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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Aniversário da Cidade

Cyro de Mattos

 


                Comemora a cidade outro ano de emancipação política. Falam de seu progresso e vocação de seu povo para o trabalho. A cidade torna-se festiva e desperta muito cedo com a descarga de foguetes que crepitam no céu. Os moradores sabem que a cidade é antes de tudo raiz e seiva que escorrem no comercinho novo. É trama com ânsia e sonho. Antes aconteceu na légua do tropeiro, roupa do alfaiate, plaina do carpina, tenda do sapateiro. Nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado pela cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do pedreiro. No sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o povo para voar na valsa. Na cuia do cego, na cantiga da lavadeira, na cartilha da professora. Na bola do menino que quebrou a vidraça do vizinho. Com os namorados que passeiam de mãos dadas no jardim. Na rua, na loja, no armazém, no banco, a cidade com o seu modo de estipular o mundo. Na guerra da palavra em tempo de eleições, quando a vitória é uma questão de vida ou morte. No jornal que dá a notícia boa ou má, sempre veloz, indo de canto a canto.       

            Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez mais assusta.

             Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão, colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos a maneira sensível de alguns conceberem a vida. Existem aqueles que lambem as palavras e se alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer na vida, negando a morte.

             E o cronista, aprendiz das palavras que queimam como brasa, no momento que está concluindo a crônica, imagina o primeiro homem que pisou no chão de suas raízes. A noite daquele homem no navio misturando-se com as conversas de macho. As estrelas tão longe. Perdidas na abóboda do céu negro. O navio já se aproximando do porto de Ilhéus.

             Na viola do peito, Félix Severino do Amor Divino cantava baixinho, sem ninguém cantava.

 

Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Possui prêmios literários importantes. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de diversos gêneros.

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segunda-feira, 24 de julho de 2023

Graças à arte somos eternos

Godofredo de Oliveira Neto



Ela ignora  o espaço e a morte. O combate pela eternidade terá um final exitoso se houver uma verticalização na vida, um mergulho na alma, ali onde, justamente, nasce a chama artística.

Os escritores não ignoram que ao encontrar a “ voz interior”  o texto sai com mais densidade e literariedade.  A partir desse momento, não é mais propriamente o autor, aquele com o nome na capa do livro, a escrever; antes um narrador travestido de autor, agora o novo dono da caneta ou das teclas do computador. Uns vão chamar isso de concentração, outros de encontro com a alma, outros de encontro com  o divino, outros ainda de “ possessão” por um escritor já desaparecido, outros , simplesmente, de técnica inerente ao ofício de escritor. Todos têm consciência, porém, que o resultado daquele esforço cognitivo será atemporal.

Equacionar o conflito entre razão e emoção alojado na nossa mente é encontrar o humanismo. Se não houver o freio da razão só viceja a animalidade. A emoção deve sair dosada, como passando por um magnífico giclê dosador; muito afoga, pouco não pega. Ao artista traçar essas linhas demarcatórias ! Linhas que têm um jogo de cintura de artista para artista. A arte bamboleia sobre essa demarcação. Para esse traço não há tempo nem espaço.

Ao escrever, em 1516, o seu Sobre o melhor Estado e sobre a nova ilha Utopia, Thomas Morus cria um lugar diferente daqueles conhecidos por seus leitores, uma ilha onde não há desequilíbrios sociais e onde reina a igualdade. Morus retoma o estado ideal de Platão. A fabricação de um outro mundo basta para revelar os poderes incomensuráveis da arte e , por tabela, da condição humana. A fabulação de Morus é atemporal. No Sítio do Picapau Amarelo não se vê um patriarca a dar ordens. A personagem principal é Dona Benta. Não havia - e nem há, é pena - sociedade assim estruturada, com as mulheres no leme , pouco importa, vale a imaginação de Monteiro Lobato. O genial autor  hoje padece das opiniões racistas que, por tabela, maculam a sua obra.  Seu   Jorge, o iniciante escritor do conto “ O triunfo”, primeiro conto publicado pela Clarice, bem sabia das dificuldades, do balizamento, das impossibilidades, da finitude. Mas sabia da possível eternidade.

Machado de Assis trabalha bastante essa ansiedade advinda das limitações da condição de homens e mulheres diante do tempo. É que descobrir o real e a verdade equivale a achar um passaporte para a eternidade, por isso a fixação em relógios e olhares.

Em Dom Casmurro, por exemplo, a busca da verdade ou do real levam o narrador a sobrevalorizar os olhos da Capitu na esperança de que eles  sejam objetivos e frios, mas eles também são armas da emoção, por isso mentirosos. Lembremo-nos que o olhar da Capitu era “oblíquo e dissimulado”. E até no enterro do “amante”,versão de Bentinho: “Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas.” O tempo também poderia desvelar a verdade. Daí que o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, do mesmo Machado, não seja “propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”, como se lê no primeiro capítulo do admirável e engenhoso romance que, para os historiadores da literatura, iniciou a fase realista do fundador da Academia Brasileira de Letras. Ora, para rever a sua vida com objetividade, o narrador se posicionou fora do tempo e do espaço. Porque ambos relembram com dureza aos seres humanos a sua finitude.

