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sexta-feira, 29 de março de 2024

 

Crônica da Procissão da Sexta-Feira Santa 

Cyro de Mattos  

 


          Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer por isso. 

            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens. 

            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus na cruz de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus, muita gente chorava. 

            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora, o cinema quase vinha abaixo com as vaias da plateia. 

           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas principais da cidade sob os cantos orantes, que falavam de pesares  e perdão: 

 

                             Perdoai, Senhor, por piedade, 

                             Perdoai, Senhor, tanta maldade, 

                             Antes morrer, antes morrer 

                             Do que Vos ofender, 

                       Perdoai, Deus do amor. 

             

        A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto, as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo Salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido roxo, que tocava os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário. 

            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava. 

                              

                           Pai salvador, 

                          Misericordioso, 

                         Toca no meu peito 

                        O sofrimento Teu.                   

                        Fadiga, sede, fome. 

                       Cuspe, espinho, sangue,                    

                       Chicotada, prego, 

                       Madeira feita cruz, 

                       Meu Pai, perdoai 

                       Os pecados meus. 

 

            Naquele ano, em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja, para ser colocada no altar, quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados. 

            No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As botinas novas apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. Os calos estão doendo muito, não aguento mais, disse aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim. 

            Preferi não obedecer à minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse uma situação muito pior do que aquela que se deu com a beata Detinha. Como ela, eu desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo. 

            Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão com a sua voz bondosa, escutei ela dizer que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas. 

            Mas muita gente reparou depois na atitude de minha mãe, achou que menino mimado daquele jeito poderia não dar certo no futuro.        

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Cyro de Mattos é contista, poeta, romancista, ensaísta, cronista e autor de livros para crianças. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz

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quinta-feira, 21 de março de 2024

 

Livraria Civilização

Cyro de Mattos



Quando estudante universitário, uma das coisas que gostava era de ir à Rua Chile. Quase todos os dias, visitava a Livraria Civilização Brasileira como uma necessidade que o tempo impunha, semelhante àquela quando se tem sede ou fome. Na Livraria Civilização, de Dmeval Chaves, livreiro muito amigo de Jorge Amado, percorria as prateleiras, procurando achar algumas dessas raridades literárias, que há algum tempo estivessem com a edição esgotada. Perguntava ao vendedor Toninho se havia chegado algum livro novo de literatura. Examinava na vitrina as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Lima Barreto. Os livros de Dostoiewski, Hemingway, Faulkner, Sartre e Camus. Sagarana, de João Guimarães Rosa, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, lá estavam para causar impacto e opiniões acaloradas entre os companheiros de geração.

Era na Livraria Civilização que me encontrava com os companheiros de geração, à qual alguns deles pertenciam por afinidades eletivas, enquanto outros em razão da idade. Ildásio Tavares, Alberto Silva, Ricardo Cruz, Marcos Santarrita, Orlando Sena, Olney São Paulo, João Ubaldo Ribeiro, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Davi Sales, João de Góes Berbert, Carlos Falk e Carlos Nelson Coutinho. Encontrava, quase todos os dias, com três ou quatro desses companheiros de militância cultural, que se iniciava como botão ou rosa entreaberta no mundo da ideia e emoção.

Conversava com Calasans Neto, Jurema Pena e Florisvaldo Mattos. Via o professor Machado Neto com os olhos atentos por trás dos óculos de lentes fortes perscrutando algum exemplar, provavelmente de sociologia ou filosofia. Cruzava com Hélio Rocha, Nélson de Araújo, Vivaldo Costa Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Sonia Coutinho. Era comum naquele tempo Glauber Rocha aparecer com Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres, ou ainda com Carlos Anísio Melhor e Oto Bastos. Inteligência privilegiada, Glauber Rocha formava com os seus companheiros de geração um grupo de intelectuais irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador.

Na Rua Chile, às sextas-feiras, pelo fim da tarde, gostava de ficar olhando nas vitrinas as camisas da última moda, a serem usadas pelos jovens no verão. Depois, naquele momento antecedido de ânsia, lá ficava no passeio de alguma loja, recostado à parede, vendo as garotas que desfilavam com uma ginga provocante. Mulatas, morenas, louras. Nelas aquele cheiro bom de maresia e ventos por toda a extensão da pele. Minhas preferidas eram as mulatas. De olhos gateados, seios despontantes, curvas sensuais. Não podia ver uma dessas mulatas com os quadris rebolando, com todo aquele sabor na pele de fruta gostosa, como já me referi. O romancista João Ubaldo Ribeiro se aqui estivesse agora não me deixaria mentir.

