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domingo, 26 de janeiro de 2020

O ROMANCE - Ariston Caldas


            Teve a ideia de escrever um conto ou romance. Em vista dos assuntos abordados envolvendo uma família de quatro pessoas e algumas personagens eventuais que deviam aparecer na história, definiu-se por um romance. Verdade que nunca havia escrito nada em sua vida, a não ser cartas para familiares e amigos, bilhetes para namoradas. Mas sentia vontade de ser um escritor, certamente o primeiro entre sua parentela numerosa. Por seus cálculos o romance alcançaria umas trezentas páginas.

            O livro seria uma obra realista, baseada no viver de uma família que residia em frente. Daí a facilidade para observar o vai-e-vem de cada um, gestos e atitudes, certas ocorrências curiosas, como as brigas entre o casal, os modos da sogra do sujeito, mulato corpulento, mecânico exercitado em lutas de boxe.

            A vida dele com a mulher era tumultuada entre ciúmes e outras encrencas. Tinha o filho oito anos, malcriado, cheio de vontades, por isso apanhava quase todo dia. No mesmo elenco incluiria um quitandeiro de rua, na esquina, especialista em vendas de bebidas fortes misturadas com raízes, e ainda uma sessentona gorda, habituada a sentar-se no passeio, toda tarde, para espionar a vida dos outros, cochichando, apontando com o dedo, franzindo o nariz, apertando um olho. Começaria anotando suas observações aproveitando os assuntos mais importantes, iniciando pelo cenário, a rua esburacada, poeirenta; o tipo de casa onde residia a dita família, com biqueiras, sem platibanda, passeio estragado, sem numeração na porta, baixa, telhado arqueado, janelas sem nivelamento, sem vidraças; em vista do telhado curvo, podia-se ver,  olhando por cima da cumeeira,  as palmas de um coqueiro tremulando no quintal  onde bandos de pássaros revoavam quando era estio.

            Anotaria manias e costumes das personagens, o perfil dessas pessoas e algumas peculiaridades de cada uma, como do homem da venda que tinha o polegar esquerdo deformado por uma cicatriz na junta; ressaltaria os risos debochados da mulher do pugilista, o hábito dela coçar a virilha no meio da gente , alheia, descalça, cabelo formando duas tranças caída pelos ombros, pisando pelas casas vizinhas, tagarelando; das advertências da mãe dela: “...isto tá certo, moça? Toma jeito de gente!”.

            Daria destaque às malcriações do menino, seu comportamento agitado, cheio de diabruras que lhe rendiam surras e castigos, puxões de orelhas; lembraria, também, o agradável dessas pessoas, destacando o corpo bem feito da mulher do boxeador, seus olhos brilhantes, sorriso aberto; a boa vontade do marido desencrencando uma fechadura do vizinho, consertando uma biqueira; a fala mansa da sogra, contando a história do seu tempo de mocinha, brincando de roda pelo terreiro, namoricando meninos da vizinhança, agora adivertindo a filha de tranças com o vício de coçar as virilhas indiferente.

            As particularidades que não podiam ser comprovadas, da privacidade de cada um, seriam mostradas por deduções, como o que se passava na cama entre o boxeur e a companheira dele; com a sessentona tomando banho numa bacia cheia de água morna; com o menino se escondendo para não escovar os dentes. Concluídas essas ideias, cuidaria agora meter mãos à obra, começando pela aquisição de acessórios indispensáveis à tarefa. Compraria um caderno grosso, páginas pautadas e numeradas, com abecedário; uma caneta preta e outra vermelha, esta para observações especiais: borracha de apagar, goma para papel, clipes, borrachinhas para prender almaços, lápis comum para revisão às margens, lapiseira, uma pasta de couro, alguns centos de papel-ofício.

            Sabendo de seus embaraços com a língua portuguesa, providenciaria um dicionário bom, uma gramática atualizada, assim não temeria trocar  S por Z, por Ç, um X por CH, entre outras dificuldades piores, como tempo do verbo, concordância, pronomes e suas colocações. Lembrou que não sabia ainda o nome dos vizinhos que seriam suas personagens, havia pouco chegados; pensou, porém, que de qualquer forma, os nomes utilizados no romance não seriam os verdadeiros, como se dá em todo o livro de história. No final de semana iria ao comércio comprar o material já relacionando.

