políticos íntegros. Devemos sonhar com utopias.

Nessa minha idealização de mundo, abro uma gavetinha onde guardo os resultados da Mega Sena e da Lotofácil. Não jogo fora os boletos das apostas. Os boletos estão divididos em grupos de um jogo, dois jogos, três jogos. Na hora de apostar, apanho aleatoriamente alguns, perfazendo uma quantia sóbria de dinheiro. Nunca joguei bolões. Apesar da insistência da Maria, linda atendente do guichê preferencial da lotérica que frequento. Tem alguns números que repito há anos, talvez décadas. Nunca saíram. Mas insisto. Para apostas uso: o dia em que nasci, ano em que entrei para a escola, ano em que tive o primeiro emprego, ano em que vim para São Paulo, ano em que conheci Marcia, minha mulher, ano em que repeti no científico, ano em que vi o primeiro teatro de revista em Araraquara com vedetes coxudas, ano em que minha mãe morreu, ano em que Alda me olhou, ano em que tirei 10 de matemática, ano em que entrei para a Academia Paulista e também para a Brasileira, superacontecimentos e assim por diante.

Agora, vem o mais importante. Dificilmente confiro os resultados. Nunca sei se perdi ou ganhei. Talvez tenha ganho fortunas. Ou melhor, perdido, porque não confiro. Tenho medo de, ganhando muito, minha vida se transtornar, eu assediado por centenas de 'amigos' que há muito não via ou por parentes que nunca tive. Ou então, alvo da bandidagem, de milícias, medo de ser colocado em um carro cheio de gás. De qualquer modo, toda semana penso em ganhar e refrescar minha vida. Que o psicoterapeuta Hiroshi explique o que nem Freud, Melanie Klein, Jung, Lacan (favorito de Betty Milan), Adler, Bion ou algum dos 980 psicanalistas existentes no Brasil (segundo o Google) conseguiram esclarecer.

O Estado de S. Paulo, 19/06/2022

https://www.academia.org.br/artigos/o-jogador

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.

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quarta-feira, 29 de junho de 2022

 

São Pedro e São Paulo: conheça a história dos santos juninos



Pedro era um pescador no Mar da Galileia e largou sua vida para seguir Jesus, sendo apontado como seu sucessor entre os doze apóstolos e teve a missão de construir uma igreja que continuasse a obra do Messias.

Uma das histórias mais conhecidas sobre a vida de Pedro foi a ocasião em que o apóstolo negou Jesus três vezes ao seu mestre ser preso, sendo tomado pelo arrependimento em seguida.

Para os católicos, São Pedro recebeu a missão de ser líder da Igreja de Cristo, assim como diz as escrituras “Tu és pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16:18).

Por outro lado, Paulo de Tarso, cuja conversão ocorreu quando estava em direção à cidade de Damasco, conforme os registros de Atos 9:3-5: “Durante a viagem, estando já em Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues?’. Saulo então diz: ‘Quem és, Senhor?’. Respondeu Ele: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues.”

Paulo, anteriormente chamado de Saulo de Tarso, foi um dos grandes perseguidores da Igreja e dos discípulos de Cristo. No entanto, converteu-se, mudou de nome e se tornou um dos grandes evangelizadores da igreja primitiva, tornando-se um dos responsáveis pela sua expansão.

Ambos morreram martirizados. São Pedro foi crucificado, mas pediu para que a cruz ficasse de cabeça para baixo, pois não se sentia digno de ter a mesma morte que seu mestre. Já São Paulo foi degolado em Roma.

https://www.calendarr.com/brasil/dia-de-sao-pedro-e-sao-paulo/


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terça-feira, 28 de junho de 2022


Ternura 

Cyro de Mattos*


 

            É preciso viver a vida com ternura. Não importa que seja um pouco. Vale viver no tempo cativante que o dia oferta quando os seus ares se fazem verdes.  Felizes, tudo transformam nesse momento fugaz, que comove, com seus lampejos trêmulos de amor. Pode até ser ilusão esse momento que sentimos, mas com suas asas brandas, cores e sons que acalmam, é bom que se repita, mostre que é capaz de reverter o que é triste em dons da felicidade.      

            Ternura é esse cuidado que a mãe tem quando diz ao filho que primeiro é a obrigação depois a distração.  Com verões e graça, tudo na vida passa. E o pai ao se despedir do filho, sorrindo de contente, diz que você já é um homem, vá em paz, não se perca, nem esqueça que sempre estou aqui. Logramos extrair no acento circunflexo da palavra avô sensações que se alimentam de ternura, que não esquecemos, pois um homem assim, no terminal das estações acumuladas com saber, consegue o feito de ter o coração duas vezes com açúcar, tanto ele cativa e torna a vida doce.  