Era lá na Livraria Civilização Brasileira que, entre um cafezinho e outro, intelectuais discutiam e compravam livros. A livraria famosa acabou num incêndio. A Rua Chile despareceu depois que a cidade transportou sua vida empresarial para o Polo Iguatemi.

Como conforto de tudo que se evaporou, o tempo me fez autor de 70 livros, de diversos gêneros. Alguns fossem publicados também em outros idiomas. Quis que vários deles fossem adotados na escola e universidade. Constassem do acervo de livrarias importantes, como Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Fundação Eugênio de Andrade, Porto, Portugal; Biblioteca da Universidade de Austin, Texas; Biblioteca do Congresso, Washington, USA, Biblioteca da Universidade do México, EUA; Biblioteca Nacional (Rio), Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, Biblioteca Pública do Estado da Bahia, Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, Salvador; Biblioteca Municipal de Itabuna, Biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz, Sul da Bahia, Biblioteca da Universidade da Maramata, Ilhéus; Biblioteca do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões, Centro de Documentação, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Biblioteca Pública Central dos Barris, Salvador.

Nessa estrada dos livros, a essa altura comprida, nunca vou me esquecer do vendedor Toninho, da Livraria Civilização Brasileira. Vendeu muitos livros em prestações razoáveis ao moço do interior, de mesada apertada, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Sempre me reservava boas surpresas.

- Olhe aqui o que eu guardei para você – mostrava-me o livro com o riso costumeiro.

Era o último exemplar de O Muro, contos, de Jean Paul Sartre.

 

Cyro de Mattos - Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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quarta-feira, 20 de março de 2024

 

SALVE SÃO JOSÉ

Por Sione Porto



JOSÉ DE NAZARÉ,

DESCENDENTE DA CASA DE DAVI,

VENERADO COMO PADROEIRO UNIVERSAL,

COMO POR ENCANTO SE APAIXONOU POR MARIA,

MAS, FOI IMPEDIDO POR DEUS, POR UM SENÃO,

NÃO PODIA FAZÊ-LA MULHER,

DEVIDO A UMA CONDIÇÃO,

PODIA ATÉ ESPOSÁ-LA MAS,

SEM COMUNHÃO.

MARIA FORA ESCOLHIDA POR DEUS,

PARA SER MÃE DO ESPÍRITO SANTO JESUS,

DEUS HUMANADO A SER COROADO

COMO REI DOS JUDEUS, O MESSIAS.

MARIA MENINA BELA,

PURA E VIRGEM COMO UMA FLOR,

AOS CATORZE ANOS, LOGO ACEITOU SEM SABER O VALOR,

DE SER A ESCOLHIDA PELO DEUS DE AMOR,

APENAS DISSE AO SER ABENÇOADA

PELO ARCANJO GABRIEL:

HOMEM DE DEUS DAS REVELAÇÕES

“FAÇA-SE EM MIM A TUA PALAVRA”.

COMO SERVA FIEL: AJOELHOU E OROU!

E FOI TOMADO TEU VENTRE PELO ESPÍRITO SANTO.

DE PRONTO GEROU E CRIOU

AQUELE QUE SERIA NOSSO REI, PAI,

SENHOR E SALVADOR

CRISTO JESUS, FILHO DE DEUS!

O CRISTO REDENTOU NASCEU EM BELÉM,

NUMA SIMPLES MANJEDOURA,

NÃO HAVIA VAGA NA HOSPEDARIA,

 

MAS FOI REVERENCIADO PELOS REIS MAGOS DO ORIENTE,

COM O PAI ADOTIVO, JOSÉ DE NZARÉ CRISTO CRESCEU

NA MARCENARIA, APRENDEU O OFÍCIO DE CARPINTEIRO,

ENTRETANTO, TUA MISSÃO SANTA ERA OUTRA,

SER REDENTOR DO MUNDO!