            Depois dessas providências e pronta toda a redação, procuraria uma editora de conceito, e entrosamento com os meios de comunicação mais conceituados na região, no estado, no país.

            O sábado por ele designado para as compras amanheceu chuvoso e frio, sem nenhum pássaro revoando pelas palmas do coqueiro no quintal de suas personagens; em frente à casa sem platibanda e de janelas sem vidraças, viu um caminhão velho estacionado com as laterais da carroceria arriadas; o pugilista e dois ajudantes carregavam para o carro uns móveis velhos, outros utensílios, trouxas de roupas; o menino, pelo meio, perturbando. Em duas horas a mudança estava arrumada. A das tranças e a mãe dela subiram para a cabine, o mecânico com o filho para a carroceria, onde ficaram em pé protegendo um guarda-roupa.

            Depois de uma buzinada estridente o carro saiu roncando, banzeiro, pela rua esburacada, sumindo depois pela esquina onde ficava a quitanda do sujeito que tinha um polegar deformado, com uma cicatriz. Da janela viu o caminhão sumindo vagarosamente, levando as principais personagens do livro que escreveria. Desencantado, nem chegou ir à rua onde compraria o material já relacionado em sua imaginação.

            O romance morreu por aí, mudou de ideia e nunca mais pensou no assunto.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)

Ariston Caldas

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (167)

3º Domingo do tempo Comum -26/01/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 4,12-23)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia.Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia,no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: ”Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos!O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz, e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz”. Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”.
Quando Jesus andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores.Jesus disse a eles: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. Eles imediatamente deixaram as redes e o seguiram. Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou.Eles imediatamente deixaram a barca e o pai, e o seguiram. Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Padre Roger Araújo:

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“Jesus deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia” (Mt 4,13)

Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Ele começa sua atividade longe da Judeia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas. Jesus, na Galileia, encontrou o seu lugar: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Um “lugar sagrado” que nasceu do seu coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade... 

Ali, Ele teve suas preferências e elegeu o seu “lugar” entre os mais pobres e excluídos, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares; ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.

Jesus se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar: lugar de vida, de comunhão... Sua missão foi a de reconstruir a identidade das pessoas, devolvendo a elas o seu “lugar”.

Seu ensinamento, cheio de “autoridade”, introduziu uma perspectiva nunca ouvida antes; apresentou uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendiam como revelação do Pai aos pequeninos. A partir das periferias do mundo, surgiu um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos; uma sabedoria que vinha de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro. Jesus desconcertou a “sabedoria” do centro a partir da “loucura” da periferia.

Podemos, então, afirmar que Jesus descentralizou o mundo a partir da periferia. O fato surpreendente é que, em Jesus, Deus não só se fez homem, mas também se fez “margem”. O próprio Jesus foi “margem”. Belém e Calvário são os dois extremos periféricos – início e fim – de toda uma vida, despojada e pobre.

Todos tinham os olhos voltados para o centro. No templo de Jerusalém era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas. No entanto, em Jesus, o Reino de Deus anunciado movimentou-se em direção contrária: subiu, a partir da mais baixa periferia, para o centro. Ele começou a falar a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.

Nesse sentido, a vida de Jesus foi “excêntrica”, porque não combinava nem se ajustava com a construção social de todos aqueles que controlavam o mundo a partir do centro. No entanto, Jesus fez o “centro” da história. Nele, o Pai “nos escolheu antes da criação do mundo”. Isto quer dizer que o “centro” da história teve seu aparecimento na “periferia”. Portanto, Jesus descentralizou a história para sempre e situou o surgimento da salvação nas terras excluídas. A ação de Jesus provocou um deslocamento geográfico-social-religioso. 

O centro da história já não se encontra mais em Roma, nem em Jerusalém, e sim na “margem”. Todo aquele que, a partir de então, pretende encontrar-se com Jesus terá de voltar a cabeça e peregrinar em direção às margens, onde estão os prediletos do Pai. 