Como sair então desse impasse angustiante?  Lendo o Dom Casmurro, por exemplo. É que através da arte leitor e autor são atemporais, logo, eternos.

Facebook/Redes Sociais, 17/07/2023

https://www.academia.org.br/artigos/gracas-arte-somos-eternos

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Godofredo de Oliveira Neto - Sexto ocupante da Cadeira nº 35, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido Mendes de Almeida e recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria Machado.

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quarta-feira, 19 de julho de 2023

São Bilibeu

 José Sarney



Abril, chuvas mil. Maio, trovões e raio. Este é um ditado que se repete para definir o tempo das chuvas no Maranhão. O Padre Vieira foi quem primeiro definiu inverno/verão, o tempo das chuvas e o que não chove. Assim as estações, que no mundo são quatro, no Maranhão são duas. O diabo é que elas não coincidem nem com primavera, nem com verão, nem com outono, nem com inverno. No Maranhão se chama de inverno o tempo que chove, que vai de dezembro a junho, e de verão, o sem chuva, de junho a dezembro.

Isso faz com que as festas populares sejam influenciadas pelo tempo, e as estações de meteorologia, com as mudanças climáticas, não ajudam, não sabem mais prever as chuvas, que agora chovem no verão e nem sempre no inverno.

Evidentemente que o tempo tem influência em tudo, e as chuvas, muito mais. Nos folguedos populares do Maranhão, portanto, também. Como se entrelaçam com as datas festivas da Igreja, o carnaval é debaixo de chuva e o Natal é tempo de sol, embora as chuvas façam suas incursões, que a crença popular já conhece. Por exemplo, no 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora, sempre chove, e se diz que é o princípio do inverno, bem como o 20 de janeiro, São Sebastião, é quando começam as chuvas de pingo grosso e as chuvaradas que quebram todas as normas e chovem as 24 horas do dia.

Girão Barroso, um poeta brilhante do Ceará, que passou uma temporada em São Luís, definiu a nossa cidade como sendo “uma ilha, cercada de água por todos os lados, inclusive por cima.”

Mas o que eu queria mesmo falar era das festas de São João, que aconteciam em junho. Já hoje se prolongam por julho e se antecipam pela metade de maio. Se justifica como o treinamento da brincadeira, como é chamado popularmente o Bumba meu Boi. Mais do que o carnaval, é um tempo de festa, tambores, com suas variedades de ritmos e de batuques, que hoje já têm autonomia própria: o Boi de Matraca, que é acompanhado por dois pequenos retângulos de madeira, que acompanham o ritmo da música; o Boi de Tambor, que foi copiado dos terreiros de mina e acompanham os ritmos de cada um dos tambores; o Tambor de Pandeiros, o boi de música de sopro, que começou em Axixá, com a variante do tambor tradicional, que era só de percussão.

Acredito que o Maranhão seja o Estado mais rico em folguedos populares. De tudo o povo tira pretexto para criar uma brincadeira encantada, com suas histórias próprias.

Quem primeiro descobriu a riqueza do folclore maranhense, representado por essas imensas festas populares, foi Mário de Andrade, que, quando aqui passou, colheu o grande material que enriquece o Centro Cultural São Paulo. Hoje a eletrônica e outros meios de criação dos sons fizeram com que os ritmos se multiplicassem e cada um desses tomasse seu rumo próprio. E eu fiquei surpreendido, nos meus 93 anos, com São Bilibeu ainda vivo, fazendo safadezas na Baixada, onde também tem o nome de Santo Horácio, que desembarcou na casa de Antero Roxo, durante uma festa de carnaval, num lugar chamado Santeiro, no município de Viana, na Baixada Maranhense, região de lagos e campos, onde eu também nasci, na cidade de Pinheiro.

Ele é saudado “Bico-Bilico, bili-Bilibeu, santinho assanhado, calunguinha de breu!” A festa se mistura com o carnaval e tem motivos religiosos e africanos. Segundo Albani Ramos, Bilibeu é um santinho namorista, cujo trabalho pesado é mamar nos seios apojados das mulheres, depois de lhes garantir a mais impossível gravidez. Veste-se como homem, mas não tem preconceitos: também aparece como mulher. Afora isso, o santo protege os bichos de casa, os doentes e os perdidos. E as pessoas lhe fazem promessas e oferecem crias dos bichos que Bilibeu curou ou encontrou. E conclui Albani: “Aí o negrinho responde pela farra, que vai do Domingo à Terça-Feira Gorda, com levantamento de mastro, baile e ladainha, recitada num latim estropiado, conforme pertence a um festim carnavalesco.”

