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segunda-feira, 6 de agosto de 2018

10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO – Língua portuguesa


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(Bahia, 1964 – língua portuguesa)


            Em Lisboa disseram a Luís  Forjaz Trigueiros que na Bahia o calor, além de tórrido, é constante, jamais faz frio. Luís viaja ao Brasil em missão cultural,  pede a Maria Helena que coloque na mala apenas roupas leves. Assim desembarcou desvestido com elegância  para o verão feroz.

            Ora, em lugar de calor senegalês, uma onda fria abateu-se sobre a cidade, frio ainda mais difícil de suportar devido à umidade, o escritor sentiu-se enregelar. Dado que o inverno se manteve, não lhe coube opção senão ir à compra de agasalho. Luís se informou, rumou para a Rua Chile, a de comércio fino e caro de prendas de vestir cavalheiros e senhoras. Deteve-se ante uma loja: ali se exibia a peça exata que buscava para com ela resguardar o peito, evitar o resfriado, a gripe, a pneumonia: Luís Forjaz pretende-se chegado a enfermidades nos brônquios e pulmões, o perigo da gripe o horroriza. De lã, chique,  discreta, na cor preferida, estava à sua espera. Luís adentrou o estabelecimento, o vendedor acolheu solícito, colocou-se a seu serviço.

            - Desejo comprar uma camisola – informou o literato luso, sorrindo com a delicadeza que o caracteriza.

            Não menos delicado o balconista:

            O cavalheiro se enganou, aqui só vendemos artigos masculinos, mas na loja em frente, de artigos para senhoras,  o senhor encontrará variado estoque de camisolas...

            Não tendo entendido, algum engano havia, Luís insistiu:

            - Eu disse camisola...

            - Já lhe disse que não temos. – O caixeiro elevou a voz,  desconfiado que o simpático freguês fosse surdo de nascença.

            - Como não tem, se acabo de ver na montra uma camisola castanha na medida própria?

            - Onde disse ter visto camisola?

            O balconista sentiu-se perdido, além de surto o freguês falava língua desconhecida, nem espanhol, nem francês, menos ainda inglês, dialeto que o rapaz identificava, familiar de sotaques e pronúncias. Não sabendo o que dizer, riu e coçou a cabeça. Um parvo, persuadiu-se Luís Trigueiros, e, sem mais delongas, tomando-o gentilmente pelo braço – aos parvos deve-se tratar com firmeza sem, no entanto abandonar a cortesia -, levou-o até a porta de onde, triunfante,  mostrou-lhe na montra a camisola castanha.

            - Ali está ela, a camisola, quanto vale?

            A risada do rapaz não era mal-educada, mas continha uma ponta de deboche:

            - Ilustre cavalheiro, fique sabendo que em bom português o senhor quer comprar um pulôver marrom igual ao que está na vitrine, não é isso? Por que não disse logo? Um suéter porreta e o preço de arrasar...

            Encontrei Luís no hotel envergando a camisola castanha, ou seja, o pulôver marrom, não sendo ainda o brasileiro competente que viria a ser anos depois devido aos azares da política, o escritor estava indignado:

            - O gajo diz-me duas palavras em francês, uma em inglês e afirma estar falando em português, em bom português.

            - Em nosso bom português, Luís, o do Brasil.

            Hoje Luís Forjaz Trigueiros traça na maciota nosso misturado português de mestiços, mas, para escrever sua prosa escorreita, forte, terna e colorida, conserva-se fiel ao português de Portugal, à língua de Camões.


(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.

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O DIGITAL E O ENSINO



O digital e o ensino

Painel Digital terá mesa sobre as oportunidades de aprendizado em conjunto no ambiente digital


Pelo mundo afora existem iniciativas que usam o digital para construir ambientes de inclusivo de aprendizado em conjunto. Para falar um pouco mais sobre este tema o Painel Digital trará no dia 19 de agosto, às 15 horas, a mesa Rede Colaborativas e Aprendizado. Nela, Henrique Foreti, Robo Livre, e 
Débora Abdalla, Projeto Onda Digital mediados por 
Vicente Aguiar, Colivre, baterão um bate-papo redes colaborativas, comunidades virtuais, ensino e conhecimento compartilhado.


