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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O COLÉGIO – Helena Borborema



             Ana Maria acabara de receber o pacote de maçãs trazido do mercado pela empregada. A manhã já ia pelo meio e ela havia convidado amigos para o jantar. Por que não fazer logo com aquelas maçãs a torta que havia desejado para a sobremesa da noite? Nesse sentido, começou a descascar as frutas. As maçãs eram vermelhas, bonitas, e o seu cheiro ativo logo impregnou todo o ambiente. Mas uma coisa estranha acontecia: aquele perfume sempre lhe lembrava coisas da infância, como as viagens de navio para Salvador quando, enjoada, só comia maçãs, ou as das merendas que levava para o colégio, quando no curso primário. Por isso ela hoje as detesta. Mas naquele momento veio-lhe de imediato à memória as maçãs grandes, vermelhas e cheirosas, que o pai comprava para ela no bar do senhor Elias Grimann.

            O senhor Elias era um lituano alegre, baixo e magrinho, muito educado, dono do Elite Bar, onde vendia frutas importadas, vinhos e licores finos, bombons e chocolates também importados. Porém entre os artigos mais procurados em seu estabelecimento, estavam os finos biscoitos “Aimoré”, embalados em bonitas latas com a figura de um também bonito índio impresso na tampa. E naquele momento, meu Deus! Como podia ser? – pensava Ana Maria. Como um passado de tantos anos podia voltar de repente, tão vivo, tão real, trazido pelo aroma de uma fruta? Uma lembrança olfativa e visual ao mesmo tempo, pouco a pouco lhe trouxe imagens que foram ficando cada vez mais vivas, e ela se viu no pátio de um colégio. Sim, era ela mesma, o uniforme do colégio que era o mesmo, saia azul de pregas, blusa branca e gravata também azul. Ela sorria com uma bonita maçã vermelha na mão. Era um recreio de meninas.

            Ana Maria não quis deter suas lembranças. Era bom recordar aquele passado que julgara estar muito para trás, mas que agora via, nítido, real. O pátio do colégio estava ali à sua frente, era o pátio de recreio do Colégio Divina Providência. Ela o reviu perfeitamente. Parou de descascar as maçãs, evocando mais acuradamente a cena. E um tempo passado voltou, uma fase de sua vida reviveu. Era menina, do primeiro ano primário, quando começou a frequentar aquele educandário, então dirigido por um grupo de religiosas. Uma a uma as figuras das freiras foram lhe surgindo como os olhos da mente as guardaram. Viu uma baixinha, gorducha, de olhos meio esverdeados, ar sarcástico, com quem ela nunca simpatizou. Foi sua professora nos dois primeiros anos primários, mas nunca soube cativar a amizade da menina. Viu ainda, nitidamente, uma outra de sobrolho carregado, que foi também sua professora e de quem também não guardou lembrança agradável. Outras figuras foram surgindo uma após outra, professoras, colegas, imagens distantes, mas redivivas. Sorriu quando viu a figura, alta, corada, nariguda, de sua primeira professora de piano, uma freira do Rio Grande do Norte, única de quem gostou por ser ela talvez a mais afetuosa.

            Ana Maria se deteve no trabalho para bisbilhotar melhor aquele cenário que a lembrança desenterrara. Viu-se no dia de sua Primeira Comunhão, na capelinha de Santo Antônio, com mais duas colegas cujas fisionomias o tempo apagou. Foi durante uma missa muito bonita, toda cantada, pois as freiras festejavam o dia da padroeira da Ordem. Com este pensamento, chegou-lhe à boca o gosto das empadas de camarão que sua mãe encomendara para aquele dia de festa, feitas por dona Santinha, uma portuguesa casada com o jardineiro da Prefeitura, também português. Empadas de preparo inigualável, tão bem feitas e saborosas que ficaram na lembrança, desafiando o tempo.

