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terça-feira, 2 de maio de 2017

DE ARRAIAL A POVOADO - Sherney Pereira


De arraial a povoado


            A exemplo de Irineu Mendonça, outras pessoas instalaram-se na Fazenda Boa Vista, desbravando o matagal ali existente. Eram capoeiras habitadas por grandes quantidades de animais silvestres tais como: capivara, preá, raposa, sariguê, preguiça, papa-mel, ouriço caixeiro, guaxinin e algumas espécies de macacos, guariba, sagui e jupará.

            Aquela gente simples caminhava pelas matas através de caminhos estreitos, ou simplesmente veredas abertas pelas formigas-de-mandioca. Havia enormes formigueiros, que consistiam em sérios problemas para os horticultores, que desesperadamente lutavam para exterminá-los e defender as suas plantações das insaciáveis formigas.

            Em 1927, construía-se a estrada de rodagem, interligando Ilhéus e Itabuna. A rodagem passava no centro da fazenda e, vinte anos depois, ela viria a sofrer grande reforma. Não temos certeza se a reforma foi geral, porém, no eixo Ilhéus-Itabuna houve correções, talvez por a estrada apresentar-se cheia de defeitos topográficos, com curvas em excesso, bastante acidentada. Pode parecer estranho, mas esta reforma muito contribuiu para que, no futuro, surgisse na Fazenda mais uma ruazinha, que o povo passou a chamar de “Rodagem Velha”.

            Naquela rua residiram pessoas que hoje talvez já nem mais existam. Lembro-me, por exemplo, de um velho sapateiro que se chamava Rosalvo. A sua casinha ficava tão escondida, em meio às plantações, que era quase impossível vê-la à distância. Era mestre Rosalvo quem confeccionava calçados para o povo dali. O meu pai encomendava-lhe botinas para toda a família e, em dias de festa saíamos às ruas, vaidosos, ostentando as botinas rangideiras que, para nós, eram calçados de primeira qualidade.

            O primeiro açougue no Salobrinho, foi implantado por Ascendino. Ele tinha quatro filhas lindíssimas, de olhos verdes, e morou no arraial por pouco tempo, exercendo o ofício de magarefe, para depois partir, tomando rumo ignorado.

            Apesar das pessoas acreditarem no desenvolvimento do arraial, explorando diversos tipos de negócios, o lugar ainda dormia um sono profundo. As crianças cresciam sem escolas e sendo os pais, na sua maioria analfabeta, não reuniam condições de ensinar pelo menos as primeiras letras aos seus filhos. Então a criançada ficava tão somente restrita às peladas e aos banhos contínuos, nas águas do Rio Cachoeira, que, ainda hoje continua sendo uma das principais áreas de lazer.

            Em 1963, no governo do prefeito Herval Soledade, o Salobrinho viu nascer o seu Grupo Escolar. Em seguida, também chegava  o MOBRAL, Movimento Brasileiro de Alfabetização, cuja escola passou a funcionar à noite, no salão do “clube”, ao lado da Igreja Católica.

            A CEPLAC teve um papel relevante no impulso do Salobrinho, no que se refere à área social. Aquela gente que vivia sofrendo, trabalhando em roças particulares, pessoas que aventuravam a vida pescando no rio, apegaram-se a ela e, hoje, muitos são funcionários gabaritados daquele importante órgão, onde gozam de todos os direitos a que fazem jus.

            A CEPLAC foi, certamente, a mola propulsora que veio garantir a sobrevivência de centenas de pais de família que, outrora viviam naquele povoado, sem ter de onde tirar o indispensável para a vida. O homem do campo nela encontrou o reconhecimento da importância do seu trabalho. Com o seu advento, um outro grande acontecimento selava a felicidade dos moradores: era a aura branda da cultura que soprava na sua direção. Estava se concretizando a maior aspiração da Região Cacaueira, estava nascendo a Universidade de Santa Cruz, instituída de acordo com o Artigo nº 8, da Lei 5.540.

            Portanto, nas propriedades de Manoel Fontes Nabuco, divisando com o Salobrinho, foi colocada a pedra fundamental que daria origem à FESPI, Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna. Havia a necessidade de se adquirir mais espaço para o campus universitário e, no ensejo, a CEPLAC procurou os herdeiros, a fim de propor-lhes a desapropriação de 10 ha. de terra. A CEPLAC construiria catorze casas dentro do povoado, além da indenização dos moradores da Rua da Mangueira, que optaram também pela construção de casas, numa área que o próprio órgão beneficiaria.