Curador dos principais eventos de Robótica e Tecnologia da América Latina, Henrique Foresti trará sua experiência para a conversa. Idealizador da plataforma RoboLivre, desde 2005, ajuda a promover o ensino da robótica para qualquer pessoa que tenha interesse. A metodologia Robolivre, desenvolvida a partir da plataforma online, ainda é usada para levar aulas presenciais de robótica às escolas públicas do Recife (cidade sede do projeto).

O engenheiro ainda desenvolve projetos de pesquisa e inovação creditados por diversas instituições de fomento, em especial nas áreas de robôs domésticos,  robótica pedagógica, robôs terrestres, veículos aéreos não tripulados e plataformas de telemetria, processamento e comunicação. Engenheiro de sistemas no CESAR e Doutorando no Cin UFPE, fomenta competições de Robótica em diversos estados do Brasil, presencialmente ou pela internet. 

Com trabalhos realizados em temas como inclusão sociodigital, informática na educação, educação em computação, computação e sociedade, ontologias, lógicas de descrições e web semântica, Débora Abdalla falará das facilidades e desafios que enfrenta no seu dia a dia. Professora de Ciência da Computação da Universidade Federal da Bahia, é pesquisadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Informática, Educação e Sociedade - ONDA DIGITAL (UFBA), programa de inclusão sociodigital. Também participa do grupo FORMAS - Formalismos e Aplicações Semânticas da UFBA

O mediador da conversa será Vicente Aguiar, organizador e co-autor do livro 'Software Livre, Cultura Hacker e Ecossistema da Colaboração', sócio fundador e gestor de projetos da COLIVRE, além de membro da equipe do Projeto Noosfero – uma solução em software livre, onde é possível criar a sua própria rede social e ali usar de seus diversos recursos como blog, fórum de discussão, portfólio online e agenda de eventos.

Painel Atitude Digital - Big Bata, Cidades Inteligentes, Redes Colaborativas, Representatividade, Comunicação Digital, Influência, Aprendizado, Robótica, Interações Sociais e Comunidades, serão os temas debatidos na primeira edição do Painel Atitude Digital. O evento vai estabelecer conversas sobre comportamento e cultura em mesas e oficinas com a participação de nomes locais e nacionais de destaque, que têm contribuído para o estudo do ambiente digital, e suas evoluções.Ao todo são cinco mesas e duas oficinas, que buscam apresentar conexões entre as mudanças no nosso olhar perante o mundo e as principais tendências da cultura digital.

Incentivo à cultura - A CAIXA investiu mais de R$ 385 milhões em cultura nos últimos cinco anos. Em 2018, nas unidades da CAIXA Cultural em Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, está prevista a realização de 244 projetos de Artes Visuais, Cinema, Dança, Música, Teatro e Vivências.

A CAIXA Cultural Salvador foi inaugurada em 1999, no prédio datado do século XVII, que já abrigou a antiga Casa de Orações dos Jesuítas e onde, ao longo da história, já trabalharam personalidades como Glauber Rocha, Caetano Veloso e Lina Bo Bardi. 

Após ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e restaurada pela CAIXA, a Casa hoje oferece ao público duas galerias de arte, um anfiteatro, um salão para espetáculos, uma sala para eventos e uma sala de oficinas, constituindo importante espaço de difusão cultural localizado no centro de Salvador (BA), com sala para eventos e uma sala de oficinas, constituindo importante espaço de difusão cultural localizado no centro de Salvador.