Mas o que quero dizer é que o carnaval e o São João do Maranhão são os melhores e mais autênticos do Brasil, com o Tambor de Crioula, o Curiá da dona Tetê e o carnaval, que traz modos e gingados, desde o tempo em que açorianos saltaram no Brasil com o boi que se derramou pelo Brasil no Boi Bumbá do resto do Nordeste, no Boi de Mamão de Santa Catarina e no nosso Bumba meu Boi, acompanhado do Tambor de Crioula, com as dançantes de saia rodada.

Imirante, 11/07/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/sao-bilibeu

 

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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sexta-feira, 14 de julho de 2023



Estrada Minha  

Cyro de Mattos

Venho do tempo das águas puríssimas do rio Cachoeira,
 Do cacau ensacado carregado no lombo do burro,
as tropas passistas em andadura ritmadas na sua melhor música,
Ferradas tinha ares bucólicos de pacata vila, flutuava na memória
como bairro-mãe de todos os bairros da cidade que nasceu
 como um burgo de penetração na época da conquista da terra.
 As ruas da cidade tinham cheiro de cacau vindo de dentro
 dos armazéns de portas largas. Venho da escola primária
Lúcia Oliveira onde aprendi o Abecê, caligrafia, aritmética.
 Também venho do tempo do mata-borrão, da goma
 para colar a carta, da máquina datilográfica. Do Natal
 com as quermesses na pequena praça, “vai correr! vai correr!
faça seu jogo, ganhe seu presente com a sorte”, bradava o homem
encarregado de vender os bilhetes. São João rimava licor com canjica, 
de porta em porta, os fogos como jogos alegres no chão e no céu.
Nos carnavais do Grapiúna Tênis Clube, lá estava o moço de Peter Pan,
animada era a noite ali numa forma festiva de comemorar a vida.
De tudo isso venho, de muito mais, agora dormindo o sono do amor.
Irremediável no fumo das horas. Quanta saudade de mim!

 

Cyro de Mattos - Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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segunda-feira, 10 de julho de 2023

 

Um Embaixador Mexicano no Rio

        Cyro de Mattos

 




                Graças à literatura tenho feito bons amigos. O último deles foi há poucos anos. É um americano, erudito, sensível, atencioso, qualidades inconfundíveis de seu caráter. Professor Emérito da Universidade de Austin, Texas, Fred Ellison tem um amor forte pelo Brasil. O abraço rico que vem dando há anos ao nosso País manifesta-se no ensino de língua e literatura brasileira nos Estados Unidos, passa pelo ensaísmo lúcido e alcança traduções admiráveis de autores importantes de nossas letras, como Rachel de Queiroz, Helena Parente Cunha, Adonias Filho e Affonso Romano de Sant´Anna. Para minha sorte, alguns poemas de minha lavra levam a marca da tradução exemplar do caro amigo.

“Brasilianista” dos melhores, Fred Ellison proporciona agora em “Alfonso Reyes e o Brasil” (Editora Topbooks, Rio, 2002) estudo substancioso sobre a temporada que o embaixador-poeta mexicano passou entre nós, morando no Rio, cidade que tanto o encantou desde que aqui chegou. O assunto encontra no americano o ensaísta maior. A pesquisa criteriosa do espírito sensível, que caminha de mãos dadas com o discernimento para erguer na escrita agradável uma vida intelectual plena de reflexões, projeções, esperanças e realizações em chão brasileiro.

Desse livro emerge todo o clima intelectual e emotivo que o embaixador-poeta mexicano teve pelo Brasil durante os sete anos em que aqui esteve. Abordam-se como nenhum intelectual brasileiro tentou fazer até hoje, o que não deixa de ser omissão lamentável, as múltiplas atividades e relações culturais que Alfonso Reys empreendeu em prol do Brasil. Foram anos em que ele, morador do Rio, dedicou-se de modo afetuoso às relações diplomáticas e à cultura brasileira, em namoro intenso, de quem escreveu contos, poemas e ensaios tendo como ponto de referência nossas coisas e gente.