            A ternura da natureza tem seus hábitos protetores, que se proliferam e também cativam, seguindo uma ordem onde tudo é vida ou morte, mas com ordem.  O passarinho transmite sua afeição pela vida quando leva no bico o graveto para fazer o ninho. Daqui a pouco estará levando no bico a comida para os filhotes. Daqui a pouco estará voando com os filhos numa alegria que a natureza há tempos vem inventando durante as estações.

            A natureza mostra sempre que os bichos vivem à sua maneira, cheios de ternura. A onça mais feroz fica mansa, ao lamber as crias com a língua crespa, em ritual de afago e lambidas. Ai de quem tente interromper seu amor às crias nessa hora mansa, em lambidas de doçura.  Sua careta é tão feia que o mais corajoso predador sai em disparada para num instante não virar janta da mãezona zangada. 

            O gavião manso amanhece quando descobre a parceira para construir uma nova família. Lá estão eles bem no alto, com os bicos que se tocam e asas que abraçam. Lá como cá, embora fujam do verde odores do que encanta, a vida prossegue, além o azul inocente ressoa. Doce e eterna ternura penetra os seres e as coisas, revestindo nossa existência com o vento, o sol e a chuva.  É verdade, a ternura com seus pendores perdura dentro de cada um de nós.

            Aconteceu que certo dia o menino sorriu o sorriso mais feliz do mundo quando pela primeira vez entrou com o pai no estádio superlotado. Todo alegre ia ver o seu time querido disputar a partida final do campeonato.  Antes de a partida ter início, virou-se para o pai com o rosto festivo, deu-lhe um beijo.  Podia até não saber que estava fazendo um gol de placa com a marca da ternura, mas era o jogador mais incrível antes do vaivém da partida.

             Outro dia, um menino, que acreditava em Papai Noel, quando  viu o velhinho sentado na cadeira do supermercado, teve certeza que esse  homem gordo, vestido numa roupa vermelha, crescida barba branca,  soltava pelas mãos corações,  ao mesmo tempo que sorria fazendo rô, rô, rô  para cada um dos meninos. 

             No cinema, quando o mocinho salvava a mocinha dos bandidos que acabavam de assaltar o banco, o coração do menino queria saltar pela boca, de tanto alegria que tinha. O mocinho ganhava um beijo da mocinha. Na cena final a ovação era geral, o bem vencia o mal.

            Ternura só faz bem, mesmo quando a cena é triste e com ela a gente nunca se acostuma.  Daquela vez ele viu quando a mulher pediu para que ainda não descessem o caixão. Passou a mão no rosto do marido. Disse: “Vá em paz, fique certo que haverá no caminho a sua estrela-guia.”

            Ternura serve para espantar os males. Ela opera o milagre de nascer no mesmo chão, adormecer sob a vigília da esperança. Acordar, erguer-se com leveza, sair por aí para acontecer com hesitante tremor enquanto dura a vida com os fios sem fim do sonho no amanhecer fundamental. 

 

*Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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domingo, 26 de junho de 2022

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (268)



13º Domingo do Tempo Comum – 26 de junho de 2022

Anúncio do Evangelho (Lc 9,51-62)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós!

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.

— Glória a vós, Senhor!

Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém e enviou mensageiros à sua frente.

Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus. Mas os samaritanos não o receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém.

Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?”

Jesus, porém, voltou-se e repreendeu-os. E partiram para outro povoado.

Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores”.

Jesus lhe respondeu: “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça”.

Jesus disse a outro: “Segue-me”.

Este respondeu: “Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai”.

Jesus respondeu: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus”.

Um outro ainda lhe disse: “Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares”.

Jesus, porém, respondeu-lhe: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o link abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Donizete Ferreira, Sacerdote da Comunidade Canção nova:



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sexta-feira, 24 de junho de 2022

PARECIA COM A PRINCESA ISABEL – Ariston Caldas

 

 


           Na sala de entrada da casa de Adelaide havia, pendurado na parede, um quadro com a fotografia de uma moça bonita, de vestido branco com peitilho de renda e uma coroa na cabeça; no peito, uma cinta azul atravessada, com letras douradas, mas, de longe, Leni não conseguia decifrá-las; o reflexo do sol sobre o vidro atrapalhava a vista. “Só pode ser uma rainha ou uma princesa”. Lembrou da princesa Isabel, a dos escravos, desenhada num livro de história que dera no curso primário; lembrava bem do rosto de Isabel impresso no livro. Quando pudesse perguntaria a Adelaide quem era a moça do quadro. Perguntou e soube, não era nenhuma alteza, mas a própria Adelaide quando tinha dezoito anos de idade e foi rainha da beleza em sua terra natal.

            “Como a senhora era bonita!”, disse Leni. Adelaide fez um risinho disfarçado num canto da boca, sentindo o “era” de Leni como um agravo, uma afirmativa que sua beleza desaparecera. É, minha filha, veja o que a vida faz com a gente”, disse Adelaide com fala abafada.