Serviço

Painel Atitude Digital 
Quando: 17, 18 e 19/08/2018 – (Sexta, Sábado e Domingo)
Onde: Caixa Cultural Salvador, Rua Carlos Gomes, 57, Centro.
Entrada Franca, observada a capacidade do espaço - Estacionamento gratuito ao lado nos dias 17 de agosto, a partir das 18h e 18 e 19 de agosto, a partir das 14h. 
Horários do evento:
17/08/2018 - a partir das 18 horas
18 e 09/08/2018 - a partir das 14horas
Classificação: Livre


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A ANISTIA NÃO DEVE SER REVOGADA – Marco Antônio Villa


03/ago/18
No Brasil, o processo de transição do regime militar para a democracia adquiriu formas absolutamente originais, sem qualquer paralelo com os países do Cone Sul. Vale destacar também que os governos desses países desenvolveram políticas que os distinguiram em relação ao Brasil, no mesmo momento histórico. Ou seja, não é possível jogar no mesmo saco — como se diz popularmente — regimes tão díspares. Não custa ressaltar que a marca ideológica da presença dos militares na cena política nacional, desde a Proclamação da República, foi o positivismo — e a referência prática, concreta, teve no castilhismo gaúcho a sua matriz.

É de conhecimento geral que tivemos um longo processo de transição que teve início com a distensão, ainda na presidência Ernesto Geisel. Mas os passos mais ousados foram dados no governo Figueiredo. A aprovação da anistia, em agosto de 1979, foi um importante marco. Permitiu realizar a transição de uma forma mais rápida, eficaz e sem traumas.

De tempos em tempos é recolocada a questão de revogar a lei de anistia. O argumento é que crimes teriam de ser apurados e punidos. A leitura passa pela ação dos órgãos de repressão e pelas graves violações dos direitos humanos contra centenas de brasileiros. Isso é fato, não se discute. Porém, deve ser também analisada a atuação dos grupos terroristas que mataram muitos brasileiros em atentados, assaltos a bancos e nos “justiçamentos.” Se é para judicializar a história, isso deve ocorrer para os dois lados.

A questão central é que não tivemos, no momento adequado, quando da passagem do governo para os civis (1985), um processo que enfrentasse o passado recente de forma a construir valores democráticos. Um bom exemplo ocorreu na África do Sul com a criação, por Nélson Mandela, da Comissão Nacional da Verdade e da Reconciliação. Apresentar os fatos, discutí-los, ouvir as diferentes versões e a partir daí, com as lições da história, edificar uma sociedade democrática. Infelizmente, isso não ocorreu no Brasil. Ao invés de um Mandela, tivemos José Sarney, um presidente fraco e temeroso de enfrentar os dilemas da época.

Buscar em organismos internacionais uma muleta jurídica para revogar a lei de anistia poderá gerar ainda mais tensão política. É muito mais eficaz discutir abertamente aquele momento histórico. E demonstrar que a urna é o caminho das mudanças e não um pau-de-arara ou uma bomba.



Marco Antônio Villa é historiador, escritor e comentarista da Jovem Pan e TV Cultura. Professor da Universidade Federal de São Carlos (1993-2013) e da Universidade Federal de Ouro Preto (1985-1993). É Bacharel (USP) e Licenciado em História (USP), Mestre em Sociologia (USP) e Doutor em História (USP

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REVOLTA DOS BÚZIOS, 1798 – (PALESTRA) Por Florisvaldo Mattos


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Dia 31/07/2018, a convite do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), gentilmente intermediado pelo jornalista Jorginho Ramos, o poeta Florisvaldo Mattos proferiu palestra,  no auditório do Instituto, em seminário pelo transcurso dos 220 anos do movimento denominado Revolta dos Búzios. Nesse evento comemorativo de significativo fato histórico da Bahia, Florisvaldo Mattos dividiu o palco com as também palestrantes, professoras e historiadoras Antonieta D´Aguiar Nunes e Patrícia Valim [foto acima]. 
Sobre o movimento Revolta dos Búzios Florisvaldo Mattos escreveu o livro "A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates", que a Assembleia Legislativa da Bahia lançará no próximo dia 24/08/2018, às 18 horas, no próprio IGHB.
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Boa tarde a todos.