              O livro de Fred Ellison é leitura obrigatória para quem quiser saber sobre a vida cultural do Brasil nos anos 30. Reconhecer intelectuais do círculo de relações de Alfonso Reyes, bem como suas atuações culturais em nossas artes e letras. Cecília Meireles, Oswald de Andrade, Renato Almeida, Di Cavalcanti, Portinari, Cícero Dias, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Alceu Amoroso Lima, estes foram alguns de nossos homens de letras e artes que se tornaram amigos desse embaixador e escritor de extração renascentista. Manuel Bandeira fala do mexicano com afeto em “Rondó dos Cavalinhos”, no almoço de despedida oferecido por diplomatas e entidades brasileiras no Jóquei Clube do Rio, e no outro poema “Rondó do Palace Hotel”, no qual os dois últimos versos, “Por alguém que não está presente/ No hall do Palace”, dizem respeito a Alfonso Rey



            O diplomata mexicano teve ânsias de entrar em contato com os intelectuais brasileiros assim que aqui chegou. No início, nossos homens de letras não foram tocados pelos acenos do mexicano, que nunca escondeu nas intenções e atitudes a inquieta admiração pelos brasileiros e sua paisagem. Momentos de amizade foram se fazendo com nitidez pouco depois, e, dos encontros que continuavam, a oportunidade era dada ao intercâmbio de ideias, informações e juízos críticos consistentes.

          Até hoje pouco se sabia da atuação e amor desse notável embaixador-poeta- mexicano pelo nosso País. Acredito que o mesmo se deu com a minha geração nos anos 60. No livro de Fred Ellison, através de entrevista concedida a Aurélio Buarque de Holanda, posso sentir como esse embaixador mexicano teve no Brasil uma temporada das mais felizes de sua vida, contribuindo para isso dois elementos essenciais: o homem e a natureza. “Tudo do melhor em minha existência”, ele assinalou, em momento de puro encantamento. E, nessa admiração contagiante pelo Brasil, de um estrangeiro enamorado do Rio, cada vez mais, tantos foram os elogios que todos os mexicanos quiseram vir ao Brasil como embaixador e desse modo lhe tomaram o posto.

Río de olvido

Alfonso Reyes


Río de Enero, Río de Enero:

fuiste río y eres mar:

lo que recibes con ímpetu

lo devuelves devagar.

 

Madura en tu seno al día

con calmas de eternidad:

cada hora que descuelgas

se vuelve una hora y más.

 

Filtran las nubes tus montes,

esponjas de claridad,

y hasta el plumón enrareces

que arrastra la tempestad.

 

¿Qué enojo se te resiste

si a cada sabor de sal

tiene azúcares el aire

y la luz tiene piedad?

 

La tierra en el agua juega

y el campo con la ciudad,

y entra la noche en la tarde

abierta de par en par.

 

Junto al rumor de la casa

anda el canto del sabiá,

y la mujer y la fruta

dan su emanación igual.

 

El que una vez te conoce

tiene de ti soledad,

y el que en ti descansa tiene

olvido de lo demás.

 

Busque el desorden del alma

tu clara ley de cristal,

sopor llueva el cabeceo

de tu palmera real.

 

Que yo como los viajeros

llevo en el saco mi hogar,

y soy capitán de barco

sin carta de marear.

 

Y no quiero, Río de Enero,

más providencia en mi mal

que el rodar sobre tus playas

al tiempo de naufragar.

 

—La mano acudió a la frente

queriéndola sosegar—.

No era la mano, era el viento.

No era el viento, era tu paz..

 

 

*Do livro Romances del Río de Enero, 1932.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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sexta-feira, 7 de julho de 2023

Coronavírus, sentimento amoroso, estética, preconceitos, saímos do vórtice?

Godofredo de Oliveira Neto

 


Espasmos de amor, de frustração, de desejos frenados, de toques, de fruição, de medo. Os alunos ou se retraíam ou se amavam com olhares. O coronavírus ia fechar a UFRJ e a Academia  no dia seguinte, sexta-feira. A gente lia Morte em Veneza, aproveitando o gancho da pandemia  decretada pela Organização Mundial da Saúde. A atração indomável do escritor personagem Gustav von Aschenbach, com os seus 50 anos, pelo angelical menino Tadzio, de 14, em Veneza, vai jogar o romancista de sucesso na Alemanha  - bem sentadinho na poltrona burguesa da rica Munique -  na metáfora do caos veneziano, luxúria e pecado debruçados nos saraus e nos braços urbanos e fétidos do Adriático esquadrinhando a  ex-capital dos dodges. A ordem e a disciplina na forma da arte bem-comportada do ficcionista estrebucha diante de um amor pecaminoso, mas platônico, incentivado pelo olhar de cobiça do Tadzio cúmplice no jogo entre o sagrado e o profano. Gustav von Aschenbach, o escritor racional e formal, cuja ficção é aplaudida por um público fiel a enxergar naqueles traços a solidez do modelo sócio- econômico em vigor, leva um tranco.