            A Rua da Mangueira era arborizada. Havia nela pouquíssimas casas, na maioria casinhas toscas, cobertas de zinco e em ruínas, porque os seus proprietários não tinham recursos para repará-las. Houve o seu desaparecimento. Das suas cinzas, ergue-se, imponente e majestosa, a UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ, para a glória de toda a Região do Cacau.  

            Em 1974, dava-se início a uma importante obra, que iria beneficiar cerca de duas mil pessoas. Um convênio firmado entre a CEPLAC, Secretaria da Saúde e Prefeitura Municipal de Ilhéus, implantaria o Sistema de abastecimento d’água, levando o precioso líquido a todos os lares do povoado. O complexo hidráulico consistia de um poço perfurado, uma casa de bomba com conjunto elevatório, motor elétrico, reservatório de capacidade de quinze mil litros e quatro chafarizes. Este investimento custaria ao convênio o montante de CR$16.182,67, cabendo à Prefeitura a importância de CR$14.500,86.

            Recentemente, um novo convênio, firmado entre o FSESP e a Prefeitura Municipal de Ilhéus, recuperou e ampliou aquele sistema, porque já não mais atendia aos reclamos do povo. Foi construído um novo reservatório no topo da Rua do Ouro, com capacidade para abastecer todo o povoado.

            O Salobrinho, atualmente, conta com um número de oitocentas casas, e o seu índice demográfico já atinge a casa de quatro mil habitantes. Na área de Educação, está relativamente bem servido, pois conta com sete escolas, além da extensão do 1º grau, níveis II e III, do Instituto Municipal de Educação de Ilhéus, o qual funciona nas dependências da Universidade de Santa Cruz, num convênio firmado entre a FESPI e a Prefeitura de Ilhéus, respectivamente. Este convênio veio, efetivamente, beneficiar os estudantes do Salobrinho, Banco da Vitória e adjacências.

            Existem no povoado setenta e quatro casas comerciais, sendo que 70% são botequins improvisados, de onde os pequenos comerciantes retiram o sustento para a sua sobrevivência, vendendo cachaça, cigarros, balas e congêneres. O aspecto urbano é por demais desolador, deixando muito a desejar. O crescimento demográfico trouxe sérios transtornos porque, à proporção que aumenta o índice populacional, agrava-se o problema sanitário, deixando os seus habitantes desassistidos. A inexistência de rede de esgotos, água tratada e posto médico constitui numa ameaça constante, um verdadeiro atentado à saúde pública. As crianças – as que conseguem sobreviver – são doentes, indispostas e crescem debilitadas, sem nenhuma motivação para enfrentar a realidade da vida lá fora. Os casos de verminose são uma constante, porque os esgotos ali correm a céu aberto, pelo meio das ruas, invadindo as residências.

            Contudo, apesar da vida sofrida e subumana que levam os moradores do Salobrinho, em termos de assistência social, pode-se ver no semblante de cada um, o desejo e a esperança de que, um dia, seja a curto ou a longo prazo, tudo ali se transforme e que, de Fazenda Boa Vista, passe a ser um grande povoado, uma Vila Universitária, digna de acolher satisfatoriamente, os estudantes de nível superior, que para ali convergem, procedentes dos municípios da Região Cacaueira, com o objetivo único e exclusivo de tornarem mais fácil o acesso à cultura.

 (SALOBRINHO – ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO - 1984)
Sherney Pereira

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            "Li, com interesse o livro de Sherney – Salobrinho – Encantos e desencantos de um Povoado, por sua riqueza de carinho com o tempo, esse relicário inesgotável. Como é bom existirem desses garimpeiros fascinados, que desenterram da ganga do passado a gema da história. Que surjam outros para relatar o que sabem ou sentiram desde o surgimento de seus bairros: Pontal, Malhado, Outeiro, e mais. E que o façam como Sherney: sem olvidar a linha sentimental. O mal da vida não é passar, mas esquecer".

 Dorival de Freitas


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A ANTILISTA DA ODEBRECHT – Por Rosiska Darcy de Oliveira


A antilista da Odebrecht


Está em curso no Brasil uma revolução sui generis. Sem armas, sem exércitos, sem líderes revolucionários autonomeados. Uma velha ordem está sendo derrubada. Com ricos e poderosos sentados no banco dos réus, assiste-se à degola metafórica de toda a classe política, sem que desponte uma nova ordem como as que anunciam as revoluções.

O sistema político partidário está sendo contestado de fora para dentro. O que nos confronta com um paradoxo: a política está em estado terminal enquanto a democracia está mais forte do que nunca.

Milhões de brasileiros clamam por decência, uma palavra fora de moda, uma causa justa que hoje mobiliza mais do que as caquéticas ideologias. Querem coisas simples, como viver num país em que o dinheiro de impostos seja aplicado na saúde da população e não saqueado por criminosos cujo cinismo e insensibilidade moral raiam à obscenidade. 

O Brasil era governado por uma empresa que corrompeu a República. Tinha, no Senado, uma bancada majoritária, a soldo de seus interesses. A população está chocada como quem foi assaltado. E fomos.

Desmascarados, estes parlamentares perderam a legitimidade, sobretudo para votar uma reforma política. Com mão de gato, ainda tentam incluir na proposta de voto em lista fechada (destinada a garantir sua reeleição e foro privilegiado) o sigilo sobre os nomes nela incluídos. Para eles, não existimos.

O desrespeito à população tem sido a tônica da vida política. Marqueteiros pagos com dinheiro ilícito vendem uma imagem falsa dos candidatos tal como aconteceu na última eleição presidencial. O recurso sistemático à impostura se espalha país afora, chegando até as eleições municipais. Haja dinheiro de empresas para pagar fortunas a quem melhor vender gato por lebre ao eleitor.

Esta deformação alimenta um discurso perverso: ladrões foram eleitos pelo povo, logo a culpa é do povo que vota mal. Não, o povo compra o que a propaganda enganosa, financiada pelo roubo do dinheiro público, lhe vende. Os recursos que deveriam pagar escolas e hospitais financiam campanhas publicitárias que prometem as escolas e os hospitais que o povo não verá jamais. Mágica da corrupção que desmoraliza a democracia legitimando com o nosso voto os mesmos que nos assaltam.

O juiz Sérgio Moro restabeleceu a confiança na Justiça graças a um princípio claro e simples: ninguém está acima da lei. Moro não está só. Com ele, juízes, procuradores e a Polícia Federal estão envolvidos na apuração dos crimes. A reconstrução do país já está em curso, é preciso lembrar, quando a exposição diária à escabrosa criminalidade que nos assola estimula a depressão e a impotência.

O sistema político acabou e deixa um vazio. O buraco negro da política, sorvedouro de energias e esperanças, não se transforma da noite para o dia. Não saber como se faz o que precisa ser feito não impede que continue a ser preciso fazê-lo. A solução desse quebra cabeças tem que ser buscada em outros espaços e atores, nas novas formas de reivindicação de direitos e de ação transformadora já presentes na sociedade, a exemplo do que se fez na Campanha da Fome, de Betinho, e na Lei da Ficha limpa. A política só se regenera da sociedade para os partidos. 

Desmistificar o discurso paralisante da falta de lideranças no país é parte da reconstrução. Há lideranças, sim, que, por palavras e obras, conquistaram a confiança da população. Drauzio Varella, sem ser político, é uma liderança nacional. É urgente fazermos um mapeamento, nos círculos de confiança em que nos movemos, de gente em quem votaríamos com orgulho. 

Precisamos de uma antilista da Odebrecht, feita de homens e mulheres em quem a população se reconheça e que possa vir a representá-la. Para que essa lista de honra e não de vergonha seja viável precisamos de uma campanha nacional em prol da possibilidade de apresentação de candidaturas independentes, desvinculadas dos partidos e suas máquinas carcomidas. 

Precisamos de uma Constituinte com o mandato de refazer as instituições políticas adaptando-as aos tempos em que vivemos, às novas formas de expressão de opiniões e de comunicação que estão hoje à nossa disposição.

Do estatuto de um dos países mais corruptos do mundo passamos ao do país que melhor luta contra a corrupção. A volta por cima que estamos dando, quero ver quem dava. O mais difícil foi feito: enfrentar gigantes empresariais e caudilhos, quebrar o padrão de impunidade que estimulava a bandidagem.

Inovar é preciso. O novo não vem do velho. Ele se gera a si mesmo e cria o espaço para se expandir.

O Globo, 22/04/2017


Rosiska Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de abril de 2013. É escritora e ensaísta. Sua obra literária exprime uma trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23 de dezembro de 2012.


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