Total de visualizações de página

sábado, 16 de setembro de 2017

CHAMEGO: AFETO ANCESTRAL QUE CHEGOU COM OS POVOS BANTOS NO BRASIL

Por Davi Nunes

A transposição do sentimento africano para o Brasil ocorreu muito através das línguas que eles trouxeram para cá. A língua como revestimento sensível da nossa humanidade, transposição dos laços profundos do coração, da ancestralidade afetuosa que resistiu às atrocidades transatlânticas – absurdas ações que duraram séculos. Dois continentes e um mar tingido de sangue, não foram suficientes para destruir a beleza dos sentimentos originários dos diversos povos africanos que chegaram por essas terras.

Os povos bantos, assim, foram os primeiros a chegarem nesse país. De maneira que as línguas da raiz banto: Quimbundo, Quicongo, Umbundo, entre outras influíram de forma substancial na formação do  português brasileiro, conseguiram influenciar nas diversas estruturas do idioma e colocaram na vitrine da fala e escrita signos que nos religam a uma maneira de sentir e pensar africano, que permaneceu e permanece na nossa forma de demonstrar afeto e saber.

Assim, uma das palavras que está dentro dessa raiz estruturante na constituição do português, ou “pretoguês” brasileiro (a qual me atenho aqui) é a palavra “chamego”, ou mais africanamente escrita “xamego”.

O chamego é um sentimento de atração – repuxo civilizatório ancestral íntimo – de negrxs que veio com os povos bantos da África e ganhou campo fértil no Brasil. É lastro de afeto que compõe o ser, é o galanteio e o bem-querer que se bem feito se chega ao xodó para daí se construir o dengo.

Talvez pode se equiparar com a paixão, mas a paixão na cultura ocidental funciona mais como um desalinho dos sentidos, que pode pender para algo bom ou ruim. Entre a tragédia e a benevolência a linha é tênue. Diferente do chamego que é alinho manhoso dos sentidos. É sublimação positiva dos sentimentos. É alinhamento ancestral.

Estar de chamego com alguém é estar preocupado em encantar a pessoa do nosso desejo, há poesia e flerte libidinoso nisso, não é sentimento murcho, preenche a existência. O chamego é força propulsora de beleza, é o religamento dos continentes afastados, que se manifesta no frio que esquenta o espírito a eriçar os pelos.

Além disso, pensando de maneira mais macro, o chamego nas relações familiares e quilombolas é uma prática social de restabelecimento do ser. Se a escravidão e o racismo trouxeram e trazem o banzo – dor e resistência – o chamego cura, reestabelece, dar sentido onde tem desespero. Faz com que se vislumbre o dengo e resista às intempéries estruturais que nos assola no mundo.

Por isso, antes do dengo tem o chamego. Tem que saber “chamegar” para arar o terreno da afetividade na manha, assentar o xodó, fluir de peles, prazeres e fertilidades, entrelaçar corações para erguer de forma suprema o dengo.


Davi Nunes é colaborador do portal SoteroPreta, mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livro Infantil.    

* * *

OS CEM SONETOS DE PILIGRA INSPIRADOS EM JORGE AMADO - Cyro de Mattos

Clique sobre a foto, para vê-la no tamanho original
Os Cem Sonetos de Piligra 
Inspirados em Jorge Amado

                      Cyro de Mattos


          O soneto é uma forma fixa  de poema  com quatorze versos,  dispostos em dois quartetos e dois tercetos.   O último verso é tido como “chave de ouro”,  devendo surpreender e encantar  com a sua revelação no desfecho.  Nessa condição de fechar o soneto com chave de ouro,  o último verso  sustenta a  ideia conduzida nos anteriores.
     
          A paternidade de sua criação é atribuída a Pier  della  Vigna (1197-1249), poeta siciliano,  embora a  primazia da invenção  seja atribuída a outros nomes, segundo os estudiosos. O soneto foi  introduzido em Portugal pelo poeta  Sá de Miranda, no século XVI. Atravessou  anos  na península ibérica com a sua magia e poder.