Do fundo da sala, um jovem robusto com máscara contra o coronavírus e dois chifres estilo viking na cabeça, uma espada de plástico cinza amarrada à cintura, pediu a palavra. Hesitei. Solicitaria que retirasse os chifres ? Se sim, porque não o fiz antes? Deixei então que se pronunciasse. Li, afirmou ele, e vi que  nada acontece fisicamente entre o escritor e o jovenzinho. Significa que o romancista reverencia no jovem  o ideal de beleza da arte. O lado homossexual não tem a menor importância, continuou ele ajeitando a fita que segurava o seu aparato viking. Falou da relação conflituosa entre Apolo e Dionísio, explicou que leu num texto por aí e que concordava,  leu uma frase anotada no  celular sobre “ princípio do prazer para evitar a dor”.  

Retruquei com delicadeza, estranhando o “menor importância da homossexualidade”, e o lado pudico da sua intervenção. Não falei de preconceito. A ruptura do belo via comportamento pecaminoso é que, entendo, deve ser ressaltado. Daquele pecado – o escritor sofre tremendamente entre o desejo e a razão conservadora – nascerá uma nova estética e um novo modelo social? Essa me parece a revolução. Gustav não revela para a família de Tadzio, todos de férias num hotel de luxo e de lá pouco saindo, a mortífera  epidemia de cólera que se abate aos poucos sobre Veneza. Acumplicia-se aos interesses econômicos dos capitais investidos no turismo - que escondem dos clientes o terrível mal trazido do oriente -,  mas por outra razão: deleitar-se com a visão edênica do efebo até ser possuído pela moléstia e a consequente morte. A arte literária ganha um outro contorno e  a estética modernista ocupa, vitoriosa,  cabeças e mentes naquela primeira década do século XX. O movimento sindical também se organiza. O viking pareceu concordar. Me disseram depois que a namorada do Asterix  trocou-o por uma menina loirinha recém transferida da UFF para a UFRJ e vivem aos beijos pelo Campus do Fundão. E – pasmem todos, só soube no dia seguinte - , foi justamente ela, também aluna da mesma turma, que perguntou se o coronavírus não vai mudar alguns paradigmas sociais e artísticos. Se a questão de classe social não conhecerá outro combate. Se os preconceitos serão os mesmos ou se haverá novos. Como serão recebidos os imigrantes e os excluídos contaminados pelo vírus nos hospitais do Brasil e do mundo? Serão tratados como todo mundo? O assunto foi se adensando e interrompemos a aula no horário, 12:50h.     

Facebook/ Redes Sociais, 03/07/2023

https://www.academia.org.br/academicos/godofredo-de-oliveira-neto

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Godofredo de Oliveira Neto - Sexto ocupante da Cadeira nº 35 da ABL, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido Mendes de Almeida e recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria Machado.

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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Um Brasil menor

José Sarney

 


Éramos jovens. Nos conhecemos no Rio de Janeiro, na Rua Otaviano Hudson, onde José Aparecido mantinha uma pensão estudantil, udenista, com ramificações pela esquerda. Pertence era mais ligado a seu irmão Modesto, da UNE, onde tinha posições de liderança. Eu começava minha carreira como deputado federal, ligado a Magalhães Pinto, de quem Aparecido era secretário particular. Era um tempo em que eu chamava Pertence de "Zé Paulo", e ele a mim de "Zé"; quando nos encontrávamos e não tinha abelhudo por perto, eu repetia os tratamentos da mocidade: "Ministro Zé Paulo". E ele, "Excelência Zé". Na Presidência da República tudo isso terminou.

Pertence era uma enciclopédia de Direito. Sabia tudo, raciocinava tudo pelo lado jurídico, que aliava a uma personalidade digna, ética, honrada e sem concessões morais de nenhuma natureza.

Como advogado, competente; como juiz, impecável. Isso não prejudicava a personalidade do contador de histórias de Minas, de mineiros. Excepcional e sedutora personalidade, amigo que não deixava esta misturar-se aos seus deveres jurídicos e a sua impecável retidão.

Em 1960, fomos dos primeiros a nos mudar para Brasília. Ele vinha de Minas Gerais, onde fizera um brilhante curso de Direito, para iniciar sua extraordinária carreira de advogado. Tínhamos muitos amigos comuns, sobretudo no grupo mineiro, sempre coeso, entre eles Carlos Castello Branco — mineiro de Teresina —, Vera Brandt, Benedito Coutinho, Otto Lara Resende, Magalhães Pinto, José Aparecido de Oliveira e uma imensidão de amigos e, mais do que amigos, de admiradores de suas qualidades inexcedíveis. Tive a honra e a sorte de torná-lo meu amigo; sobretudo, ele tinha uma grande capacidade de dar conselhos quando solicitado. Eu muitas vezes me socorria a ele em momentos de dúvidas.

Ele entrou para o Ministério Público e passou um tempo no Supremo como assessor de Evandro Lins e Silva. Foi cassado em 1969 pelo regime militar e voltou à advocacia dividindo a banca com Victor Nunes Leal, também ele atingido pelo AI-5 — o autor do imperdível Coronelismo, enxada e voto era então um dos grandes nomes do Supremo Tribunal Federal —, e Cláudio Lacombe, José Guilherme Vilela, Pedro Gordilho.

