O senhor
Elias era um lituano alegre, baixo e magrinho, muito educado, dono do Elite
Bar, onde vendia frutas importadas, vinhos e licores finos, bombons e
chocolates também importados. Porém entre os artigos mais procurados em seu
estabelecimento, estavam os finos biscoitos “Aimoré”, embalados em bonitas
latas com a figura de um também bonito índio impresso na tampa. E naquele
momento, meu Deus! Como podia ser? – pensava Ana Maria. Como um passado de tantos
anos podia voltar de repente, tão vivo, tão real, trazido pelo aroma de uma
fruta? Uma lembrança olfativa e visual ao mesmo tempo, pouco a pouco lhe trouxe
imagens que foram ficando cada vez mais vivas, e ela se viu no pátio de um
colégio. Sim, era ela mesma, o uniforme do colégio que era o mesmo, saia azul
de pregas, blusa branca e gravata também azul. Ela sorria com uma bonita maçã
vermelha na mão. Era um recreio de meninas.
Ana Maria
não quis deter suas lembranças. Era bom recordar aquele passado que julgara
estar muito para trás, mas que agora via, nítido, real. O pátio do colégio
estava ali à sua frente, era o pátio de recreio do Colégio Divina Providência.
Ela o reviu perfeitamente. Parou de descascar as maçãs, evocando mais
acuradamente a cena. E um tempo passado voltou, uma fase de sua vida reviveu.
Era menina, do primeiro ano primário, quando começou a frequentar aquele
educandário, então dirigido por um grupo de religiosas. Uma a uma as figuras
das freiras foram lhe surgindo como os olhos da mente as guardaram. Viu uma
baixinha, gorducha, de olhos meio esverdeados, ar sarcástico, com quem ela
nunca simpatizou. Foi sua professora nos dois primeiros anos primários, mas
nunca soube cativar a amizade da menina. Viu ainda, nitidamente, uma outra de
sobrolho carregado, que foi também sua professora e de quem também não guardou
lembrança agradável. Outras figuras foram surgindo uma após outra, professoras,
colegas, imagens distantes, mas redivivas. Sorriu quando viu a figura, alta,
corada, nariguda, de sua primeira professora de piano, uma freira do Rio Grande
do Norte, única de quem gostou por ser ela talvez a mais afetuosa.
Ana Maria
se deteve no trabalho para bisbilhotar melhor aquele cenário que a lembrança
desenterrara. Viu-se no dia de sua Primeira Comunhão, na capelinha de Santo
Antônio, com mais duas colegas cujas fisionomias o tempo apagou. Foi durante
uma missa muito bonita, toda cantada, pois as freiras festejavam o dia da
padroeira da Ordem. Com este pensamento, chegou-lhe à boca o gosto das empadas
de camarão que sua mãe encomendara para aquele dia de festa, feitas por dona
Santinha, uma portuguesa casada com o jardineiro da Prefeitura, também
português. Empadas de preparo inigualável, tão bem feitas e saborosas que ficaram
na lembrança, desafiando o tempo.
Foi com as
freiras do Divina Providência que Ana Maria iniciou o seu estudo de religião
através do catecismo e das leituras da História Sagrada da conceituada Editora
F. T. D. Este livro para escolares, de linguagem simples, com ilustrações,
narrava todas as passagens do Antigo e do Novo Testamento de modo agradável,
atrativo. Data dessa época, o curso primário, o seu conhecimento de todos
aqueles personagens bíblicos, como por exemplo, Absalão, cuja figura ela
guardara na retina, com a sua farta cabeleira presa aos galhos de uma árvore, e
um soldado ao lado com a espada desembainhada para o matar. A leitura da
História Sagrada expusera para ela, ainda menina, o mundo das figuras bíblicas
como Abraão, Isaac, Moisés, Davi e outros. O sacrifício de Abraão no monte
Moriá a deixara impressionada pela atitude corajosa do patriarca. Só o que lhe
causava cisma era a figura de Deus Pai, representada por um velho de longa
barba branca, de aspecto severo, que lhe impunha um respeito enorme, até um
certo temor.
Foi também
no Divina Providência que ela aprendeu a segurar a agulha para bordar, nas
aulas diárias de costura, à tarde, a que todas as alunas eram obrigadas a
frequentar. Essas aulas começavam às 14 horas e o sinal era dado pelo apito do
trem e iam até às 16 horas. No fim do ano letivo, os bordados adornando
almofadas ou transformados em toalhas, blusas, paninhos diversos, eram
apresentados em grande exposição, com o comparecimento das mães das alunas e
visitantes. Ainda no final do ano Letivo, as freiras faziam para as famílias
das alunas uma grande festa com representações teatrais, bailados, poesias, e
no final, de modo solene, a leitura de notas de cada aluna e a distribuição de
medalhas àquelas que fizeram jus.
Além das
matérias tradicionais do currículo e das aulas de bordado, as alunas tinham
toda semana uma hora de aula de civilidade. Nessa ocasião eram ensinadas as
boas maneiras, como se portar à mesa na hora das refeições, na sala de visitas,
como tratar os superiores e empregados, a boa postura ao se sentar, ao andar,
ao falar e ao rir, as atenções para com um hóspede. Enfim, por mais “botocuda”
que fosse a aluna, tinha ali com as religiosas, a boa educação. Uma educação
pode-se dizer, integral. O amor à Pátria era incentivado com os hinos no fim da
tarde, bem como a exaltação à figura dos Santos, também invocados em hinos e
orações, para começar e encerrar os períodos de aula. A Instrução Moral e
Cívica, matéria que infelizmente foi abolida, também fazia parte do currículo.