A minha participação nesta sessão especial decorre do transcurso de redondos 220 anos de um agosto sombrio em que um terremoto sociopolítico abalou o morno cenário colonial-urbano da então Cidade da Bahia, com a eclosão e consequente dizimação do que a memória hoje celebra sob o rótulo de Revolta dos Búzios, que me inspirou um livro a ser lançado no próximo dia 24, às 18 horas, em segunda edição, pela Assembleia Legislativa da Bahia, nesta mesma consagrada casa de cultura em que ora nos reunimos, mas anteriormente fruto de uma dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia, na qual foi meu orientador um dos altos luminares dos estudos históricos baianos o saudoso professor e folclorista José Calasans.

Nesta obra intitulada A comunicação social na Revolução dos Alfaiates, deixando a parte essencialmente histórica à reconhecida competência dos historiadores, entre eles o professor Luiz Henrique Dias Tavares, a meu ver, seu mais destacado estudioso, preferi abordar, talvez pioneiramente, um ponto crucial que consistia em definir o papel da comunicação social na dita insurreição, optando pela designação mais repetida entre os seus estudiosos, hoje mais popularmente chamada de Revolta dos Búzios, que ocorreu na última década do século XVIII, quando um grupo de pessoas preponderantemente da mais reduzida condição social intentou promover na Bahia um levante, visando libertar o Brasil-Colônia do jugo colonizador de Portugal sob o primado de múltiplas bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república, abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.

No que se refere às ideias dos que estiveram engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada revolta, em que predominavam as relações de comunicação. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento e exposição de despojos fixados em postes e espalhados por vários pontos da cidade, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da punição severa um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, sem deixar rastros.

Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era Capital da Bahia em 1798, ano da erupção e derrocada do movimento. Enquadrava-se no que a sociologia costuma definir como típica sociedade de vizinhança, aquela em que a relação entre as pessoas se estabelece por via basicamente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio e exercício de poucos.

Predominava neste específico momento baiano do século XVIII uma vasta rede de contatos interpessoais, envolvendo diversas camadas da população, escorados em múltiplas formas de transmissão direta de conteúdos e atitudes, tais como conversas, relatos orais, gestos, cantos, símbolos óticos, pregões de rua, boatos, festas, lamentos, banzos, gírias, apelidos, jogos, hábitos, serões, desfiles, vestuário, comidas, vadiagem, erotismo, maledicências, obscenidades, violências, rixas, desordens, algazarras, ritos, missas, sermões, procissões, anedotas, versos, epigramas, discursos, convenções, casamentos, bodas, enterros, e formas outras, a percorrer a vasta teia de signos icônicos, indiciais e simbólicos, conjeturada por Charles Sanders Peirce (1839-1914), num verdadeiro espetáculo sensorial, urbano e rural.
A estrutura social baiana da época assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado, e os chamados lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.

Em uma de suas célebres Cartas Soteropolitanas, Luiz dos Santos Vilhena descrevia, produto de observação visivelmente empírica, o quadro de classes em que se dividia a população da cidade: “corpo de magistratura, e finanças; corporação eclesiástica; corporação militar, (...) corpo dos comerciantes, (...) povo nobre, mecânico e escravos”. Supõe-se que o segmento dos artesãos se inseria na designação de povo mecânico, omitindo-se também os servidores da administração colonial.