Em tudo que fez na vida, José Paulo mostrou-se um predestinado. Assim, Pertence casou-se com uma extraordinária figura humana, Suely Castello Branco, pessoa de imensa bondade, formando uma família exemplar, com os filhos Pedro Paulo, Evandro e Eduardo.

Tancredo Neves o convidou para Procurador-Geral da República, deixando-me a missão de nomeá-lo para o cargo em que teve, entre outras tarefas, a de encaminhar na Constituinte as transformações do Ministério Público da União, que ele depois repetia: Golbery dizia que fundou o SNI, um monstro, e ele, o Ministério Público, uma medusa.

Dei a ele todo o meu apoio, mesmo quando, algumas vezes, deixou o governo em posição desconfortável. Ele cumpria o seu papel, eu, o meu.

Em 1989 surgiu no Supremo Tribunal Federal a vaga deixada por Oscar Dias Correia — ainda um mineiro. Indiquei José Paulo Sepúlveda Pertence. Não poderia ter indicado ninguém melhor — e orgulho-me de minhas outras indicações, todos grandes ministros: Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard, Celso de Mello.

O Supremo era o lugar certo para o homem certo, inverto o lugar-comum para exprimir o casamento perfeito entre o homem e a Instituição. Lá ele se tornou mestre, professor e exemplo, transformando-se num dos maiores ministros que já teve o Supremo Tribunal Federal. Seu conhecimento jurídico, sua compreensão do fato julgado, sua interpretação da Constituição e do Direito, sua percepção do contraditório, sua visão de humanista, seu conhecimento da História, tudo contribuía para a perfeição do seu voto. Todos o ouviam com o respeito que se deve a um oráculo; mesmo se algum discordava, sabia que tinha pela frente uma análise difícil de superar. Com poucas exceções, seu voto era o voto vencedor. A jurisprudência saía dele mais rica — e, algumas vezes, reformada em nova e definitiva direção.

Sua palavra foi de equilíbrio, bom senso, boa direção. Conversamos muito. Era um excelente ouvinte, mas melhor ainda contador de histórias. E tinha sempre uma pontuação inteligente, de fino e preciso humor.

José Paulo Sepúlveda Pertence foi um homem de caráter irretocável, de absoluta integridade moral, com o mais arguto senso do que era justo.

Embora permaneça conosco em sua figura íntegra e irretocável, fará falta. Muita, muita falta!

O Brasil está menor.

Imirante, 04/07/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/um-brasil-menor

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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terça-feira, 4 de julho de 2023

Solene Concelebração Eucarística das Exéquias do bispo emérito Dom Cesla...

As mulheres merecem e devem ser respeitadas!

Sione porto 


 

Em nome das marias, quitérias, da penha silva 

Empoderadas, revolucionárias 

Ativistas, deixem nossas meninas serem super heroínas! 

Pra que nasça uma joana d'arc por dia! 

Como diria frida: "eu não me kahlo!” 

Junto com o bonde saio pra luta e não me abalo 

O grito antes preso na garganta já não me consome 

É pra acabar com o machismo 

E não pra aniquilar os homens 

Quero andar sozinha porque a escolha é minha 

Sem ser desrespeitada e assediada a cada esquina.” 

 

As crescentes discussões sobre direitos, garantias e representatividade das minorias sociais revelam novos conceitos e denominações, que surgiram com o intuito de explicar as origens do tratamento desigual que certos indivíduos recebem. No que tange às questões de gênero, a misoginia é um termo oriundo da Grécia antiga que voltou à luz para conceituar as relações nocivas que ocorrem entre homens e mulheres. 

Em uma breve análise do material artístico e intelectual produzido ao longo dos anos, é possível observar a forte influência dos traços culturais misóginos, machistas e sexistas na civilização ocidental. Conforme pontuado pelo historiador e professor Leandro Karnal, durante uma palestra realizada em 2017 pela comemoração ao dia da mulher, as estatuetas de Vênus de Willendorf e Vênus de Milo ou a pintura Vênus e Marte de Botticelli demonstram que os artistas supervalorizavam o corpo e a estética feminina, uma ideia que foi construída durante a antiguidade. 

As bases sociais, políticas e econômicas ocidentais foram estabelecidas na Grécia antiga, cujo sistema sócio-político delegava à mulher uma posição secundária. No período Homérico, a unidade básica da sociedade grega era o genos, um sistema familiar que se caracterizava pela máxima autoridade concedida ao pater (patriarca) da família, que ao falecer, tinha seus poderes político, social, religioso e econômico transmitidos ao filho mais velho.

