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sábado, 29 de maio de 2021

O POETA INFANTIL FERNANDO PESSOA - Cyro de Mattos

 



O Poeta Infantil Fernando Pessoa

Cyro de Mattos

 

Alguns autores que se notabilizaram na literatura mundial com livros escritos para o leitor crítico também se destacaram quando criaram histórias e versos destinados ao receptor infantojuvenil. Henry Miller escreveu O Sorriso ao pé da escada (1948), a história do palhaço Augusto, que sofria por ser ele e ser o outro vivendo de levar alegria ao mundo. Charles Dickens deixou como obras de literatura para jovens os clássicos David Copperfield (1849-1850) e Oliver Twist (1837). Sophia de Mello Breyner Andresen é autora, entre outros, das belas histórias de A menina do mar (1977, Portugal) e A floresta (1977, Portugal). Juan Ramon Jimenez deixou-nos um livro cativante ao escrever a história de Platero, um burrinho mimoso, que tinha o pelo fofo como algodão.

Fernando Pessoa, o poeta fingidor, que de tanto fingir não sabia se era dor o que de fato sentia, também fez poemas para crianças. O livro Comboio, saudades, caracóis (1968), organizado pelo professor e escritor português João Alves das Neves, reúne dez poemas escritos em tenra idade pelo poeta dos heterônimos. São os seguintes: “À minha querida mamã”, “Havia um menino”, “A íbis”, “O carro de pau”, “Levava um jarrinho”, “Pia, pia, pia”, “No comboio descendente”, “O soba de Bicá”, “Poema Pial” e “Saudades”.

Em todos esses poemas acontece a harmonia da forma espontânea com o ritmo que arrasta, encanta e prende.  Esta é a primeira vez que se tem no Brasil a oportunidade de entrar em contato com Fernando Pessoa publicado em livro na condição de autor de poemas para meninos, embora a criança seja tema ou referência na sua poesia adulta.

O primeiro poema deste precioso pequeno livro, “À minha querida mamã”, escrito em 26.7.1895, quando o poeta tinha apenas sete anos de idade, segundo João Alves das Neves, mostra graça e delicadeza em quatro versos de rimas fáceis, nos quais a sensibilidade e a imaginação do menino já prenunciam esse fenômeno da poesia ocidental que é Fernando Pessoa, o criador dos famosos heterônimos Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, poetas que têm voz e biografia próprias.  

Eis o que diz o poeta menino à sua querida mamãe:

 

Ó terras de Portugal

Ó terras onde eu nasci

Por muito que goste delas

Inda gosto mais de ti. 

 

Em “Havia um menino”, o riso que cada verso provoca vai puxando o leitor para a surpresa que se revela com ainda mais graça no final do poema, porque o caracol no chapéu para pôr na cabeça por causa do sol era do cabelo.

Vejam agora quanto humor fino de uma sensibilidade infantil, mesclado de leveza e graça, aflora neste desenho poético de “A íbis”, a ave do Egito:



 Pousa sempre sobre um pé

O que é esquisito.

É uma ave sossegada

Porque assim não anda nada.

 

Em “O carro de pau”, o motivo inspirador do poema é a morte, assunto que seria abordado muitas vezes pelo poeta de Mensagem posteriormente, fazendo pulsar seu ritmo estranho na mente do homem atormentado, diante do inexorável com o seu peso do mundo e o vazio de tudo. “Levava um jarrinho”, o terceiro poema do livro, que é ilustrado pela desenhista Cláudia Scatamacchia, é uma obra-prima. As cenas que a vivacidade do menino poeta inventa provocam o riso suscitado pelas imagens de cada verso, cada uma mais engraçada do que a outra. “Saudades” é outra joia de delicadeza e simplicidade. Aqui, o menino Fernando Pessoa fala com sabedoria dessa palavra que tanto ressoa na alma portuguesa quando está distante.

Saudades, só portugueses

Conseguem senti-las bem,

Porque têm essa palavra

Para dizer que as têm

 

A leitura desses significativos poemas infantis, enfeixados em Comboio, saudades, caracóis, mostra em boa hora que a alma de Fernando Pessoa estava acesa desde bem cedo com os raios da beleza, ternura e graça. Nestes versos íntimos da infância, uma nova faceta é revelada deste poeta magnífico, reconhecido como um dos maiores da humanidade, tradutor, no fundo de cada gesto, das nossas angústias que passam pela roda do eterno.

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* “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, no prelo.

     Comboio, saudades, caracóis, Fernando Pessoa, poemas infantis, organização João Alves dos Santos, Prêmio Ofélia Fontes – FNLIJ, Editora FTD, São Paulo, 1988.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias editoras na Europa. Premiado no Brasil, Itália, Portugal e México. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela UESC.

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