A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é, pelos jesuítas, reduzindo-se o estudo às disciplinas da chamada Ratio Studiorum, ministradas em suas escolas de “ler, escrever e contar”, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território. Segundo o historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa “nas cabeças, em baús amarrados, de jovens brasileiros estudantes em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré, mirando o Brasil-Colônia como um todo, garantia que vinham de contrabando, totalmente às escondidas, e outro historiador, P. Pereira dos Reis, sustentava que, pela falta de tipografias, proibidas por um alvará de 20 de março de 1720, “livros só chegavam por contrabando, vendendo-se na colônia, em todo o século, apenas catecismos tabuadas e cartilhas”, embora a proibição acerbasse o gosto pela leitura de obras de enciclopedistas e filósofos franceses, “importadas clandestinamente”.

E quanto à população? O mesmo Santos Vilhena situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, estimando 50 mil para o Recôncavo, menos de 60 mil para a Capital e menos de 100 mil para o resto da Capitania, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, compondo-se a população em 28% de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que municiava com livros de sua biblioteca o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.

O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, cuja existência o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira confirmou, em depoimento ao Juiz do Feito, repetindo oralmente o que decorara. É este que agora leio, em versão crítica de ortografia atualizada.


DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE


Letra

Igualdade e Liberdade

No Sacrário da Razão

Ao lado da sã Justiça

Preenchem meu coração.

Décimas 
Se a causa motriz dos entes
Tem as mesmas sensações
Mesmos órgãos, e precisões,
Dados a todos os viventes,
Se a qualquer suficientes
Meios da necessidade
Remir com equidade;
Logo são imperecíveis
E de Deus Leis infalíveis,
Igualdade e Liberdade.

Se este dogma for seguido,
E de todos respeitado,
Fará bem aventurado
Ao povo rude, e polido,
E assim que florescido
Tem da América a Nação
Assim flutue o Pendão
Dos franceses que a imitaram
Depois que afoitas entraram
No Sacrário da Razão.

Estes povos venturosos
Levantando soltos os braços
Desfeitos em mil pedaços
Feros grilhões vergonhosos,
Juraram viver ditosos,
Isentos da vil cobiça,
Da impostura, e da preguiça,
Respeitando os seus Direitos,
Alegres, e satisfeitos,
Ao lado da sã Justiça.

Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos Tiranos
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas terras serão!
Oh! Que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras,
Preenchem o meu coração.

Na minha análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, interessaram-me fundamentalmente as relações de comunicação que permitiram, seja no nível interpessoal, pela via oral, com predominância da conversa e do recado, seja no da comunicação manuscrita, com cartas, bilhetes e avisos, atuando em dois planos: o da formação da consciência política e revolucionária e o da preparação para o levante. E pude observar que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento.

Além de mensagens por via oral ou escrita, os conjurados de 1798 estabeleceram formas de comunicação por sinais convencionais, com estruturas simbólicas que permitiam identificarem-se e comunicarem filiação ao movimento de revolta, protegidos por linguagem especial, tanto sonora quanto visual, com garantia de sigilo apoiada em simbologias próprias.
Luís Henrique Dias Tavares registra que os conspiradores “conversavam, trocavam livros, organizavam banquetes pela liberdade” (...) “e se reconheciam por um búzio, uma espécie de distintivo ou senha”. Mas é o historiador Braz do Amaral quem mais especificamente se refere a tais comportamentos coletivos, em suas memórias históricas e políticas da Província da Bahia.

“Haviam os conjurados combinado reconhecerem-se por certos distintivos entre os quais se sabe o que consistia em uma argolinha numa das orelhas, barba crescida até o meio do queixo, um búzio de Angola na cadeia do relógio, conhecendo-se assim uns aos outros os franceses, ou mais propriamente, os partidários das ideias novas. Costumavam empregar palavras especiais, em lugar das comumente usadas para designar certas coisas, sendo uma delas entes, em vez de homens, dietas, em vez de assembleias, compativelmente, em vez de compatibilidade etc., o que denota tendência para uma linguagem convencional, o que já se tinha visto na revolução francesa”.

