Um Mozart Afônico
Lembro-me do susto e da alegria, da viva emoção na primeira
leitura de Poema sujo, adolescente ainda, quando a descoberta do mundo,
dentro e fora dos livros, era uma demanda feroz, uma correnteza impiedosa e
selvagem. Lembro-me do céu azul, naquela tarde de sábado. Lembro da livraria,
em Niterói, da segunda estante do lado esquerdo. E o coração, que batia forte,
e do mesmo lado, não me deixava fechar o livro, que continua, desde a década de
setenta, vertiginosamente aberto.
Porque se “muitos dias há num dia só”, naquele poema havia
uma enormidade de poemas. Foi o “Navio negreiro” de minha geração, o “Y-Juca
Pirama” da segunda metade do século XX. Mesmo à vista desarmada, dos meus olhos
meninos, não errei. Porque não se tratava apenas de um poema. Era também,
sobretudo, uma poética de exílio e rebelião, esperança e enfrentamento, eis o
que sentíamos, então, os brasileiros, os que estávamos do mesmo lado. Mas
sem que o laboratório de Gullar perdesse um milímetro de sua dinâmica do
espaço, mudanças de escala, dimensões cruzadas entre o corpo e o mundo, a
História e a subjetividade.
Como se houvesse uma fina camada, ou película, esticada até
o limite, fina e transparente, ao longo de todo Poema sujo, dentro de um
lirismo que se revela em alternância: ora explosivo, com força inusitada,
generoso, radical; ora discreto, líquido, latente, como um obstinado rumor de
fundo. Música sem melodia, sagazmente desafinada. Apenas ritmo, com ampla
variação mozartiana. Um Mozart impuro e afônico, revisto por Villa-Lobos, tal
como Gullar revisitou a poesia brasileira, de Castro Alves a Drummond, passando
pelas ferrovias de Jorge de Lima ou de Manuel Bandeira.
Não se deve perder a cosmologia no Poema sujo, porque
ela existe e aclara perfeitamente a densidade das coisas, dos conflitos
sociais, do corpo-galáxia, da vida dos insetos, da liquefação dos corpos a
céu aberto. Poema longo, que devora a si mesmo e renasce, com a vitória de uma
espécie de zangada visibilidade. Tenho uma palavra para traduzir minha ligação
com o Poema sujo, e não encontro outra que não seja o de um entusiasmo,
como somente as grandes obras são capazes de criar.
Somente agora me dou conta, menos de uma semana depois de
sua morte, que Gullar não foi apenas um dos poetas fundamentais do século XX,
mas dou quase como certo de que foi, e o confesso com emoção, um dos grandes
heróis no cenário de meu quarto adolescente.
Comunità Italiana , 14/12/2016
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha.