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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO - A moralista

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(Ilhéus, 1925 – a moralista)


            De férias em Ilhéus Eurico e Emílio, filhos de dona Julieta, e eu, filho de dona Eulália – Emílio festejara treze anos, Eurico e eu ainda não – enchemo-nos de coragem, adentramos o puteiro de Antonia Machadão (em Gabriela mudei-lhe o prenome para Maria), o mais renomado da zona cacaueira. Além de nacionais vindas da Bahia, de Aracaju, do Rio, nele exerciam uma francesa e uma polaca, profissionais civilizadas, as gringas faziam de um tudo.

            Alvoroça-se o mulherio  ao ver os filhos-de-família, infantes decerto cabaçudos, somos cercados, abraçados, beijados, riem, debocham, oferecem-se para a festa do desvirginamento. Emílio tenta bancar o veterano Eurico emudece, encabulado, a polaca senta-se em meu colo. A algazarra traz Antonia Machadão à sala, foi o dia do juízo final.

            Conhecida e estimada por todos na cidade apesar do comércio que explorava com proveito, Antônia tivera duas filhas de xodós diferentes, adotadas uma e outra por famílias ilheenses, dava-se com as senhoras da sociedade, as esposas dos fregueses do castelo, nenhuma lhe negava o cumprimento. Com minha mãe batia longos papos quando habitávamos na Rua do Unhão, não longe da pensão alegre. Ao lado de Lalu, sentadas as duas no batente da porta, comentavam a chuva e o bom tempo, a previsão da safra e o preço do cacau. Na região Grapiúna onde ainda se morria e se matava pela posse da terra, as distinções sociais não ditavam os costumes.

            Ao nos ver nos braços das raparigas, em vias de escolher parceira, ir para a vida na cama, Antônia Machadão virou fera.

            - Fora, fora daqui, seus moleques descarados, fora agora mesmo que haveriam de dizer dona Julieta e dona Eulália se soubessem que permiti que seus meninos frequentem casa de mulher-dama. Fora daqui!

            Expulsos, humilhados, o galanteio das putas se transforma em vaia, saímos rua a fora rabo entre as pernas: Antônia Machadão, caftina, zelava pela moral na cidade de Ilhéus.


(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado.
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.

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UILSON SOUTO para Eglê S Machado

Uilson Souto para Eglê S Machado



Machado muito afiado,

A cortar nosso vernáculo,

Em poema bem rimado,

De conteúdo espetáculo;

Sobretudo pra quem lê,

Teus lindos versos, colega,

Quem vê a obra de Eglê

Além de adorar, se apega.


Uilson Souto
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UILSON SOUTO - Bancário Aposentado, Ciclista e Poeta.


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TURISTA DE QUINTA - Geraldo Carneiro

Turista de quinta


Sou um turista de quinta categoria. Sempre me identifiquei com uma frase atribuída a Nelson Rodrigues, que, segundo seus amigos, declarava: “Quando atravesso o Túnel Rebouças, sinto uma enorme nostalgia do Brasil.”

Na verdade, não sou tão radical. Adoro o Rio além e aquém túnel. E é claro que viajo pelo planeta, quando é inevitável, fingindo que estou me divertindo horrores. Às vezes até me divirto mesmo.

Semana passada cheguei de Bariloche, onde fui a convite de meus sogros, Inabel e Paulo. Um hotel belíssimo. A companhia? Magnífica. Mas fiquei contemplando aquela neve toda e me sentindo como um pinguim em Copacabana. Poderia alegar que houve contratempos: minha musa torceu o joelho descendo de esquibunda — não se pode confiar num esporte com tal nome; eu, pelo menos, não confio. A verdade, porém, é que sou sempre aquele brasileiro anedótico, que compara as maravilhas do universo com as trivialidades de sua terra natal.

Quarenta anos atrás, por exemplo, morei alguns meses no centro histórico de Roma, e só fui ao Vaticano 20 anos depois. Claro que tinha curiosidade de conhecer a cúpula do Michelangelo, as esculturas de Bernini etc. A preguiça turística, no entanto, não me permitia atravessar o Rio Tibre.

Se meus anfitriões, Amelita Baltar e Astor Piazzolla, me mostravam a silhueta do Coliseu, visto de uma varanda da burguesia socialista, eu declarava solenemente: “Prefiro o Diagonal.” Se me apresentavam outra maravilha, como a Fontana di Trevi, eu dizia: “É bonita. Mas prefiro o Diagonal.”

Um parêntese. O Diagonal, para quem não sabe, era o epicentro do Baixo Leblon, conjunto de botequins do bairro, frequentados pela fina flor da arte e da boemia. Quase todas as pessoas interessantes do Rio apareciam por lá, de Nelson Cavaquinho a Tom Jobim. Em matéria de atmosfera, o Diagonal dos anos 70 era a versão carioca do Café de Flore, 20 anos antes, em Paris. Embora concretamente fosse um barzinho mixuruca, com um cheirinho nauseabundo e algumas baratas quase sempre de plantão.

Hoje, graças à mudança dos tempos e à saúde pública, melhorou muito. Fecha o parêntese.

Alguns meses depois, Piazzolla veio ao Brasil para fazer shows, como fazia quase todos os anos.

Assim que chegou, me pediu, com seu sotaque indefectível: “Llevame a Diagonal!” Obedeci. Quando lá chegamos e ele se deparou com a precariedade daquele templo da boemia, emitiu uma exclamação tão pejorativa que não posso reproduzi-la neste almanaque dominical.

Depois ele compreendeu que toda cidade é uma invenção da memória sentimental de seus moradores.

Cada cidade é uma Troia, mesmo que não guarde a memória de sua tragédia. E é também um Tivoli Parque, onde nossa imaginação será feliz para sempre.

Em suma, o mundo inteiro não vale o meu bar.

O Globo, 06/08/2017


Geraldo Carneiro - Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL, eleito em 27 de outubro de 2016, na sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31 de março de 2017 pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.


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