EM TODAS PARTES DA TERRA,

JESUS NASCIDO FEITO HOMEM,

JÁ TINHA HISTÓRIA E PASSADO

EM TEU DESTINO SANTO TRAÇADO.

TERIA QUE MORRER, APÓS SER TRAÍDO

POR JUDAS, APÓSTOLO MUITO ESTIMADO.

ASSIM, NA SEXTA-FEIRA SANTA,

ANTES DE SER CRUCIFICADO, POR NOSSOS PECADOS,

NOS DEUS MARIA COMO MÃE,

RAINHA DOS CÉUS, ESPOSA DE JOSÉ.

NESTA ROMARIA DE 19 DE MARÇO,

CANTEMOS E OREMOS COM FERVOR,

PELO DIA SAGRADO AO SANTO JOSÉ.

PAI ADOTIVO DO CRISTO REDENTOR

SALVADOR DA TERRA, A QUEM CRIOU

E MUITO AMOU... SALVE SÃO JOSÉ!

 


Sione Porto - Advogada e membro da Academia de Letras de Itabuna-BA

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sexta-feira, 8 de março de 2024

8 de Março – Dia Internacional da Mulher


Sione Porto

Advogada e membro da Academia de Letras de Itabuna-BA

 

A comemoração da data destaca a importância das mulheres na sociedade e a história da luta pelos seus direitos: como combate ao preconceito, à desvalorização e ao desrespeito, exigindo-se, ainda, igualdade de condições de trabalho e liberdade.

Esta data importante de 8 de março não foi aleatoriamente escolhida, haja vista ser uma homenagem às operárias grevistas de uma fábrica têxtil na cidade de Nova Iorque, as quais reivindicavam carga horária de 10 horas de trabalho, das 16 trabalhadas. Nessa ocupação, a fábrica foi fechada e 130 grevistas teriam morrido carbonizadas no ano de 1857.

Temos outras datas significativas pleiteadas pelas mulheres, por exemplo, em 1691, mulheres do estado de Massachussetts também fizeram suas reivindicações por direitos iguais, como o voto, inobstante, em 1789, venham a perdê-lo.

Em 1788, o político, filósofo e revolucionário francês Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet, reclamou para as mulheres os direitos à educação e participação na vida política, além do acesso ao emprego. Quatro anos depois, em 1792, no Reino Unido, a feminista inglesa Mary Wollstonecraft publicou um texto a respeito das desigualdades femininas: “Direito das Mulheres, injustiças dos Homens”.

Poderíamos citar inúmeros artigos pela luta das mulheres e sua pressão espalhada pelo mundo reivindicando direitos e liberdade. O Dia Internacional da Mulher, em 8 de março e em todos outros dias, deveu-se, como comprovou a história, ao fato das desigualdades femininas em relação aos homens, que se julgavam superiores, seja no setor político, direito de votar, empregos e salários.

No ano de 1840, nos Estados Unidos, Lucretia Mott lança os alicerces da Equal Rights Association, igualmente pleiteando direitos iguais para mulheres e negros.

Na América do Sul, Brasil e Argentina se movimentaram no combate às desigualdades contra as mulheres, posto que, através dos séculos, as mulheres eram vistas como um ser inferior, consideradas mera reprodutoras pelos maridos para lhes permitirem somente o prazer. Porém, com a evolução dos tempos e denúncias, a igualdade foi em parte alcançada.

Em 1908, operárias americanas de Nova Iorque, que trabalhavam na fábrica de camisas Triangle Shirtwaist, também reivindicaram seus direitos e redução de carga horária.

Três anos depois, em 1911, cerca de 145 trabalhadores (mulheres em sua maioria) morreram num incêndio ocorrido numa fábrica de tecidos novaiorquina.

No ano de 8 de março de 1917, após o fim da Primeira Guerra Mundial, 90 operárias russas promoveram um protesto por melhorias de trabalho e contra as ações do Czar Nicolau II, que ficou conhecido como Pão e Paz.

Na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, ocorrida na Dinamarca em 1910, Clara Zetkin, marxista alemã, propôs a criação de um dia para as mulheres, levando em consideração o evento russo de 8 de março de 1917. Porém, somente em 1975, a ONU instituiu o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.

