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quinta-feira, 6 de maio de 2021

MORENINHA – Ariston Caldas


          Moreninha perdeu a mãe logo cedo. Ela foi o último sobrevivente de uma ninhada de doze pintos saídos das cascas numa manhã chuvosa de um mês de junho; distinguiu-se dos irmãos pela cor pedrês, pintada como guiné. Os outros, cor de telha, foram morrendo um a um, como castigo. Dona Lídia, proprietária da ninhada, ia enterrando os bichinhos embaixo de uma mangueira no fundo do quintal. Ela saía resmungando, os sobrinhos atrás, curiosos, achando tudo muito importante.

          Moreninha cresceu rápido e em pouco tempo aprendeu a bater as asas pelo terreiro, ciscar ao pé de cercas e sumir pelos becos, pelos quintais da vizinhança. Em casa de dona Lídia ela descarou que só vendo, não fazia a menor cerimônia, perambulava pelas mesas, sobre o fogão, por cima do armário de tela verde; subia para o caritó onde dona Lídia guardava temperos e coisas miúdas.

          A orfandade precoce de Moreninha rendeu-lhe algumas vantagens, como bicar milho nas mãos dos meninos, perambular pelo quarto de dona Lídia e aninhar-se pelas camas onde deixava marcas indeléveis. Para dona Lídia, Moreninha era o vivente mais importante do terreiro. “Entende tudo que a gente fala”, dizia. Dava conta das origens da galinha – pai, mãe e até de parentes mais distantes, afirmando que um avô da galinha foi um galo valente, de penacho cor de ouro e de boas esporas.

          Quando lhe gritavam pelo nome, Moreninha levantava a cabeça, posuda, superior, abaixava-se manhosa e arrastava uma asa. Dona Lídia enchia-se de contentamentos e pedantismo.

          Depois que Moreninha enxeriu-se com um galo metido a porreta, do quintal vizinho, deu para sumir do terreiro. Era um galo de canto rouco e curto; quando ele avistava a galinha, entortava o pescoço, arriava uma asa e punha-se a fazer cabriolas, metido a besta. Eufrosina, dona do galo, ufanava-se da cria e falava, toda exaltada: “É um macho de verdade!”. Esfregava as mãos acotovelada na janela da cozinha, expondo orgulho, apreciando o galo disparado atrás de Moreninha, saltando garranchos, dando piados escandalosos; logo na primeira tentativa o galo alcançava seu objetivo. Dona Lídia, quando via a cena, ficava acabrunhada; uma vez panhou uma vassoura de cabe comprido e fincou o pé atrás do galo que se meteu assustado embaixo do assoalho da varanda. Foi nesse esconderijo que ele conhecera Moreninha, numa tarde chuvosa que lhe impedira ciscar pelo terreiro ou deitar-se à sombra da romãzeira, pelas barrocas poeirentas do quintal.

          Moreninha dava-se pouco à mistura com outras galinhas da redondeza, dengosa, cacarejando miúdo, cheia de outras manias; preferia os carinhos de dona Lídia, a atenção dos meninos da casa. Ostentava um pimpão suntuoso, cor de cinza prateado; tinha uma crista vistosa, sangue vivo, de peito saliente, pisava de supetão, metida a besta. Quando espantava, emitia piados estridentes com o se o mundo estivesse acabando, assustando todo o terreiro. Às vezes dava uma de valente, mas nem sempre garantia as pompas, tanto que se acovardava quando avistava uma galinha preta de pés cinzentos e esparrachados que aparecia vez em quando pelo quintal de dona Lídia. Era uma galinha mixuruca, parecendo ter parentesco com urubu; andada de quintal em quintal perambulando à toa, escorraçada, vilipendiada pelos meninos e até por outras galinhas. O galo de Moreninha era discreto para a galinha preta, nunca avançava. Peito a peito, Moreninha caiu na besteira de enfrentá-la um dia, trocaram bicadas, esporadas e, com menos de cinco minutos, Moreninha deu no pé. Ficou com a crista sangrando, um olho inchado. Depois da façanha, a galinha preta teve que correr também, mas das vassouradas de dona Lídia que ainda tentou, furiosa, alcançá-la antes do portão do fundo do quintal.

          Seu Veloso, cunhado de dona Lídia, nem tomava conhecimento de Moreninha, muito menos desses acontecimentos. Certa vez ele quase estrangulava a cria de dona Lídia; a galinha fazia estrepolias sobre a mesa de jantar e derrubou um jarro que se espatifou pelo chão. Seu Veloso, num ímpeto, pegou uma bandeja de aço e mandou brasa na galinha; perdeu a pontaria e Moreninha escapuliu pela porta do lado. Dona Lídia nem soube dessa ocorrência. “Ora essa, galinha só é importante na panela”, dizia seu Veloso. Dona Lídia ouvia, olhava de banda, dava um muxoxo e retirava-se com a cara enfarruscada.