Deveu-se ao uso de um búzio de Angola, às vezes até preso na lapela, como uma das formas de identificação de conjurados, no trânsito diário por pontos de afluência pública, a opção por historiadores de dar ao movimento a designação de Revolta dos Búzios, a preferida na atualidade, e não Revolução dos Alfaiates ou Conjuração Baiana. Porém, o mais decisivo estava por vir.

Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os rebeldes repentinamente conseguiram superar as limitações da comunicação de círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo - o da comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798, ao ser a população surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de pessoas, tais como portas de igreja, os chamados cantos do peixe, os açougues e mercados outros, como os de frutas e legumes, cais do porto, portas de quartéis, tendas de alfaiates e oficinas de artesãos - onde se operava um cotidiano de forte afluência -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico, em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica. Essa forma de difusão encontrada pelos conspiradores levou Braz do Amaral a afirmar que “a sua qualidade de comunicação formada no seio do povo indica como a propaganda das ideias ia ganhando terreno em todas as camadas sociais”. Representava inegavelmente um claro avanço, com a comunicação almejando um grau mais amplo de audiência.

Com base em depoimento do condenado Luiz Gonzaga das Virgens, apontado como autor da escrita dos boletins, Braz do Amaral acusa a ação de imprudência, por ter sido a causa da descoberta da conspiração, desde que “afixara escritos pelas paredes e pusera as cartas revolucionárias nas igrejas pensando fazer com isto proveitosa propaganda, para que mais depressa chegassem ao povo os princípios que professava”.
 
A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por consequência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar "boletins sediciosos", espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro, naquele tempo um lugar afastado e ermo.

Aqui reside o ponto crucial, a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, como digo no livro, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de ideias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”.

Tendo em vista esse aspecto, sem fazer praça de originalidade, tomei os dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas ideias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado - chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois - no Brasil e na Bahia - os jornais impressos, até neles repetindo slogans, seja com vibração ética, “Ó vós Homens Cidadãos”, ou emotiva sugestão lírica, “a Liberdade é a doçura da vida”.


Começando, primeiro, pela Gazeta do Rio de Janeiro, autorizada por carta régia de Dom João VI, dez anos depois, em 1808, a prática do jornalismo surgiria na Bahia, em 1811, com o pioneiro Idade d´Ouro do Brazil, publicação quinzenária de linha claramente submissa aos ditames do poder colonial, embora trouxesse inscritos em seu cabeçalho, com presumível toque de ironia, estes dois versos do poeta quinhentista português, Sá de Miranda;


"Falai em tudo verdades

A quem em tudo as deveis." 

Só que, no Brasil-Colônia, as verdades proclamadas e aparentemente aceitas eram as do regime absolutista colonizador.

Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração, esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense, cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por Gutenberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica no Ocidente. O primeiro deles traduzia-se numa entusiástica injeção de alento, ao dirigir-se a seu pretendido público: “Animai-vos Povo Bahiense que está para chegar o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”.

Escolhi para ler dois desses boletins escritos na versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, o outro, Prelo.


Aviso ao Povo Bahiense

Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.

Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.

Prelo

O Povo Bahiense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita nesta Cidade esse seu termo a sua revolução; portanto manda que seja punido com pena de morte natural para sempre todo aquele e qualquer que no púlpito, confessionário, exortação, conversação; por qualquer modo, forma e maneira se atreva a persuadir aos ignorantes, e fanáticos com o que for contra a liberdade, igualdade e fraternidade do Povo; outrossim, manda o Povo que seja reputado Concidadão aquele Padre que trabalhar para o fim da Liberdade Popular.
Quer que cada um soldado tenha de soldo dois tostões cada dia de soldo.
Os Deputados da Liberdade frequentarão todos os atos da igreja para que seja tomado inteiro conhecimento dos delinquentes: assim seja entendido aliás...
O Povo

Entes da Liberdade

Na verdade, esses boletins constituíram-se no mais vigoroso instrumento de divulgação dos revolucionários de 1798, como nítida compensação à inexistência de meios impressos. O professor Luiz Henrique Dias Tavares crava justamente neste ponto.