            Foi com as freiras do Divina Providência que Ana Maria iniciou o seu estudo de religião através do catecismo e das leituras da História Sagrada da conceituada Editora F. T. D. Este livro para escolares, de linguagem simples, com ilustrações, narrava todas as passagens do Antigo e do Novo Testamento de modo agradável, atrativo. Data dessa época, o curso primário, o seu conhecimento de todos aqueles personagens bíblicos, como por exemplo, Absalão, cuja figura ela guardara na retina, com a sua farta cabeleira presa aos galhos de uma árvore, e um soldado ao lado com a espada desembainhada para o matar. A leitura da História Sagrada expusera para ela, ainda menina, o mundo das figuras bíblicas como Abraão, Isaac, Moisés, Davi e outros. O sacrifício de Abraão no monte Moriá a deixara impressionada pela atitude corajosa do patriarca. Só o que lhe causava cisma era a figura de Deus Pai, representada por um velho de longa barba branca, de aspecto severo, que lhe impunha um respeito enorme, até um certo temor.

            Foi também no Divina Providência que ela aprendeu a segurar a agulha para bordar, nas aulas diárias de costura, à tarde, a que todas as alunas eram obrigadas a frequentar. Essas aulas começavam às 14 horas e o sinal era dado pelo apito do trem e iam até às 16 horas. No fim do ano letivo, os bordados adornando almofadas ou transformados em toalhas, blusas, paninhos diversos, eram apresentados em grande exposição, com o comparecimento das mães das alunas e visitantes. Ainda no final do ano Letivo, as freiras faziam para as famílias das alunas uma grande festa com representações teatrais, bailados, poesias, e no final, de modo solene, a leitura de notas de cada aluna e a distribuição de medalhas àquelas que fizeram jus.

            Além das matérias tradicionais do currículo e das aulas de bordado, as alunas tinham toda semana uma hora de aula de civilidade. Nessa ocasião eram ensinadas as boas maneiras, como se portar à mesa na hora das refeições, na sala de visitas, como tratar os superiores e empregados, a boa postura ao se sentar, ao andar, ao falar e ao rir, as atenções para com um hóspede. Enfim, por mais “botocuda” que fosse a aluna, tinha ali com as religiosas, a boa educação. Uma educação pode-se dizer, integral. O amor à Pátria era incentivado com os hinos no fim da tarde, bem como a exaltação à figura dos Santos, também invocados em hinos e orações, para começar e encerrar os períodos de aula. A Instrução Moral e Cívica, matéria que infelizmente foi abolida, também fazia parte do currículo.

            Quando uma aluna terminava o curso primário, mesmo que não desse continuidade aos estudos, já levava com ela um bom conhecimentos das matérias elementares, boa caligrafia e uma boa formação cívica, moral e religiosa. Para as alunas que quisessem, ainda havia um curso particular de piano, ministrado por uma das freiras. O Divina Providência veio para realizar em Itabuna uma missão importante numa época em que a cidade sentia de maneira premente a necessidade de um educandário.

            À noite, durante o jantar, essas lembranças de Ana Maria foram abordadas como um dos temas de conversa. Opiniões foram surgindo, comentários e elogios unânimes cercaram o Colégio Divina Providência, que como o próprio nome diz, gozou sempre da proteção de Deus.

            Entre as amigas presentes, uma lembrou-se da cisterna que havia no pátio do colégio, fechada por grande tampa de cimento e com uma bomba para levar água ao edifício, foi lembrada também a cozinha, onde a figura de proa era Porcina, cozinheira das freiras e perita no preparo de um alféloa, que fazia a delícia das meninas no recreio. Uma particularidade do Divina Providência era o seu internato, que abrigava grande número de meninas que moravam fora da cidade, e que sem essa casa de ensino teriam seus estudos dificultados.