Entretanto, no fim deste período, a população cresceu e a economia, essencialmente agrícola, decaiu. Houve, assim, a desintegração das comunidades gentílicas e o surgimento das cidades-Estados (ou pólis gregas), onde foi reiterada a ideia da soberania masculina. 

Neste contexto, surge o termo que definiria a base psicológica dos comportamentos masculinos nocivos em relação às mulheres. Oriunda da união entre os termos gregos "miseo" e "gyne", cujos significados são respectivamente ódio e mulheres, a palavra misoginia é usada para definir sentimentos de aversão, repulsa ou desprezo pelas mulheres e valores femininos. 

A misoginia é um sentimento de aversão patológico pelo feminino, que se traduz em uma prática comportamental machista, cujas opiniões e opiniões e atitudes visam 0 estabelecimento e a manutenção das desigualdades e da hierarquia entre os gêneros, corroborando a crença de que os homens são superiores. 

O constante estímulo de comportamentos estereotipados impacta ambos os gêneros, visto que exige amostras de uma cruel virilidade no homem e total subserviência na mulher. Quando a expectativa comportamental não ocorre, a violência eclode em uma escala ascendente de gravidade, iniciando com as piadas depreciativas, assédios, abusos, estupros e culmina com o feminicídio. 

As bases misóginas do pensamento ocidental geram a banalização da violência ao feminino que se estende pelos vários aspectos da vida da mulher, como o social, o psicológico, econômico e político, tornando difícil identificar os traços nocivos mais sutis. Desta forma, homens e mulheres reproduzem atos e expressões machistas quase que de forma inconsciente, com a mulher adotando, muitas vezes, como mecanismo de sobrevivência na cultura opressora, uma aparente passividade que não deve ser entendida como a aceitação das situações que lhe ferem a dignidade, mas sim como um mecanismo de defesa e sobrevivência. 

Por um acaso você já ouviu falar que "em briga de marido e mulher não se mete a colher"? Pois essa é uma frase que explicita um dos traços da cultura brasileira, a banalização da violência de gênero.

Surgiram obras como o Segundo Sexo e Mística Feminina, respectivamente, de Simone de Beauvoir e Betty Friedan, que impulsionaram a criação de um movimento liderado por mulheres que buscava problematizar as colocações femininas na sociedade. Assim, tem-se início a luta pela emancipação, autonomia e liberdade da mulher diante das construções idealizadas da figura feminina e de feminilidade, por direitos e igualdades políticas, sociais e econômicas através do empoderamento. 

Segundo Juliana Faria, jornalista e criadora do site Think Olga: "Uma mulher empoderada é uma mulher bem informada. Ela sabe dos seus direitos, entende o que é opressão e busca soluções para isso". Desta forma, as mulheres que defendem o movimento feminista buscam a disseminação de ideais empoderadores por todas as camadas sociais, com o acolhimento das individualidades de cada mulher e estabelecendo a união entre as diferentes correntes do movimento para seguir promovendo transformações profundas na mentalidade misógina da coletividade. 

Tivemos notícia que na Câmara de Vereadores de Itabuna, no âmbito legislativo, no exercício do mandato, um dos nossos vereadores foi deselegante e agressivo contra a Primeira-Dama do nosso município. 

No local onde ele deveria levantar a bandeira contra a misoginia, contra o racismo e contra a homofobia, ele fez o contrário, infringindo a Lei e a Ética do seu Mandato conferido pelo voto popular. 

O termo misoginia é utilizado para se referir a expressões e comportamentos que sinalizam desprezo, repulsa, desrespeito ou ódio às mulheres. 

A expressão machista utilizada fere a mulher no tocante ao gênero protegido pela lei Maria da Penha e a dignidade da pessoa humana prevista no art 140 do CPB. 

Recentemente tivemos uma exemplar atitude da Câmara de vereadores da cidade gaúcha de Montenegro no Vale do Caí. 

Pela primeira vez em sua história, a cidade gaúcha de Montenegro (Vale do Caí) tem um vereador cassado. Trata-se da vereadora Camila Oliveira (Republicanos), julgada pelos colegas com um placar de nove votos a zero. Motivo: em um vídeo gravado em seu gabinete na Câmara e divulgado nas redes sociais, ela chama de "cadelas" as mulheres com orientação política de esquerda.

 

Sione Porto, membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher CONSEMI 

 

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Sione Porto, ex-delegada titular da DEAM de Itabuna/BA, escritora, membro da Academia de Letras de Itabuna (ALITA)

domingo, 2 de julho de 2023

Anotações sobre o Dois de Julho

Cyro de Mattos


 

          Eu era aluno do curso clássico no colégio da Bahia (Central) quando escutei de meu professor Luís Henrique Dias Tavares que a Bahia e o Brasil são inseparáveis. Meu professor era um homem de estatura pequena, mas que carregava no coração um forte amor e na razão um grande saber pelos caminhos históricos da Bahia. Observara em sala de aula, naqueles idos de 1956, que essa união insuperável procedia do fato de que o Brasil exerceu sua verdadeira independência em solo baiano. Os mares da Bahia de Todos os Santos por sua vez deram seu abraço no entorno deste solo para que os baianos se libertassem do jugo do império português.