Quando uma
aluna terminava o curso primário, mesmo que não desse continuidade aos estudos,
já levava com ela um bom conhecimentos das matérias elementares, boa caligrafia
e uma boa formação cívica, moral e religiosa. Para as alunas que quisessem,
ainda havia um curso particular de piano, ministrado por uma das freiras. O
Divina Providência veio para realizar em Itabuna uma missão importante numa
época em que a cidade sentia de maneira premente a necessidade de um
educandário.
À noite,
durante o jantar, essas lembranças de Ana Maria foram abordadas como um dos
temas de conversa. Opiniões foram surgindo, comentários e elogios unânimes
cercaram o Colégio Divina Providência, que como o próprio nome diz, gozou
sempre da proteção de Deus.
Entre as
amigas presentes, uma lembrou-se da cisterna que havia no pátio do colégio,
fechada por grande tampa de cimento e com uma bomba para levar água ao
edifício, foi lembrada também a cozinha, onde a figura de proa era Porcina,
cozinheira das freiras e perita no preparo de um alféloa, que fazia a delícia
das meninas no recreio. Uma particularidade do Divina Providência era o seu
internato, que abrigava grande número de meninas que moravam fora da cidade, e que
sem essa casa de ensino teriam seus estudos dificultados.
“E o
prédio?” – observou outra amiga. Como se conservou a fachada, coisa difícil em
Itabuna que pouco preserva o seu patrimônio! Realmente, o Divina Providencia
tem mais esse mérito, o de conservar até hoje as suas características
arquitetônicas iniciais. Nada mudou externamente, só o interior teve de ser
alterado para ampliação das salas de aula, auditório, atendendo exigências
outras do ensino moderno.
No bate-papo
do jantar, foram ainda lembradas as figuras daqueles homens idealistas e
dedicados a Itabuna, a cujos esforços a cidade deve esse seu patrimônio
cultural. O Divina Providência nasceu do idealismo e esforços de homens como
Monsenhor Moisés Gonçalves do Couto, então vigário da Paróquia; Dr. Celso
Fontes Lima, que até o fim da vida dedicou todos os seus esforços em defesa dos
interesses do Colégio; senhores Ramiro Nunes de Aquino, Otávio Mendonça,
Antônio Lúcio da Silva e alguns outros (todos pertencentes à Sociedade de São
Vicente de Paula, de Itabuna), e mais tarde fortalecido pelo esforço e
dedicação de dona Lindaura Brandão de Oliveira, sua diretora por vários anos.
Após
alguns anos de bons serviços, as Religiosas deixaram o Colégio, quando ele
passou então para as mãos de professores não-pertencentes à ordem religiosa.
A
instalação do curso ginasial no Divina Providência foi um marco importante na
vida de Itabuna. Antes disso, nem todos os jovens da cidade e da região podiam
ter acesso ao ginásio. Só quem possuía muito dinheiro ou se atrevia a arcar com
enorme sacrifício podia mandar um filho estudar em Salvador. Estudar na Capital
era difícil, a começar pela viagem. Feita de navio, que nem sempre tinha
viagens regulares, passou a ser feita também, a partir da década de trinta, por
via terrestre, nas chamadas marinetes. Com as estradas em construção, a viagem
era feita em duas etapas, o que equivalia a dois dias. Via Itabuna-Jequié, via
Itabuna-Conquista. A comunicação da família com o filho estudante era outra
dificuldade, só feita por telegrama, que quase sempre chegava atrasado ao
destinatário, ou por meio de carta que, não raro, extraviava. Então muitas
famílias pagavam a um correspondente, senhor de confiança que uma vez por mês
ia a Salvador, levando dinheiro, carta, doces, roupas, encomendas para o filho
estudante. O mais procurado era um senhor de nome Tranquilino. Na volta, trazia
para a família as esperadas notícias, com a vantagem de ter falado a viva voz
com o jovem.
Cada amiga
presente ao jantar tinha uma lembrança na família nesses tempos difíceis e
dispendiosos, pois todo jovem estudante que ia do interior tinha que ficar interno no colégio, o que era muito caro, ou num pensionato, o que custava também
muito dinheiro, salvo para aqueles que
tinham parentes em Salvador. Assim, a criação do curso Normal e depois o
Ginasial no Divina Providência foi tão importante, que Itabuna podia ser
marcada por duas épocas: antes e depois do Divina Providência.
Como o sol
esparge a luz, o Divina Providência espargiu pela Bahia um exército, um número
incontável de jovens que hoje engrandecem a terra onde nasceram ou vivem. Em
todas as profissões brilham nomes de ex-alunos do Divina Providência. Na
Medicina, no Direito, na Odontologia, Artes Plásticas, Comércio, Engenharia, na
Magistratura, no Clero, na vida pública, na política, no Jornalismo, nas
Oficinas, no Exército, em todos os setores enfim, está um homem ou uma mulher
bem preparado, que recebeu como alicerce de sua formação os ensinamentos do
Ginásio Divina Providência.
Ana Maria
terminou o seu jantar com a alegria das boas
lembranças surgidas, boas recordações, lembrando que também daquele
colégio ela saiu para continuar os seus
estudos e para ele voltou mais tarde, como professora, indo lecionar nas mesmas
salas onde anos antes estudara, pisar o mesmo pátio onde, menina, já merendara
risonha, bonitas e lustrosas maçãs vermelhas.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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