Tendo Jesus se encarnado para sempre nas “periferias” do mundo, porque desejou assumir toda a história a partir daí, também nós, seguidores(as), temos de dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, a partir de onde Ele continua nos questionando. 

“Êxodo para as periferias”: terra privilegiada, de onde podemos contemplar a história e a própria humanidade. A razão mais importante de todo este caminho é a união ao movimento de encarnação de Jesus, decidido pelo Pai como caminho privilegiado para a realização de seu Projeto.

Cada passo na direção das periferias do mundo também é um passo contemplativo em busca do encontro com o Senhor da História, que nos chama de “baixo” e de “fora”.  “O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco) 
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para assumir o novo... É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer... 

A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples... A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.

Jesus começou sua vida pública com um novo ensinamento, rompendo esquemas e modos de viver ditados pelo Templo. Diariamente ouvimos, lemos e nos deparamos com esta palavra que está tão em moda: inovação; expressão presente em todas as instâncias humanas: empresarial, educativo, social...

Partindo do evangelho deste domingo, podemos também fazer esta pergunta: qual é a “inovação do Evangelho”? Que há de inovador, na vida de Jesus, que pode nos inspirar? Com certeza, há uma inovação acima de todas: a paixão de Jesus pela vida, pelo Reino, pelas pessoas, de maneira especial pelas mais excluídas e feridas. Por isso, Jesus inicia sua missão fora dos “espaços sagrados” do Templo; é nas “margens” que Ele, com sua presença inspiradora, ativa um movimento inovador e, ao mesmo tempo, humanizador. 

Essa paixão de Jesus se revela em cada passagem do Evangelho, em cada palavra que sai de sua boca, em cada gesto que faz tremer todas as instituições, em cada ação que visa levantar, curar e devolver a dignidade a todo ser humano com quem se encontra. Não há um indício sequer de dogma, de doutrina, de regras, de leis..., a não ser isso: tudo o que façamos, vivamos e desejemos, seja em prol das pessoas, para seu bem e sua felicidade.

A inovação de Jesus está em eliminar da vida todo o peso do legalismo, do moralismo, da culpa..., para fazer emergir o que há de mais humano e divino presente em cada pessoa. A expressão “pescador do humano” deixa transparecer essa inovação mobilizada por Jesus, a partir do mais profundo de cada um. Seguindo Jesus e deixando-nos impactar por sua inovação em favor da vida, estaremos, também nós, inovando, quando deixaremos transparecer uma paixão pelas pessoas, que se manifesta em nossa acolhida, em nossos gestos, no nosso olhar contemplativo, nas nossas palavras mobilizadoras...; trata-se de investir a vida em favor da vida e fazendo os outros se sentirem mais irmãos e mais filhos de um mesmo Pai.

Nesse sentido, Mateus também situa, no início da vida pública de Jesus, o chamado dos quatro primeiros discípulos. Detrás disso, há uma intencionalidade teológica, que busca mostrar Jesus e seus discípulos compartilhando a mesma missão: aliviar o sofrimento humano, com a certeza de que o Reino de Deus tinha chegado. Assim, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, das margens...

Nesse entorno da Galileia está o futuro do Evangelho; Galileia é a terra do chamado e, a partir desse lugar, inicia-se também novo caminho do seguimento. Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os seus(suas) seguidores(as), para também ali prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.

Texto bíblico:  Mt 4,12-23

Na oração:  Aquele Desconhecido se aproxima, ainda hoje, do nosso mar da Galileia, que representa os lugares, os afetos, os segredos, os costumes da nossa vida cotidiana... ; Ele fixa seu olhar em cada um de nós e, com sua Palavra inspiradora, nos desafia a transgredir os nossos lugares estreitos e entrar em outro mar. 
O Evangelho deste domingo faz emergir algumas perguntas que são significativas para a vida cristã:
- você vive em processo de mudanças ou continua sempre igual? Seu modo de viver o seguimento de Jesus é sempre criativo ou continua “normótico” (norma-lidade doentia, sem inspiração, sem afeto...)?
- você é um peregrino ou está ancorado no de sempre? Você está se convertendo constantemente para uma vida nova e melhor, ou se contenta com uma mera repetição? 

Pe. Adroaldo Palaoro sj


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