          O movimento social e militar, iniciado em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho vitorioso em 2 de julho de 1823. O Dois de Julho tornou-se data importante para o povo baiano, que a festeja todos os anos com alma, força e vida. Celebra um movimento desejoso de incorporar a então província na unidade nacional brasileira. Um movimento assim veemente com o qual o sentimento federalista latejava verdades no espírito emancipador do povo baiano.

          A independência do Brasil na Bahia não foi feita em gabinetes e salões, aconteceu nas ruas, nos campos de batalhas, com mortos e feridos. Contou com a participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos, gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance significativa no desenrolar da pugna. Sobressai o general Labatut como comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.

          É imperioso mencionar a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os portugueses tomassem o convento da Lapa. E a de Maria Quitéria, valorosa mulher que combateu os adversários portugueses no Recôncavo. Vestida numa farda de soldado, com a arma na mão, lutou com coragem incomum contra os portugueses na barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações.

          Fala-se que, na batalha final, João das Botas, um marinheiro português que aderiu à autoridade do príncipe Pedro, com o seu conhecimento instruiu Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a frota portuguesa. Foi singular sua atuação como trunfo na guerra.

          Noutros falares, de como exatamente o corneteiro Luís Lopes tenha ficado no coração dos baianos ninguém sabe ao certo. Se a versão da história contada é verídica ou não, tudo se torna mais intrigante e ao mesmo tempo nebuloso. Sobre o assunto o que se sabe é que ele participou do conflito conhecido como a Batalha de Pirajá. Propaga-se no imaginário popular que em vez do toque de “recuar”, deu o sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros tinham recebido reforços.

          O movimento que deflagrou a independência do Brasil na Bahia motivou a Castro Alves, o poeta mais amado dos baianos, a escrever um poema de versos magníficos. O poema “Ode ao Dois de Julho” vem expresso com o discurso eloquente, versos nas imagens candentes da esperança e da liberdade, aparecendo juntas numa só voz que evoca a peleja da treva e do clarão. O libertário construtor de uma poética solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos incandescentes de esperança, canta a liberdade como o sentimento mais valoroso que envolve os baianos no palco do confronto. Como noiva do sol a liberdade, essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta de alta voz condoreira.

          Transcrevemos abaixo, como o final dessas anotações sobre O Dois de Julho, o poema do genial poeta baiano.

 

Ode ao Dois de Julho

 

Era no Dois de julho. A pugna imensa

Travara-se nos cerros da Bahia...

O anjo da morte pálido cosia

Uma vasta mortalha em Pirajá.

"Neste lençol tão largo, tão extenso,

"Como um pedaço roto do infinito...

O mundo perguntava erguendo um grito:

"Qual dos gigantes morto rolará?!...

 

" Debruçados do céu... a noite e os astros

Seguiam da peleja o incerto fado...

Era a tocha — o fuzil avermelhado!

Era o Circo de Roma — o vasto chão!

Por palmas — o troar da artilharia

Por feras — os canhões negros rugiam!

Por atletas — dois povos se batiam!

Enorme anfiteatro — era a amplidão!

 

Não! Não eram dois povos, que abalavam

Naquele instante o solo ensanguentado...

Era o porvir — em frente do passado,

A Liberdade — em frente à Escravidão,

Era a luta das águias — e do abutre,

A revolta do pulso — contra os ferros,

O pugilato da razão — com os erros,

O duelo da treva — e do clarão!...

 

No entanto a luta recrescia indômita...

As bandeiras — como águias eriçadas —

Se abismavam com as asas desdobradas

Na selva escura da fumaça atroz...

Tonto de espanto, cego de metralha,

O arcanjo do triunfo vacilava...

E a glória desgrenhada acalentava

O cadáver sangrento dos heróis...

............................................................................................

Mas quando a branca estrela matutina

Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras

No verde leque das gentis palmeiras

Foram cantar os hinos do arrebol,

Lá do campo deserto da batalha 

Uma voz se elevou clara e divina:

Eras tu — Liberdade peregrina!

Esposa do porvir — noiva do sol!...

 

Eras tu que, com os dedos ensopados

No sangue dos avós mortos na guerra,

Livre sagravas a Colúmbia terra,

Sagravas livre a nova geração!

Tu que erguias, subida na pirâmide,

Formada pelos mortos do Cabrito,

Um pedaço de gládio — no infinito...

Um trapo de bandeira — n'amplidão!...

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias editoras na Europa. Premiado no Brasil, Itália, Portugal e México. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).


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