            “E o prédio?” – observou outra amiga. Como se conservou a fachada, coisa difícil em Itabuna que pouco preserva o seu patrimônio! Realmente, o Divina Providencia tem mais esse mérito, o de conservar até hoje as suas características arquitetônicas iniciais. Nada mudou externamente, só o interior teve de ser alterado para ampliação das salas de aula, auditório, atendendo exigências outras do ensino moderno.

            No bate-papo do jantar, foram ainda lembradas as figuras daqueles homens idealistas e dedicados a Itabuna, a cujos esforços a cidade deve esse seu patrimônio cultural. O Divina Providência nasceu do idealismo e esforços de homens como Monsenhor Moisés Gonçalves do Couto, então vigário da Paróquia; Dr. Celso Fontes Lima, que até o fim da vida dedicou todos os seus esforços em defesa dos interesses do Colégio; senhores Ramiro Nunes de Aquino, Otávio Mendonça, Antônio Lúcio da Silva e alguns outros (todos pertencentes à Sociedade de São Vicente de Paula, de Itabuna), e mais tarde fortalecido pelo esforço e dedicação de dona Lindaura Brandão de Oliveira, sua diretora por vários anos.

            Após alguns anos de bons serviços, as Religiosas deixaram o Colégio, quando ele passou então para as mãos de professores não-pertencentes à ordem religiosa.

            A instalação do curso ginasial no Divina Providência foi um marco importante na vida de Itabuna. Antes disso, nem todos os jovens da cidade e da região podiam ter acesso ao ginásio. Só quem possuía muito dinheiro ou se atrevia a arcar com enorme sacrifício podia mandar um filho estudar em Salvador. Estudar na Capital era difícil, a começar pela viagem. Feita de navio, que nem sempre tinha viagens regulares, passou a ser feita também, a partir da década de trinta, por via terrestre, nas chamadas marinetes. Com as estradas em construção, a viagem era feita em duas etapas, o que equivalia a dois dias. Via Itabuna-Jequié, via Itabuna-Conquista. A comunicação da família com o filho estudante era outra dificuldade, só feita por telegrama, que quase sempre chegava atrasado ao destinatário, ou por meio de carta que, não raro, extraviava. Então muitas famílias pagavam a um correspondente, senhor de confiança que uma vez por mês ia a Salvador, levando dinheiro, carta, doces, roupas, encomendas para o filho estudante. O mais procurado era um senhor de nome Tranquilino. Na volta, trazia para a família as esperadas notícias, com a vantagem de ter falado a viva voz com o jovem.

            Cada amiga presente ao jantar tinha uma lembrança na família nesses tempos difíceis e dispendiosos, pois todo jovem estudante que ia do interior tinha que ficar interno no colégio, o que era muito caro, ou num pensionato, o que custava também muito dinheiro, salvo para aqueles  que tinham parentes em Salvador. Assim, a criação do curso Normal e depois o Ginasial no Divina Providência foi tão importante, que Itabuna podia ser marcada por duas épocas: antes e depois do Divina Providência.

            Como o sol esparge a luz, o Divina Providência espargiu pela Bahia um exército, um número incontável de jovens que hoje engrandecem a terra onde nasceram ou vivem. Em todas as profissões brilham nomes de ex-alunos do Divina Providência. Na Medicina, no Direito, na Odontologia, Artes Plásticas, Comércio, Engenharia, na Magistratura, no Clero, na vida pública, na política, no Jornalismo, nas Oficinas, no Exército, em todos os setores enfim, está um homem ou uma mulher bem preparado, que recebeu como alicerce de sua formação os ensinamentos do Ginásio Divina Providência.

            Ana Maria terminou o seu jantar com a alegria das boas  lembranças surgidas, boas recordações, lembrando que também daquele colégio ela saiu para continuar  os seus estudos e para ele voltou mais tarde, como professora, indo lecionar nas mesmas salas onde anos antes estudara, pisar o mesmo pátio onde, menina, já merendara risonha, bonitas e lustrosas maçãs vermelhas.

(RETALHOS)
Helena Borborema


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