            Leni sentiu que lhe havia magoado e tentou remendar o que dissera: “a senhora continua bonita, nem parece ser mãe de três meninos já crescidos”. Adelaide não deu nenhum crédito à reparação e continuou afirmando que estava envelhecida; falou das manchas escuras pelo rosto, dos fios de cabelo branco aparecendo, dos seios sem a robustez daquele tempo do concurso de beleza; “hoje estou um caco sem valia, cheia de pano preto, magra e sem ânimo para este mundo”, acrescentou Adelaide. A essa altura da conversa, a cidade natal emergia em seu pensamento iluminada e festiva; viu a casa onde morava, o quarto, o espelho quadrado onde se olhava vestida no modelo para a coroação no palanque da praça pública; a mãe lhe retocando a pintura do rosto, ajeitando detalhes o vestido branco de organdi com peitilho rendado, passando uma flanela pelos sapatos brancos de camurça; o pai entrando e saindo agoniado; “vamos minha gente, está na hora”, as amigas ajudando. Depois, o palanque no meio da praça regurgitando de gente, uma multidão; a filarmônica tocando, os discursos, os aplausos durante a coroação dela e das princesas; mais tarde, o baile chique no clube social especialmente decorado para o evento; os homens doidos de olho nela, as mulheres morrendo de inveja; muita bebida, ramalhetes de rosas sobre a mesa preparada para ela, os familiares e as duas princesas; “parecia um trono”. Agora sonhava ser miss Bahia, Brasil e, quem sabe, Universo.

            Lembrava de Almir, quase seu noivo, enciumado pelos cantos, retraído, nervoso, mastigando chiclete olhando-a assoberbada de gentilezas por todo lado, ela e as duas princesas; do outro, o pai, a mãe e o paraninfo da candidatura dela, dono de uma padaria. Almir achava que aquele lugar deveria ser para ele, mas nem exigia coisa nenhuma, mesmo pretendendo noivar. Ciumava, passava olhando com raiva, mordia os beiços, mastigava chiclete. Adelaide nem imaginava que mais tarde, menos de dez anos, estaria casada com Bertino, guarda municipal e agora, já com três filhos crescidos, sentia-se velha e os outros também achavam isso, como Leni: “Como a senhora era bonita!”. Sentiu-se magoada, mais velha ainda; os peitos murchos, o cabelo embranquecendo, as rugas, as manchas escuras pelo rosto, varizes nas pernas. Lembrava do salão iluminado, da banda de música tocando, os discursos, uma coroa dourada sobre a cabeça cheia de cachos bem-feitos, uma faixa bonita atravessada, “Rainha da Cidade”; Almir a um canto, emproado, cheio de ciúme, mastigando chiclete.

            Adelaide recebera o café em pó que pedira emprestado a Leni e voltou para casa do outro lado da rua empoeirada, entre sombras remotas sumindo; “a mais bonita da cidade”. Afastou o cabelo espalhado pelos ombros e lembrou novamente da velhice, dos seios que não tinham mais a robustez daquele tempo quando fora coroada rainha.

            Aumentou os passos ao lembrar que havia deixado no fogo uma chaleira com água para coar café; “já deve ter secado”.

            Leni, do passeio da casa dela, olhava Adelaide pelas costas, envelhecida, diferente da que via na foto parecida com a princesa Isabel.

 

Ariston Caldas

LINHAS INTERCALADAS

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quinta-feira, 23 de junho de 2022

ITABUNA CENTENÁRIA UM POEMA: Pássaro Gentil, por Paulo Bezerra



PÁSSARO GENTIL

Paulo Bezerra

 

 

Pássaro gentil

alegre e buliçoso

a ânsia da vida te trouxe

pra dentro de minha varanda.


Voas e voas e pousas

brindando as samambaias

beijando os antúrios

e me alegrando a vida.

 

Chegaste como um sopro

um alento, um recado da vida

 dizendo que está aí

e precisa ser vivida. Revivo.

 

Encheste meu peito de paz.

Trouxeste a esperança que alenta,

espalhada sobre as asas.

Lembro que amo, e amo, e amo

 e me alegro muito.

 

Voas e vais.

 

Meu bem ficou aqui,

dormindo entre as plantas.

O peito, agora, é fonte e jorra

embalado pelo tenor de Pavarotti.

 

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PAULO BEZERRA – Juiz do Trabalho da 19ª Região – AL

Presidente da JCJ de União dos Palmares – AL

Poemas escritos em União dos Palmares

Dedicatória:

A meu filho Moacir, pedaço maior de minha sensibilidade.

A todos aqueles que têm, como eu, no peito, um pouco de sentir.

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quarta-feira, 22 de junho de 2022

QUEM AVISA... - Nelson de Faria



Quem Avisa...

