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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO - O Casamenteiro

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(Bahia, 1965 - O Casamenteiro)

           
            Fomos padrinhos, Zélia e eu, do casamento de João Gilberto com Astrud, o casal se separou nos Estados Unidos para onde Joãozinho viajara a fim de participar de um show, obteve tamanho sucesso que ficou por lá anos a fio.

            No dia de seu embarque, indo para o aeroporto passou por nosso apartamento para o abraço de despedida, vestia roupa leve, própria para o verão carioca, em new York a crueza do inverno era manchete nos jornais. Ao vê-lo tão desagasalhado retirei do guarda-roupa um sobretudo usado: vista-o ao desembarcar do avião senão vai morrer de frio, pegar pneumonia. Essa a minha contribuição para o êxito do cantor nos States, o sobretudo que o salvou da pneumonia dupla.

            Contribuí também para seu casamento com Miúcha*: do primeiro matrimônio fui testemunha, no segundo funcionei de casamenteiro. Um dia recebi na Bahia telefonema de Joãozinho, ligava de New York, aflito como sempre, não mudara, continuava o mesmo.

            - Jorginho, você é muito amigo de Sérgio Buarque de Holanda, não é?
           
            - Sou, sim, Joãozinho, por quê?

            Figura das mais fascinantes da comparsaria intelectual, Sérgio concedeu-me o privilégio de sua intimidade, coloquei-o de personagem em “O Capitão de Longo Curso”, assim homenageio aqueles que mais estimo e prezo, pondo-os nas páginas dos meus romances. Juntos, durante um congresso de literatura em Recife, fundamos uma Igreja de São Pedro dos Clérigos a Benemérita e Venerável Ordem do Hipopótamo Azul, dedicada ao trato das donzelas, e criamos a teoria das baquianas, as balzaquianas quando baqueiam, baseada na agitação das literatas locais que cortejavam Eduardo Portela, o sedutor. Na época do telefonema o mestre historiador se vangloriava de ser o pai de Chico Buarque, compositor que estourara nas paradas de sucesso.

            - Jorginho, estou apaixonado pela filha dele, a Miúcha, irmã do Chico. Miúcha anda por aqui, ela também gosta de mim, queremos nos casar, mas temos medo que Sérgio se oponha, você sabe como é, deve ter ouvido horrores a meu respeito. Queria que  você falasse com ele, pedisse a mão de Miúcha em casamento, para mim. Diga a ele que não sou tão ruim como dizem por aí.

            Habituado a me envolver com a vida de Joãozinho, prometo interferir - depressa, daqui a uma hora telefono de novo para saber o resultado. Desligara agoniado, eu ainda procuro o número de Sérgio no caderno de telefones, Joãozinho volta a ligar: eu ‘tava vexado que não mandei um beijo para Zelinha. Vexado, Joãozinho.

            Disco o número paulista, Amélia atende, trocamos gentileza, desejo falar com o vosso ilustre consorte, Sérgio vem ao telefone, sabendo que sou eu, começa a imitar sotaque holandês, é de morrer de rir, mas eu me punho sério para lhe informar:

            - Te telefonei para pedir a mão de tua filha Miúcha em casamento.

            - Hem? Que história é essa? - Abandona o acento batavo, coloca-se em posição de defesa, que peça estou querendo lhe pregar?

            - Não é para mim, é para João Gilberto, estão apaixonados, querem se casar, ele pediu que te dissesse que não é tão ruim assim, tão má pessoa como consta por aí, não deves acreditar nas más línguas...

            - Que me contas? É brincadeira ou falas a sério?

            Falo a sério, relato a conversa de Joãozinho, telefonema em dólares de New York, repetida, esquecera o beijo para Zélia. Empolga-me a paixão dos dois cantores, coisa linda, faço o elogio do candidato a genro e o faço com amor. De Joãozinho sei o direito e o avesso, do menino de Juazeiro nas barrancas do São Francisco ao músico ainda desconhecido, lutando no Rio em dias de aperto, sou seu parceiro, fiz a letra do Lamento de Marta, composto para o filme de Alberto D’Aversa**. Quando solteiro, Joãozinho aparecia à noite no apartamento da Rodolfo Dantas, trazia o violão, ficava até a madrugada, cantando. Acontecia que Zélia e eu, cansados, íamos dormir, Joãozinho prosseguia em companhia de João Jorge, menino ainda, privilegiado. João Gilberto tocava, cantava, tendo como ouvintes apenas o moleque e o pássaro sofrê: vivia solto na sala e assobiava as músicas que Joãozinho dedilhava ao violão.

            Sérgio escuta em silêncio minha lenga-lenga, a proclamação das virtudes de Joãozinho, gênio musical, amigo terno, pessoa amorável. No dia seguinte toma o avião para New York, vai estudar o assunto in locum, apaixona-se pelo candidato, só podia acontecer.

            Para terminar, um post-scriptum: já levava João Gilberto vários anos residindo nos Estados Unidos quando um dia me apareceu em casa um portador trazendo encomenda enviada pelo músico: um sobretudo novo em folha, soberbo, eu o usei longo tempo, ainda o tenho. Ou será que o dei a João Jorge, o ouvinte solitário, o privilegiado?


*Miúcha Heloísa Buarque de Holanda, cantora.
**Alberto d’Aversa, diretor de teatro de origem italiana.

(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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            “Os radicais da negritude nacional são mulatos brasileiros, uns mais escuros, outros mais claros, cujo único ideal na vida é serem negros norte-americanos, de preferência ricos.”
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes. 

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