“Na época não existia imprensa no Brasil. A porta da colônia estava fechada a Gutemberg; Portugal, absolutista e clerical, proibia a menor publicação, a existência mesmo de um simples prelo. Por isso, a publicidade do movimento tinha de se fazer com boletins manuscritos - e tinha de se fazer, inclusive, porque os revolucionários estavam certos das adesões e apoios de homens de destaque, como eram alguns dos Cavalheiros da Luz”. (Espécie de clube maçônico que se supõe fundado em 1794).
 
Por isso é que, como sustentei, esses chamados boletins sediciosos, como classificados pelo poder colonial e sua Justiça, que os revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora manuscritos, devem ser reconhecidos, 220 anos depois, senão como ato legítimo de imprensa, em face das precariedades técnicas da época, mas como dela alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora, para o Brasil, ainda injustamente desconhecida. Como reforço, basta-me mais esta iluminada conclusão do historiador Luís Henrique: “Sem ter, assim, grandes episódios, sem ter, assim, chegado a eclodir a revolução, é pelo seu corpo de ideias que o movimento baiano de 1798 alteia a sua importância em nossa História”.

Não poderia encerrar essas palavras sem uma referência especial aos atos de enforcamento e esquartejamento dos quatro condenados, na Praça da Piedade, por sinal, pena hedionda semelhante à imposta, somente sete anos antes, a Tiradentes, no Rio de Janeiro, por ordem da rainha D. Maria I, chamada a Louca, e mais ainda, à de passados 173 anos, no Largo do Pelourinho, em imposta aos condenados da infeliz ocupação holandesa, em 1625, nesta própria Cidade da Bahia, todas em frente a igrejas ou próximas delas, a que dediquei um poema de recorte dramático, inspirado em relato do alemão J. G. Aldenburgk (1961), que consta de meu livro Poesia Reunida e Inédito, p. 226, de 2011, que pode muito bem, guardadas as proporções de época e motivações, ajustar-se ao cenário tétrico da tragédia punitiva de 8 de novembro de 1799, que agora leio.  

ODORES, Ó DORES

Fastígio de sinistra geometria,
ainda estão lá os patíbulos severos,
fadados a povoar os ares fétidos
como o odor que supura de sentenças
tão comuns aos exércitos que vencem
e perpetuam tenebrosos códigos.
Há vento e frio. Há medo. Corpos pendem,
vários, em brancos hábitos de frade,
para que se compraza um deus distante
da sorte que os levou à perdição.

Não é o mesmo que ao capitão Francisco
e ao pelotão de pretos valorosos
reserva o mesmo deus no seu julgado:
logo após pronunciar-se o cadafalso,
no pretório repleto de olhos ávidos,
seguem-se os ritos de esquartejamento,
os pedaços saudando os ares pálidos,
estrepados em postes o bastante
como exemplo tão vivo quanto bárbaro,
que se agrupará ao tempo sucessivo
e aos homens restará como relíquia
de formas primitivas de viver.

Tremor de peito e lua: deserta praça,
onde solene impera o cadafalso –
e sua sombra. Sentinelas dormem,
recolhidos também os vencedores,
armas ensarilhadas, chão lavado.
Cães esquecem o balouçar dos corpos
e vigiam a irresistível dádiva
que deriva dos postes punitivos.
Na luz vaga da noite, sobre pedras,
onde reflexos de recente chuva
lampejam, a vasta sombra do templo
alcovita a outra unânime da morte.

Carpinteiros da náusea em cada canto,
redatores de acórdãos para corvos,
se postam nas esquinas, provedores
árduos de matadouros e carniças,
nas primícias das tardes e das noites,
afeitos ao perfume dos morgados,
enquanto o odor trafega pela aurora
e invade casas, palacetes, adros,
as preces da manhã molhada em sangue
da face retalhada do Evangelho.


Muito obrigado.


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