                                                    

                                        “Fogo de morro arriba,

                                          Água de serra abaixo,

                                          Mulher de cabelo na venta

                                          - Meu Deus do céu! –

                                          Quem é que guenta?”

                                                              VERSO POPULAR

 

            Dona Enedina, da Fazenda Brejo do Meio, era muito mais conhecida do que o marido, Godofredo Pereira (em documentos legais) ou Godô Titica – às escondidas e para o resto da vida. Sujeito pinoia, esse Godô, um pinguim de homem, “raspa de tacho” dos Pereiras, do Brejo de Cima, que foi gente boa, mais porém afuleimada. Ninguém atinava com o porquê de o caçula dos Pereiras ser como era: piruá no meio de pipocas. Para completar, o fulustreco era perdigoteiro inveterado. Por via de algo estranho, inexplicável, o trem à-toa chegou ao mundo sem ser esperado, dois meses antes da data prevista. Quando ainda menino de escola, ganhou  o acréscimo Titica ao Godô, seu apelido certo. Com o correr dos anos, mas sem nunca lhe haver chegado aos ouvidos a coisa infamante, simplificaram o apelido, e ele passou a ser Titica, tão-somente. Já crescido – bom, crescido é força de expressão, porque, mesmo pelanco, era do tamanho de menino de doze anos -, já crescido, e por influência de rapazinhos sabidos, brincou com mulher pela primeira vez e se estrepou. Além de umas coisas que lhe estragaram as vergonhas, que o transformaram em alambique durante meses, destilando humores, ganhou ele uma moléstia de pele que, agora, ao chegar a velhice, se transformara numa cafubira danada. Braços e pernas lixentos, quando o comichão o atacava de repente, ficavam em petição de miséria. Suas unhas sujas levantavam pequenas nuvens de pó branco e fino, parecendo fubá de arroz. E o sujeitinho não paliava, coçava-se à vista de qualquer pessoa. Nem Siá Dina conseguia botar um paradeiro naquilo. Acabou largando de mão a coceira dele, empunhando com segurança as rédeas do governo da casa, da fazenda, de tudo. Mandava e desmandava dentro e fora dos seus limites territoriais. Daí, ser mais conhecida e respeitada do que Godô Titica. A inclinação que ela tinha de ser mulher macha vinha de longe, em desde ela mocinha, de cara sardenta e narizinho arrebitado. Não era fruto da moléstia que se conservara escondida tantos anos na carcaça do Godô e, sim, necessidade de colocar em ordem os negócios periclitantes do marido. Metera-se ele em tantos e tão mal sucedido fora, que Siá Dina, um dia, após discussão na qual ela não gastara mais do que uma gota de cuspe, e sem caridade pela cara de inocente fracassado que estava diante dela, falara alto:

            - Agora, atino que você se derrotou. Tomo conta da trenheira toda. Enfio umas calças de homem – de homem mesmo! – não essas que estão aí nessas suas pernas de menino, e acerto as coisas. A obrigação mais pesada é a que temos na gaveta do compadre Tinoco, né mesmo? Mais porém, tem prazo dilatado pra mais um ano, não foi o que ele disse? Pois então? A gente não se afoga num dedal de água. A gente vende o touro gademar – ele é menso, eu sei, mais porém vale bom dinheiro – umas dez vacas do fundo, acerta os juros, diminui a dívida. Se restar o casco da fazendinha só, a gente começa de novo...

          Dito e feito, Madrugadinha, Siá Dina estava de pé. O animal arreado, escarranchava-se sobre a sela, que nem homem, e saía numa toada só, correndo as mangas, dando ordens aos empregados, impondo sua vontade. Não escolhia montaria. Qualquer uma, ao gosto, mesmo que fosse passarinheira ou fuá. Montava-a com desembaraço, esporeava-a a preceito. Horas depois, o cavalo estava ofeguento, trocando as pernas, tropicando, lavado de suor. Siá Dina suxava qualquer cavalo. Era criatura que não gostava de lelês; mais porém, fumaçava à-toa. Dos fumegas, tolerava Godô, porque não tinha mais jeito. Quando moça, diziam, era uma pintura. Ainda hoje, apesar dos quarenta, era palpitosa, botava água na boca de muita donzela enfeitada. Enquanto a mulher se esfalfava, tentando por ordem nos negócios, que iam de mal a pior, Godô continuava a se coçar, ao embalo da rede, na varandinha da casa. Fazia, agora, o que sempre fizera: alisava a palha, picava o fumo, palmeava-o, enrolava o cigarro e acendia um na bagana do outro, amarelecendo de sarro a bigodeira caída sobre os beiços murchos. Estava ele assim, o pito preso entre os cacos de dentes, o olhar longe, perdido no céu azul sem nuvens, sonhando de olhos abertos, quando percebeu que alguém estava parado ao pé da escadinha da varanda. Fixou o vulto e nele reconheceu o Durvalino, camarada de confiança de Sêo Tinoco, do Brejo de Baixo. Atrevido, o chapéu de abas largas quebradas na frente da testa, um piraí trançado sobrando do cano da bota, aproximou-se, bateu palmas, gritando, como se Godô Titica não existisse:

           - Ô de casa!