          O primeiro grande poeta a cultivar o soneto foi Dante, mas coube a Petrarca dar-lhe forma e conteúdo,  imprimindo-lhe uma fisionomia própria, autônoma na estrutura modelar. Combatido pelos vanguardistas, sua febre imperceptível  permanece até hoje,  sendo cultivado com fidelidade por poetas modernos,   com vistas a atingir o nível superior da alma,  como resultado do  micro que logra o máximo  na criação expressiva do poema, que dessa maneira, em breve espaço operacional da criatividade,  sustenta o ser em estado súbito da comoção.
   
          Essa forma de construção poética breve possui duas linhagens: a de Petrarca, composta de estrofes com  dois quartetos e dois tercetos, e a inglesa,  com três quartetos e um dístico.  A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas,  através do verso decassílabo usado no soneto, considerado  como o mais melodioso e harmonioso. Mas  não se pode esquecer  que há uma variação silábica na confecção dessa criatura minúscula,  chegando ao ponto de ser encontrada até mesmo   com um só verso na poesia modernista de  Cassiano Ricardo, que alia virtuosismo experimental à beleza.
  
          Nascem poetas que se tornam famosos com suas motivações expressas em poemas de fôlego, mas que não deixam de cultivar o soneto. Lembremos de  Dante e Gôngora ontem, Pablo Neruda mais recente.   Outros vates duram pouco tempo no mundo da poesia, saindo de cena cedo  com o timbre peculiar de seu discurso, levando  como pontuação de sua obra os sonetos.
 
          Na língua portuguesa, o soneto tem sido cultivado por poetas que se tornaram referência obrigatória  na arte difícil e delicada de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são exemplos:  Camões, Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca.   No Brasil: Cláudio Manoel da Costa, Gregório de Mattos,  Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima,  Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho, Vinicius de Moraes  e João Carlos Teixeira Gomes.

          Em  ensaio excelente,  que antecede aos não menos excelentes sonetos do livro O labirinto de Orfeu (2014), o  ensaísta e poeta João Carlos Teixeira Gomes refere-se aos dois epítetos   “sonetoso” e “sonetífero”, criados contra os sonetistas.  Registra uma série de expressões em desfavor das andanças do  rejeitado  poema de quatorze versos:  “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor  formalista”, “chavão de segunda ordem”,  “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas”.

          Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem de  imbatível  criatura nanica,  sua garra  permite que continue de pé, ínfimo caminhante do  sol e da chuva   nos seus modestos quatorze versos,  buscando em sua peripécia métrica atingir o ponto máximo do prazer na alma. Segue  indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos,  que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores,  de  poetas célebres  com suas criações em versos longos,  vasta quantidade de  estrofes.

          É dado a formar uma sequência  quando  vários poemas são ligados entre si por um tema,  como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos,  uma forma poética composta por 14 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os  primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.

          A proeza verbal dessa coisinha poética   chegou  agora ao Sul da Bahia através de  A odisséia de Jorge Amado (2015), de Piligra. Trata-se da  reunião de cem sonetos, que contam as veredas de vida percorridas pelo  grande romancista  e  falam dos seus livros  famosos. Retratando episódios de uma vida com maiúscula, incursionando pelos  livros do autor mais lido na língua portuguesa,  cheio de humanidade e  linguagem sensual, Piligra procura fixar  no encadeamento dos poemas, ao lado de sua fugacidade e beleza, momentos verdadeiros da alma do homem generoso e  consagrado romancista.
   
            Incorpora na estrutura da obra o ritmo de cordel, fácil de dizer,  fácil de ouvir, fácil de entender. Torna desenvolta a narrativa poética de seu estro derramado,  do qual    aos borbotões versos são dotados de  ênfase poética e terminações sonoras. Seus  cem sonetos,  encadeados  com incandescente ternura,   pulsam sentimentos e nervos   no discurso de  fôlego, que diz  à vontade  do amor e  dor, da alegria e  tristeza,  do sonho navegado  e ferimento do perseguido, da linguagem com cheiro de povo  e  pura emoção, enfim,  do encantamento no coração ardoroso, envolvido sempre por gestos  fraternos  na  aventura da vida.

