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domingo, 21 de julho de 2019

O “NON POSSUMUS” DO CARDEAL ALEMÃO - Péricles Capanema


18 de julho de 2019
Péricles Capanema

“Non possumus” — não podemos; na linguagem corrente, não posso. Não podemos foi a resposta de São Pedro e São João ao príncipe dos sacerdotes que lhes proibia a pregação do Evangelho. “Se é justo diante de Deus obedecer antes a vós que a Deus, julgai-o vós mesmos; não podemos, pois, deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At 4, 19-20).

“Non possumus” é expressão usualmente empregada quando dever de consciência impõe desacordo público com algum ato de autoridade. Foi, assim, por exemplo, que Pio IX (1792 – [1846] 1878) respondeu a Napoleão III (1808-1873) que havia sugerido a ele, como Chefe dos Estados Pontifícios, a entrega da Romagna a Vitor Emanuel II (1820-1878), na ocasião ainda rei da Sardenha.

Os exemplos se multiplicam na vida pública e privada. Preciso, porém, falar de um cardeal alemão, erudito e destemido, que há pouco, publicamente, disse um “non possumus”, fundamentado e sereno, que ecoa de alto a baixo na Igreja. Dom Walter Brandmüller [foto acima], nascido em 1929, recebeu em 2010 o capelo cardinalício de Bento XVI. Reconhecido como sacerdote douto nos ambientes eclesiásticos e da alta erudição, em especial grande historiador, passou a vida em reflexões, estudos, aulas, congressos, publicações; tem numerosos livros difundidos no mundo inteiro. Foi só no outono da existência, 81 anos, como prêmio e reconhecimento de bons serviços recebeu a púrpura.

Estamos na véspera do Sínodo sobre a Pan-amazônia. Ou por outra, do sínodo sobre a Amazônia inteira. É região imensa, compreende a bacia do rio Amazonas, são 6.900.000 km2, dos quais cerca de 3.800.000 km2 no Brasil. Além do Brasil, abarca sete outros países: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela. Suriname. E ainda a Guiana Francesa. No Brasil, a Amazônia Legal representa 59% do território, onde em 2000 viviam 20,3 milhões de pessoas, sendo 68,9% em zona urbana. Hoje, certamente, muitos mais.

O Sínodo, que se reunirá em Roma de 6 a 27 de outubro próximo tem como lema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Observadores e comentaristas, considerando a amplitude dos temas propostos, afirmam que suas conclusões podem mudar o rumo da Igreja. Até agora, seu mais importante documento, espécie de pauta prévia, é a “Instrumentum laboris” (instrumento de trabalho), divulgado pela Santa Sé em 17 de junho último.

Foi em relação a tal documento, que tomou posição o cardeal dom Walter Brandmüller em documento de 27 de junho cujo original traz o título “Eine Kritik des ‘Instrumentum Laboris’ für die Amazonas-Synode” — Crítica da “Instrumentum Laboris” para o Sínodo da Amazônia.

O Purpurado iniciou suas palavras vergastando a ingerência indevida da proposta em matéria temporal: “Para começar precisamos nos perguntar por que um sínodo de bispos deveria tratar de temas que — como é o caso de três quartos da ‘Instrumentum Laboris’ — têm só marginalmente algo relacionado com os Evangelhos e a Igreja. Obviamente que a partir deste sínodo de bispos, realiza-se uma intromissão agressiva em assuntos puramente temporais do Estado e da sociedade do Brasil. Há que se perguntar: o que a ecologia, a economia e a política têm a ver com o mandato e a missão da Igreja? E acima de tudo: que competência profissional e autoridade tem o sínodo eclesial de bispos para emitir declarações nesses campos? Se o sínodo realmente o fizesse, isso constituiria uma invasão e uma presunção clerical, que as autoridades estatais teriam todo motivo para repelir”.