           - Se achegue e se abanque, Sêo Du. Vosmecê é de paz, e a casa é dos amigos.

            A voz de Godô era um fiapinho, contrastando com o tom abaritonado da do outro, um galalau de homem, desempambado, cumpridor de ordens do patrão.

            - Não me abanco, porque vou adiante, mais légua e meia, em diligência. Trago um recado do Major Tinoco, que manda dizer pra vosmecê que pensou e repensou no caso e não pode mais esperar. Apareceram outros negócios...

            - Mais, Sêo Du, o compadre Tinoco não pode querer desgraçar a gente de uma vez. Ele me deu a palavra dele.

            A voz era de quem estava alarmado, trêmulo, acovardado. Durvalino gozava o constrangimento que lia na cara murcha de Godô, e sorria, fingindo comiseração. De uma das janelas, a voz forte de Siá Dina interrompeu aquele sorriso de deboche:

            - O recado já foi dado. Vosmecê não carece aumentar mais nada. A gente não manda o troco, agora, porque nossa conversa com ele é particular. Vancê pode voltar, recobrindo o rasto pra trás, que o mais eu ajeito.

            Apanhado de surpresa, Durvalino fez meia volta, tirou o chapéu, humilde, os olhos no chão

            - Me desculpe, Siá Dina. Não salvei vosmecê porque não vi sua aproximação. Falava pra Sêo Godô num recado mandado...

            E ela, enérgica, interrompendo-o:

            - Falei que o recado está dado. Vancê pode voltar, já disse.

            Fechou a cara, levantou a cabeça, pondo um ponto final na conversa. Durvalino saiu, montou o piquira, ganhou a estrada.

            - Vou na casa dele, Godô, agora mesmo, ajeitar as coisas. Antão será direito a gente perder as terras pra compadre Tinoco, sujeito sem alma, me arresponda, Godô, me arresponda? Sinto inté uma coisa me subindo do umbigo pra riba, por via da impostura dele.

            Enquanto isso Durvalino cismava: “Êta mulher macha, de cabelinho nas ventas! Gosto de ver uma diaba assim, despachada, que tem pimenta na língua e fogagem no rabo. O que deixa a gente dessossegado é ver uma prenda dessas dada a um caguincha daqueles, sujeitinho sem talento para aguentar o rojão. Vai ver... o porqueira não conhece nem a metade daquele mundo...”

            Sêo Tinoco ruminava o almoço, espichado na rede. Cochilava, de consciência tranquila, certo de que teria suas terras aumentadas de mais uns cinquenta alqueires, tomados às do Brejo do Meio, liquidando Tiririca e sua gente. Cochilava e sorria. A rede ia e vinha, preguiçosa, acolhedora. Havia silêncio na varanda ensombrada e fresca. Sêo Tinoco ruminava... a porteira do pátio bateu com violência, os cachorros latiram, um bem-te-vi assustou-se, largou a lagartinha-compasso que saboreava, voou para longe. Sêo Tinoco abriu os olhos sonolentos e divisou a mulher sofreando o cavalo. Mal refeito do sono interrompido, reconheceu a comadre.

            - Ora viva, que surpresa!

            Avançou, ainda incerto das pernas, para segurar o estribo – como se usa receber uma visita cavaleira -, o sorriso aberto na cara assustada:

            - Desamonte, comadre, a casa é vossa, o oferecimento sai do coração.

            Ofegosa, sem mesmo desejar-lhe um “bom dia”, Siá Dina foi falando:

            - Me releva a falta, mas porém não desapeio, nhor não, porque, hoje, não vim visitar a comadre Donana.

            Tomou fôlego, aquietou o cavalo, indócil por via de umas mutucas, batendo com a mão espalmada no pescoço dele, continuou, meio engasgada:

            - Vosmecê sabe, compadre, que eu não sou mulher de leréias e pendengas. As coisas comigo são no risco da lei, da palavra dada. Parece que vosmecê é homem de verdade, falou que a gente ficasse descansada durante um ano, não foi? Agora, sem quê nem pra quê, vosmecê mandou aquele recado arrevesado...

            Sêo Tinoco interrompeu-a:

            - Ora, comadre! Vosmecê não precisa sangrar na veia-da-saúde. O Du é sujeito especula. Se andou falando coisas que não devia, é da conta e do risco dele. Não mandei aviso pra dessossegar ninguém. – E, abaixando a cabeça, desconversando: - E o compadre, como vai de saúde, está melhor dos incômodos? Já combinei com a Donana uma visitinha, qualquer dia...