            O eu do poeta Piligra  não está imune a essa mágica experiência do soneto com seus modos líricos,   que se manifestam em ritmo febricitante,  impulsionando o relato na linguagem específica para dizer, intenso, do mundo vivenciado pelo  renomado escritor Jorge Amado.  E, mesmo que críticos formalistas achem que o  poemário  que veicula os episódios e cenas de uma biografia não tem muita validade, tal a fragilidade na composição mista de sua estrutura,  na qual o autor fantasia  um discurso  informativo, que já encontrou antes  com o conteúdo pronto, resultando o objeto verbal da recriação da realidade em um produto híbrido, que não é nem biografia, nem poesia legítima;  como também acontece  na prosa com a biografia romanceada,  cujo discurso procura  fundamentar-se com motivações de um lastro encontrado perfeito e acabado, não se pode deixar de considerar que A odisseia de Jorge Amado reveste-se de uma base imaginativa  que transcende do texto, além do real circunstante.  Desgarra-se do produto híbrido literário, com seus clarões  atinge o que em si mesmo reverbera,  graças à competência e sensibilidade  do  autor da novidade, de sua habilidade para retirar os fatos  do real objetivo  e transfigurá-los como um outro mundo, trazido ao presente para junto dos nossos olhos.

            Vejamos esse exemplo na página 69:

           Lua vermelha, sangue bonito sobre a terra,
           Negro presságio se anuncia a toda gente,
           Quem busca glória e quer dinheiro, medo sente:
           Jagunço esperto o tiro certo jamais erra...
        Vem lá das “Terras do Sem Fim” cada semente
          D’ouro que mata, que maltrata e que desterra,
          Na noite escura o filho chora o pai que enterra:
         O coronel sabe da morte e ri contente...
         Na negra mata tudo é sombra, medo e dor,
        Desejo louco de abraçar toda a riqueza,
        Cega ambição no dedo frio do atirador,
        Bala sem alma produzindo a vil tristeza...
        - O velho Juca Badaró planta o terror
       Entre os “grileiros” que já vivem na pobreza...

            Ou nesse outro exemplo  da página 97:

          “Jardim de Inverno”  ganha forma e consistência,
           A dor do exílio toma conta do escritor,
          Zélia registra o tempo triste e a violência:
          Estar distante do País lhe causa dor...
          O mundo é visto pela voz da resistência
         De quem se mostra mais valente ou lutador;
         A velha Europa se transveste de aparência,
         Mulher da vida sem futuro promissor...
         “Cantos modernos de canhões surgem do nada;
         A terra treme, geme, sofre de agonia,
         A dor do mando sempre é coisa encomendada,
         Uma  outra guerra ganha espaço à luz dos dias...”
         - “Jardim de Inverno”, tradução desesperada,
        Texto que faz da dor sofrida,  poesia...”

            Os versos dos dois sonetos referidos mostram como  o poema pode surgir  da linguagem veemente, em sintonia com a figuração fácil,  e ser capaz  de fazer de tudo o acontecimento, inovando na própria índole do soneto com um ritmo ágil , que fornece  ao leitor os tons naturais  para uma boa escuta  e ao mesmo tempo um aprendizado útil sobre o que lhe é transmitido.  Não importa que seus elementos de composição emanem de  unidade poética com o feitio híbrido,  minimizado  pelos críticos e teóricos formalistas. Explicam tais versos que foi sonhando e acreditando que o poeta Piligra experimentou o soneto em vasto campo de celebração,  impregnando-o de sentimentos e emoções, sonoridades e sentidos, intuições e visibilidades,   numa curiosa extração de eventos e mensagens,  motivada  pelos gestos solidários de uma vida de criatura rara.

            O  poeta Piligra juntou assim os meios de diferentes composições poéticas,  mesclando  a forma fixa do soneto, de espaço operacional breve, com a manifestação rítmica  do cordel, sempre espontânea, agradável à escuta e leitura,  no intuito de  evidenciar  o trajeto notável  do escritor  que deu voz aos excluídos, quis a vida com mãos nas mãos para que se tornasse viável,  fosse acesa  com as chamas do amor e repercutisse perante a existência com as vozes da  liberdade.  E o poeta, que fundou a odisseia protagonizada pelo Ulisses nascido nas terras do cacau, amado cidadão do mundo,  tornou-se  prazeroso do verso com essa sacada.
 
            PILIGRA. Odisseia de Jorge Amado, EDITUS, Editora da UESC, Ilhéus, 2015.

................

Cyro de Mattos é baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha,  Espanha e Dinamarca. Com Os Ventos Gemedores (EditoraLetraSelvagem),  ganhou o Prêmio Pen Clube do Brasil -2015.

* * *