Com segurança e bom senso o cardeal alemão diz que o documento é “intromissão agressiva” em assuntos temporais de pessoas sem qualificação profissional e autoridade para falar a respeito. Vai além, seria “presunção”, “invasão”, e daria motivo justificado para as autoridades civis repelirem a ingerência indevida.

Vou tratar apenas de alguns pontos ventilados pelo cardeal. A seguir, critica o conteúdo teológico do documento, dizendo que, fundado no ideal do “bom selvagem” de Rousseau e na doutrina iluminista, propende para uma igreja natural e chega a uma “idolatria panteísta da natureza”. Censura ainda a rejeição da cultura ocidental, o desapreço da razão, a ereção das florestas “pasmem, vem até declaradas como um ‘locus theologicus’, uma fonte especial de revelação divina”. E conclui: “o resultado é uma religião natural, com máscara cristã”. Em consequência, temos “a autodestruição da Igreja ou a transformação do ‘Corpus Christi Mysticum’ em uma espécie de ONG secular com missão ecológico-social-psicológica”. Para o cardeal estamos diante de “uma nova forma do modernismo clássico do início do século XX”.

Seguidor do “seja o vosso falar: sim, sim; não, não”, conclui o hierarca com clareza solar: “Portanto, deve ser dito hoje com força que a ‘Instrumentum laboris’ contradiz o ensinamento vinculante da Igreja em pontos decisivos e, portanto, deve ser qualificada de documento herético. Dado que até mesmo a revelação divina ser aqui questionada, ou mal-entendida, deve-se também falar que, além disso, é apóstata. […] A ‘Instrumentum Laboris’ usa uma noção puramente imanentista de religião [..] constitui um ataque aos fundamentos da fé, […] deve ser rejeitada com a máxima firmeza”.

O documento do cardeal Walter Brandmülller é bálsamo para os católicos brasileiros. Eles haviam se escandalizado com a linguagem balofa, vaga, imprecisa, quando não escandalosamente falseadora da realidade, cheia de ambiguidades estudadas, que perpassa toda a “Instrumentum Laboris”, mas que invariavelmente bafeja programas de ecologia extremada, anticapitalistas, coletivistas, favorecedores do primitivismo indígena; enfim, pautas propugnadas pela esquerda de todos os matizes, em especial a radical.
  
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Comentários

José Antonio Rocha
18 de julho de 2019
Más, Irmãos em Cristo, não tenhamos medo. Se o império Romano não consegui, não será um “bando” de novos Judas Iscariotes que conseguirá prostituir a única Igreja edificada por Jesus Cristo. Deus é mais forte que todo o mal. Jesus Cristo venceu o mundo, a morte e o pecado. O coração imaculado da Virgem Maria triunfará. Amém.

Costa Marques
18 de julho de 2019
Oportuno comentário sobre a nova religião de fundo panteista promovida ou desejada pelos mentores do Sinodo da Amazônia.
Como bem lembrou São Paulo, baseado no Antigo Testamento, “os deuses dos gentios são demônios”. Essa afirmação do Cardeal Brandmüller de que o resultado do Sínodo da Amazônia “é uma religião natural, com máscara cristã” nada tem a ver — é bom que se esclareça — com a religião natural dos Patriarcas (anteriores portanto à Moisés), também chamada Religião Primitiva em que o Sacrificio de Abel, de Abraão eram bem aceitos por Deus. Costa Marques


Luiz Guilherme Winther de Castro
18 de julho de 2019
Infelizmente, a nossa Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, sem generalizar, é claro, aqui no Brasil tem se intrometido em assuntos que não lhe dizem respeito.
Mas, não é só a Igreja, não! Outros órgãos e instituições, como a OAB têm feito o mesmo.

MARIO HECKSHER
18 de julho de 2019
Excelente artigo, que precisa ser lido não apenas pelos católicos, mas por todos os cristãos.