            - Pois, compadre, não foi entendimento enganoso, nhor não. Vim aqui pra desenturvar as coisas e digo pra vosmecê, sem botar um só porém na minha fala... – Parou, as mãos trementes tentando segurar as rédeas, o olhar firme na cara lívida de Sêo Tinoco: - Se vosmecê procurar a justiça antes do prazo que deu pra nós, ninguém de sua gente botará os pés nas terras do Brejo do Meio... A gente espandonga vosmecê e os mais...

            Deu de rédeas, esporeou o cavalo, ganhou a estrada, soverteu-se na poeirada.

 

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)

Nelson de Faria

          

terça-feira, 21 de junho de 2022

DIA DE ELEIÇÃO – Helena Borborema



            Já muito cedo a vila de Itabuna apresentava um movimento desusado. Naquele dia, as famílias preferiam nem sair de casa, com medo do que pudesse acontecer. Nas estreitas ruas, indivíduos ostensivamente armados, montando fogosos cavalos, clavinote a tiracolo, desfilavam com ares intimidativos. Era a jagunçada que circulava, arregimentando eleitores e provocando adversários. A votação era para eleger o governador do Estado e, por isso, tornava-se sanhuda, pois daquela autoridade ia depender a força do coronel da região. Além das arrobas de cacau que colhia e do número de jagunços quer possuía, era da política que o coronel tirava maior prestígio, o que aumentava a sua vaidade de aristocrata rural e lhe dava maior força nos mandos e desmandos. Assim, a cata pelos votos era disputa violenta.

            No dia marcado, mal rompia o sol, começavam a chegar os eleitores. Vinham dos arredores e sobretudo das roças. Estas se esvaziavam, dando ocasião ao desfile dos roceiros: pés descalços, os borzeguins iam amarrados um pé no outro pelos cadarços e pendurados numa vara carregada no ombro; no braço, ia a roupa nova, presente do chefe, envolvida numa toalha para ser mudada na vila. A grande caminhada dentro dos matos cheios de carrapichos e atoleiros não dava condição a esses eleitores de já chegarem enfarpelados à casa de seus chefes. Os que vinham dos lados de Ferradas, contavam com um riacho, o Lava-pés, na entrada da vila, onde se limpavam da lama antes de calçarem as botinas.

            Dias antes, as lojas de sapatos, chapéus e roupas estavam franqueadas a seus eleitores, pelos coronéis.

            Chegado o dia do voto, nas pensões o caldeirão de feijoada já amanhecia pronto; no fogão a lenha, fumegavam panelas de galinha, cujo cheiro se misturava com o dos perus assados no forno. Este banquete era para os eleitores e a jagunçada. Todos os eleitores tinham comida de graça, os vivos é evidente, porque os mortos  só apareciam nas listas de votação. Tudo podia acontecer num dia de eleição: tiros, mortes, ameaças, pancadaria, burla. Os capangas tinham carta branca. Daí o receio das famílias de se aventurarem a sair com tamanho perigo.

            Num desses dias de votação, um grupo de jagunços de determinado partido político lançou mão de um dos muitos recursos que usavam para impedir que os adversários votassem. Em pontos estratégicos na entrada da vila, prostraram-se eles à espera  dos tabaréus que chegavam das roças. Não tardou que, um a um, fossem aparecendo.

            - Menino! De quem você é eleitor?

            - Eu sou eleitor do coronel  fulano.

            - Pode passar. Tá direito. É dos nossos.

            Perguntavam a outro que chegava mais tarde:

            - Você, menino, de quem é eleitor?

            A resposta vinha meio desconfiada, pois não sabiam a que partido pertenciam os desconhecidos. Mas aventurava:

            - Eu sou eleitor do coronel beltrano...

            - Você não vota, não. Você vai é voltar pra casa, senão lhe cortamos a ponta da orelha!

            E a bainha do facão caía de rijo no lombo do pobre coitado que voltava mesmo, correndo, ainda dando graças a Deus por salvar a orelha e a vida.

            Era o início as noite. A eleição tinha chegado ao fim. Dois cavaleiros meio encobertos pelos grossos palas que  que lhes desciam até o meio das pernas e as largas abas dos chapéus protegendo-lhes os rostos, pararam à porta de uma vendola na beira da estrada que ia dar em Ferradas. Ao desmontar, deixaram à mostra as pistolas que cada um portava, além de compridos punhais trazidos presos à cintura.

            Os dois estranhos aproximaram-se do pequeno balcão e pediram cachaça.

            - O amigo não foi votar?

            - Não. – respondeu o vendeiro, moço novo chegado há pouco ao lugar. – Vim de Sergipe sabendo que aqui tem muitos assassinatos e eu não quero me envolver em política.