Ilustres mulheres feministas se posicionaram a favor dos direitos e igualdades das mulheres, como a já citada escritora, filósofa e defensora dos diretos das mulheres Mary Wollstonecraft; a escritora francesa Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de Beauvoir; as brasileiras Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, educadora e intelectual, a feminista, escritora e abolicionista Nísia Floresta, a cientista Bertha Lutz e a ativista Maria da Penha Maia Fernandes, que deu nome à Lei 1.340/06 – Lei Maria da Penha, que veio proteger as mulheres contra qualquer tipo de violência, física, moral, patrimonial e psicológica contra ela.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Um Pouco da Vida do Pai

Cyro de Mattos



          A mãe contou ao filho um pouco da vida do pai quando era rapaz. Nunca teve ajuda de ninguém para sobreviver na dura lei da vida. Chegar ao que chegou como homem dono de um patrimônio respeitável, sem nunca ter cursado uma escola, aprendendo a ler, escrever e fazer conta com esforço próprio, era para aplaudi-lo sem economizar as palmas. Fizera o patrimônio com esforço, muito trabalho e esperteza nos negócios. Era por isso que pessoas na cidade não hesitavam em dizer que o pai era um homem admirável, exemplo de vida que deveria ser seguido por outras pessoas, que quisessem fazer fortuna.

          O pai trabalhou na roça de fazendeiro rico quando rapazinho, o buço sombreando o lábio. Roçou pasto de plantas daninhas com foice e facão afiados, limpou chácaras e represas com água no pescoço. Derrubou com o machado árvore grande que servisse para fazer tábua, estaca, ripa, peça para esteio, cancela e cumeeira de casa.

          Fez calo nas mãos, de tanto derrubar a árvore com o machado. Veio para a cidade e passou a ser balconista numa loja da rua do comércio, que vendia artigos para campo e cidade. O dono da loja deixava que o pai dormisse embaixo do balcão. Acordava cedo, perto de clarear o dia. Fazia o café num pequeno cômodo, nos fundos da loja. Bebia sem um pingo de leite, acompanhado do pão amanteigado. Usava para fazer o asseio do corpo o pequeno banheiro da loja, com uma pia, chuveiro e vaso sanitário. Era ele quem cedo abria a loja para o movimento do dia.

          Juntou dinheiro com parte do ordenado que ia ganhando a cada mês e se afastou do emprego de balconista na loja. Comprou uma vendola de beira de estrada, nos arredores da cidade. Acordava de madrugada, fazia a refeição do café da manhã, a seguir abria a porta da frente da vendola. Morava num cômodo estreito, ele mesmo lavava sua roupa no riacho que passava nos fundos da vendola. Ensaboava, enxaguava, botava para secar no varal. Com a roupa seca e limpa, usava o ferro de passar para deixá-la pronta de ser usada na semana. De segunda a sábado, atendia na vendola os que passavam para o trabalho na cidade e ali paravam para comprar alguma coisa ou os que voltavam das compras que faziam no comércio e se dirigiam para as roças com os burros carregados de mantimentos.

          A vendola fora o começo de tudo para o pai fazer o patrimônio. Foi dela que teve umas rendas miúdas, mas frequentes, dando para juntar o dinheiro que ganhava, guardado no baú. Foi assim que com trabalho e tirocínio construiu a primeira avenida de casinhas no outro lado do rio. Quando isso aconteceu, ele mesmo era o pedreiro, às vezes fazia o papel de servente da obra, mexendo com a enxada a massa de cimento, misturando-a com areia e um pouco de água, derramada na lata, até que desse no ponto para levantar e rebocar a parede de tijolo.

          Tempos depois deu para comprar terrenos baldios nos bairros e centro da cidade. Comprava casas velhas, reformava-as para que fossem alugadas. Um dia adquiriu uma pequena fazenda de cacau naquela região que tinha a fama de possuir a terra fértil, onde tudo que se plantava dava com fartura. Como as estações eram temperadas de sol e chuva, o que se plantava vingava na hora certa.


(Capítulo do romance Do Menino Se Fez o Homem, em andamento para ser impresso, com o selo editorial da Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador.)

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Publicado nos Estados Unidos, Dinamarca, Rússia, Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor  Honoris Causa pela UESC.

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