Celso da Costa Carvalho Vidigal
18 de julho de 2019
Sugiro que o artigo de Péricles Capanema acima e outros o IPCO tem publicado referentes ao Sínodo sejam enviados pessoal e diretamente para todos os bispos dos paises que contêm partes da Amazonia, esclarecendo que os envios se devem à suposição de que o assunto os interesse e que, se eles preferirem não recebê-los, respondam pedindo para não mais enviá-los.


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PALAVRA DA SALVAÇÃO (140)


16º Domingo do Tempo Comum – 21/07/2019

Anúncio do Evangelho (Lc 10,38-42)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra.
Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!”
O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”.
— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Paulo Ricardo:

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Trabalho contemplativo 
Marta e Maria - Johannes Vermeer

“Maria sentou-se aos pés do Senhor, e escutava sua palavra” (Lc 10,39)

Neste domingo (16º TC), a liturgia nos desloca até Betânia, a viver Betânia, a ser Betânia, lugar de acolhida e hospitalidade; ali somos convidados a entrar em casa de Marta e Maria, junto com Jesus, para deixar-nos impactar por tudo o que acontece nesse ambiente tão familiar e humano.
  
Betania, “casa do pão”, simboliza um lugar de nutrientes, de alimento em sentido amplo: afeto, distensão, sensibilidade, cuidados, atenção, presença e ternura. Para Jesus, Betânia é um lugar de intimidade e de descobertas; busca acolhida na casa das duas irmãs, nesse anseio tão humano de companhia, hospitalidade e contato. É frente às suas amigas de Betânia que Jesus deixa transparecer, de um modo mais explícito, a dimensão feminina de sua vida.

Quando Jesus passa e se permite o encontro, as pessoas são transformadas. Ao hospedar-se na casa de Marta e Maria surge a novidade: uma mulher senta-se aos pés do mestre em horário dos trabalhos domésticos. As palavras de Jesus embelezam o coração mediante os ouvidos atentos de Maria. Ela bebe do poço profundo do “novo” ensinamento. A Jesus também não lhe interessa outra coisa que não seja formar mais uma discípula.

À luz deste relato, abre-se uma nova perspectiva para a mulher. Maria, é acolhida por Jesus como interlocutora privilegiada. Talvez seja o relato mais subversivo do evangelho. “Sentada aos pés de Jesus, escutava sua palavra”. Maria está ali como discípula. A parte essencial, que não lhe será tirada, é a marca dessa experiência aos pés de Jesus.

Isto desloca toda uma concepção machista da época que não permitia às mulheres serem discípulas de um mestre. Mas, para Jesus, a mulher também precisa desenvolver sua interioridade, precisa ativar seus recursos internos para o seu enriquecimento como pessoa humana. Quando se elimina a gratuidade do encontro e da acolhida, a vida pode perder seu sabor e seu sentido. Na atitude de Maria, Jesus convida todas as mulheres a desenvolver seus valores espirituais; Maria, por sua vez, oferece a ocasião para Jesus desvelar tudo isso. 

Se queremos compreender mais profundamente o verdadeiro sentido do texto deste domingo, não devemos esquecer o contexto do evangelho de Lucas. Situado dentro da viagem a Jerusalém, este relato procura revelar o perfil daqueles(as) que querem seguir Jesus. Durante essa subida, Ele vai formando os(as) seus(suas) discípulos(as). 

Lucas é o único que relata este episódio em Betânia e não é casualidade que, uma vez mais, se sinta interessado em destacar a importância das mulheres na vida pública de Jesus. Não tem nenhum sentido extrair deste relato uma distinção ou uma oposição entre a vida contemplativa e a vida ativa; tampouco deixa transparecer a pretendida superioridade de uma sobre outra. Não é correto interpretar este evangelho como proclamação de dois tipos de cristãos: uns que se dedicam à vida ativa e outros à contemplativa. 