            - E quem são os assassinos aqui? O que vosmecê tá querendo insinuar?

             - Nada não. É que ouvi histórias dos jagunços que matam de tocaia.

            - Aqui nesta terra só tem é macho valente!

            - Valente é quem enfrenta homem cara a cara.

            - O que tá querendo dizer?

            - Esses jagunços são todos uns covardes. Eu gostaria de ver um deles enfrentar um homem frente a frente.

            - Olha que ainda vai ver.

            - No dia em que isso acontecer, eu vou ser padre e celebrar missa, porque nunca vai acontecer.

            - A conversa já foi longe demais, homem.

           As últimas talagadas de cachaça foram tomadas e as derradeiras cusparadas ficaram no chão de terra batida.

            Jogando sobre o balcão alguns níqueis, os dois desconhecidos montaram nos seus cavalos e partiram a galope sumindo na escuridão da noite.

            O tagarela imprudente apagou o fifó da vendinha e foi dormir.

            No outro dia, o sol já se levantara a um bom pedaço de tempo, quando três indivíduos entraram na bodega e intimaram o dono para uma pescaria. Era um domingo silencioso, como todos os domingos de roça.

            Reconhecendo os dois visitantes da véspera, o apavorado vendeiro logo sentiu o pior.

            - Pelo amor de Deus, o que vocês querem de mim?

            - Você vai pescar – disse um. Enquanto falava, foi arrancando o pobre coitado de detrás do balcão. Agarrado de um lado e de outro, em pânico, trêmulo, sem ter para quem apelar, foi sendo levado em direção ao rio. O lugar era deserto. Além disso, o alto barranco e as moitas que cresciam nas encostas deixavam o local longe das vistas dos passantes na estrada.

            Num trecho cheio de pedras baixas e lisas pararam.

            - Agora se benza e ajoelhe – disse um dos bandidos – porque você virou padre e vai celebrar missa. – Dizendo isto, foi lhe vibrando em cima o chicote de umbigo de boi.

            - Levante! – gritou o outro – Vire de frente, nos dê a bênção e se ajoelhe. – O chicote estava caindo.

            - Você não disse que homem aqui não tem coragem de matar cara a cara? Pois vamos lhe mostrar. – E o chicote foi caindo... caindo...

            Era meio-dia. O sol já estava a pino.

            Com as carnes rasgadas, o sangue escorrendo no lajedo quente, a pobre vítima gritava e implorava por socorro e misericórdia, mas os seus gritos de dor e depois os gemidos de moribundo se perdiam na amplidão do espaço. Dentro de poucas horas estava morto e o seu corpo foi rolado para a correnteza do rio.

           Além dos três assassinos, a única testemunha muda desse bárbaro crime, foi o tranquilo e silencioso Rio Cachoeira.

 

(TERRAS DO SUL)

Helena Borborema

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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia, lecionou muitos anos nos colégios Divina Providência, Ação Fraternal e Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna, exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município. 

Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de "emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra". 

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21 DE JUNHO - DIA DE MACHADO DE ASSIS

 

 


Discurso de Inauguração da Academia (20/07/1897)

DISCURSO DE MACHADO DE ASSIS


Pronunciado na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras em 20 de julho de 1897, ao empossar-se Presidente.


"SENHORES,

            Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia Brasileira de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velho dos nossos colegas, estou entre os mais velhos. É simbólico da parte de uma instituição que conta viver, confiar da idade funções que mais de um espírito eminente exerceria melhor. Agora, que vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança.

            Não é preciso definir esta instituição. Iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloquência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta a sessão.

            Acadêmico: Machado de Assis"

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Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

 

Fonte: Academia Brasileira de Letras (ABL)

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segunda-feira, 20 de junho de 2022

ITABUNA CENTENÁRIA UM SONETO: Amor e Vida - Raimundo Correia


 

Amor e Vida

Raimundo Correia

 

Esconde-me a alma, no íntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.

A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!

Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!

E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, ó meu único tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!


                                                            (Sinfonias, 1883.)

 


Raimundo Correia
(R. da Mota de Azevedo C.), magistrado, professor, diplomata e poeta, fundador da cadeira 5 da ABL, nasceu em 13 de maio de 1859, a bordo do navio brasileiro São Luís, ancorado na baía de Mogúncia, MA, e faleceu em Paris, França, em 13 de setembro de 1911.

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sábado, 18 de junho de 2022

POBRE RIO CACHOEIRA, Por Sione Porto

 


Pobre Rio Cachoeira

Sione Porto

 

Menina, vi o Rio Cachoeira,
Belo e veloz, descer
Em busca do mar,
Com seu verde e ondas vertiginosas,
Brilhar perto das margens,
Nos fazendo encantar!

Então, comigo pensava,
Quão magnífico, ó Rio Cachoeira,
Cheio de vida e amplexos,
Trazendo cardumes nas redes
Peixes a se multiplicar,
Para os pobres alimentar!

Menina, vi o Rio Cachoeira
Banhando as lavadeiras,
Que após lavar roupas tão alvas,
Entoando sonoros cantos ribeirinhos,
Saíam com suas trouxas na cabeça,
Nos fazendo sonhar e sonhar!

Hoje, procuro o Rio Cachoeira,
De tanta beleza de outrora,
Mas apenas vejo sujeira,
dentro e nos seus arredores,
povoado de garças sorrateiras,
Que triste é o Rio Cachoeira!

Será que ninguém ver o seu penar?
Antes tão absoluto e majestoso,
A deslizar nas ondas fortes
Na sólida terra grapiúna,
Que hoje geme e sangra,
Querendo se recuperar?

Bravo Rio Cachoeira,
Estrela brilhante,
Daqueles que o amam,
Certamente uma voz,
Falará mais alto para o salvar,
E, como aquele que não foge à luta, sobreviverá!

 

Sione Maria Porto de Oliveira, poetisa.

Membro da Academia de Letras de Itabuna (Alita)

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A Percepção Poética de Heloísa Prazeres

Cyro de Mattos (*)  


            

             Depois da estreia com a Pequena história, antologia pessoal, a baiana (de Itabuna) Heloísa Prazeres retoma seu processo poético com um segundo volume, Casa onde habitamos (2016), formado de consistente união entre inspiração e transpiração, intuições e reflexões, imaginações e registros. Nesse segundo volume, com a ilustração de fotografia de  Jamison Pedra, a poeta usa a palavra simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado de trabalhos de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de interiores sob o teto da terra, memórias para alcançar o  entendimento no mesmo chão de suas origens.

            Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor consiste na  boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa  ver que aqui estamos diante de uma construção poética  segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema,  que diz de emoções chegando da  memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser.   

        Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro, a boa referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de experiências, revelações tantas perante a existência.  Dividido em quatro partes, “Trabalhos de bastidor”, “Antessala de sonho”, “Sob o teto da terra” e “Mesmo chão”, podemos dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça projetos efêmeros ante o eterno que perdura, a chave para o seu conhecimento, distribuído em compartimentos delimitados pelo assunto ou tema, o qual homenageia a vida, está na epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto luminosa contista, quando diz:

 

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco

E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

               

         Quando a reconstrução do mundo no verso é convincente, faz pensar logo como a vida é falha, repleta de contradições dentro de certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da ambiguidade na passagem do tempo. Sendo falha, para equilibrar-se nos vazios, o poeta recorre à   linguagem literária para inaugurar novos sentidos, lembrando assim que na quimera e na divagação, na pureza de dicção superior, criativa, a vida torna-se viável. Utiliza por isso lições plasmadas em linguagem específica para discorrer sobre o espanto da vida e assim prosseguir na litania do verso,  que em si mesmo se sustenta e encanta. 

              O poeta quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes escuras que ocultam o mundo. O verso supre a deficiência crítica, repleta de limitações, impossibilidades que envolvem aos humanos perante a experiência da vida em que entra a solidão, o tédio, o azar e a tristeza.  Embora existam as flores, sabe-se que elas somem, mal surgem. Ao poeta Heloísa Prazeres, o milagre para que sempre sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em tácito entendimento com as altiplanas montanhas de Nevada, como as encontramos no afetuoso “Poema para os meus amigos”. Lembre-se então que, ressoando larguras e profunduras, em mínimas cosmovisões de ternuras, disse Neruda que a flor da alma na alma flora.

          Na geografia íntima da casa abandonada, Heloísa Prazeres não sabe “dizer se havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o mandato da aventura.”  E, porque o desafio consiste em ultrapassar a aventura do viver, o tempo dos legítimos poetas é outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos com “mala fixa e estética”, emoções e conceitos mesclados com a permanência de surpresas, cismas e perplexidades.  É o que percebemos, por exemplo, no discurso singular do poema “Trópico do capricórnio.”

         Até mesmo no poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, de um ritmo quase automático, de incrível rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer Italo Calvino,  fixam-se na  cena com assunto moderno, extraído do mundo internético de hoje, o qual, instalado  no grupo, faz com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na cerimônia ao deus TIC - Tecnologia da Informação e Divulgação.

        Esse modo de estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico que não se ajusta ao sol na manhã com esperança, só comprova que nessa casa de Heloísa Prazeres, aqui e agora, com leveza e graça, densidade e clareza, a poesia está em tudo.

            O poema não engole o poeta quando provido de linguagem adequada e percepção do mundo.

 

Leitura Sugerida

PRAZERES, Heloísa. Casa onde habitamos, Editora Scortecci, São Paulo, 2016.

 


*Cyro de Mattos
é autor premiado no Brasil e exterior.

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