Poderíamos dizer que esta imagem caseira do encontro amistoso entre Jesus e as irmãs revela uma atitude sensata na vida, de acordo com a tradição sapiencial: “Tudo tem seu momento, e cada coisa seu tempo” (Ecle 3,1). Jesus não censura Marta por trabalhar; o que Ele censura é a sua inquietação, a sua preocupação, o fato de andar agitada no seu “tarefismo”, “com um olhar atravessado” para sua irmã, a quem se queixa e clama uma intervenção de Jesus.

Jesus chamará Marta por duas vezes, como Moisés foi chamado por Deus diante da sarça ardente, porque o lugar que ela pisa, sua própria casa, é sagrado e há nela um fogo que não se consome. Ele a chama para que não se identifique com sua função, nem com seus afazeres, mas que vá progredindo em direção ao seu “eu profundo”, que saia da dinâmica das comparações e se atreva a ser “Marta completa”.

O que Jesus censura em Marta é, sobretudo, o seu estrabismo. Dois olhos que olham, cada um para uma direção diferente. No entanto, “uma única coisa é necessária”. Com efeito, Marta tenta olhar, ao mesmo tempo, para Jesus e para a irmã; dessa forma, não consegue enxergar o único Bem-Amado. Compara-se com a irmã, está possuída pelo que os antigos chamavam o “demônio da comparação”. Trata-se de uma tendência, presente em todos nós, de nos comparar, nos avaliar, viver incessantemente equiparando-nos aos outros. Esse “demônio” é sempre atual e acaba por envenenar múltiplas relações. 

Quando comparamos, passamos ao largo do único necessário. A comparação faz com que nós não percebamos “a única coisa necessária”. A “melhor parte” não é somente a contemplação, é não ver Jesus. A melhor parte é olhar em direção a Ele, é termos o desejo orientado para o Senhor. E se nosso desejo é orientado para o Senhor, nós podemos ter momentos de contemplação e momentos de ação.  Não são momentos opostos. A não-dualidade entre ação e contemplação, trabalho e repouso, encontra-se nessa unificação ou nesse despertar do olhar em direção ao Único. A qualidade da ação e da contemplação depende da orientação do coração e da inteligência em direção Àquele que mantém unidas todas as coisas. 

A cena de Betânia nos está dizendo: todos somos, ao mesmo tempo, Marta e Maria. Todos nos sentimos, com frequência, ansiosos, angustiados, dispersos e tentados a fazer da eficácia nossa principal preocupação. Mas, vivemos também a experiência do sossego e da unificação, que nos faz ordenar nossas prioridades e viver centrados no essencial. E, uma vez mais, somos convidados a saborear a Palavra que, no mais profundo de nós mesmos, se converte em uma fonte de assombro e de prazer e nos reenvia a um serviço mais generoso e mais livre. 

Marta representa um lado nosso que calcula, que mede e que compara. É preciso reencontrar Marta em união com Maria. Não é nada fácil manter o equilíbrio, integrando-as. Marta e Maria são como os dois olhos de um olhar, ou as duas faces do mesmo rosto. Os dois olhando em direção ao Único. Significa unir em nós, Marta e Maria, a contemplação e a ação, o silêncio e a palavra. A “melhor parte” está por todo lado: é o Senhor que deve ser acolhido em nossa ação e em nossa contemplação, no trabalho e no descanso. 

Ser humano é ser capaz de ação e ser capaz de contemplação. Mas o único necessário nesta ação ou nesta contemplação, no trabalho ou no repouso, é amar o Senhor. Em cada momento devemos buscar alcançar nosso “eu profundo” – exatamente onde jorra a vida – e formar uma só coisa com essa Vida que atua incessantemente no nosso interior. Estar centrado na Fonte: eis a melhor parte.

Texto bíblico:  Lc 10,38-42

Na oração: Entre em sua “Betânia interior”: verifique se ela é lugar de integração, unidade e pacificação. Ou, pelo contrário, espaço de divisão, ruídos, ansiedade e preocupação.
- “Betânia interior” se projeta na “Betânia exterior”: peça a Deus a graça de poder transformar a sua casa em nova Betânia: casa da acolhida, da amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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