          Por causa de um pontapé que nem atingiu Moreninha, dona Lídia atirou uma panela de água quente em Serapião, moleque que vivia perambulando pelas portas. Apesar da agilidade dele, a ducha atingiu-lhe parte do rosto. Serapião saiu disparado, cheio de agonia, apertando-se e gritando, “sinhá puta!”. Dona Lídia, desapontada, bateu a porta e sumiu casa à dentro.

          No aniversário de Moreninha, dona Lídia fez um bolo confeitado, com uma fita entrelaçada numa velinha; ao redor do bolo ela espalhou caroços de milho e pétalas de rosas. Fez uma roupa para Moreninha, em forma de túnica e um chapéu azul embarbelado; uns sapatos de lã e uma calcinha encobrindo o oveiro para evitar sujeira pela mesa, pelos móveis, como a galinha fazia pela sala e outros lugares. Os meninos em torno da mesa cantaram os parabéns, batendo palmas.

          Quando Moreninha conheceu o galo de Eufrozina, era ainda bem nova, mas já ciscava pelas cercas, catando pedrinhas; dona Lídia nem imaginara, na época, as manhas futuras da galinha, considerando-a muito novinha, longe da experiência de uma galinha adulta. Dona Lídia parecia admitir que galinha tem juízo.

          No dia do aniversário os convidados eram levados por dona Lídia até Moreninha empoleirada numa cadeira entre dois jarros com flores, sob os cuidados da empregada, como se a galinha fosse gente. “Esta é Moreninha. Bonita, não é?”, dizia dona Lídia. Numa dessas apresentações, uma moça ao lado falou, com ar de riso: “gordinha, boa de panela”. Dona Lídia chegou a tomar choque, fechou a cara e deu as costas para a visita imprudente.

          Depois que Moreninha meteu-se com o galo da vizinha, dona Lídia pressentiu-lhe mudança nos hábitos. Ora, dizer que Moreninha desprezou a casa é exagero, mas deixou isso em segundo plano. Manhã cedinho dava no pé e em alguns momentos ninguém era capaz de saber seu paradeiro. Era na paquera o dia inteiro, junto à cerca, o galo do outro lado, chegando, arrastando uma asa pelo chão, soltando vez em quando canto rouco; depois ele enfiava-se por qualquer abertura e fincava pé nos tampos de Moreninha disparada, soltando piados, escandalosa, pouco adiante ela abaixava-se, descarada, tremendo de fingimento, o galo concluía tudo aí. Quando se levantava, Moreninha arrepiava-se, sacudia-se e voltava a ciscar despreocupada; o galo, fagueiro, soltava o canto rouco, entortava uma asa, cabriolando para um lado, para outro. A cena repetia-se muitas vezes durante o dia.

          “Cadê Moreninha!”, era a fala de dona Lídia andando na cozinha, nos quartos, pela varanda do quintal. Perguntava aos vizinhos, aos meninos; a galinha, na dela, malandra, satisfeita com a nova vida, exibindo-se com pimpão e tudo, cacarejando por baixo do assoalho da varanda, de olho no galho espichando o pescoço, arrastando uma asa, posudo.

          Em pouco empo Moreninha começou a pôr. Dona Lídia juntou dezesseis ovos. No início da postura dona Lídia andou encabulada, sem aceitar o que acontecia com Moreninha. “Perdeu o jeito de virgem”, pensava. Para ela, Moreninha tornara-se igual às outras galinhas. “Abaixa-se, sem vergonha, à toa para o galo vagabundo”, dizia para si mesma. Achava, porém, que o galo da vizinha era bonito e que o canto rouco era coisa da idade, “ainda um frangote”.

          Dona Lídia não havia casado, “se eu fosse bonita como Moreninha, teria sido fácil arrumar um marido”, pensava. Lembrava de alguns namorados antigos, “malandros que não queriam nada”. Certamente as pernas finas e o cabelo ralo contribuíram para o desencanto. “Moreninha tem as pernas finas, nem por isso falta pretendente para ela”, pensava lembrando o galo de Eufrosina.

          De um dia para outro Moreninha deu para cacarejar meio rouca, eriçando as pernas. Estava choca. Dona Lídia fez um ninho com penas e retalhos de pano a um canto de um quartinho do fundo. Três semanas depois nasceu uma pintaiada de dar gosto. Nos primeiros momentos, quando os pintos saíam das cascas, eram pescoçudos, pelados, os olhos inchados. Depois foram mudando, nasceram penas bonitas, os piados enchiam a casa. Ninguém os diria filhos do galo de Eufrosina castanho-escuro brilhante. Os pintos eram amarelos como laranja madura.

          Ninguém na casa de dona Lídia esqueceu de Moreninha. Era como se fosse pessoa da família. Quando desaparecia do quintal, dona Lídia abria a boca no mundo, “Moreninha, Moreninha!”. Os sobrinhos dela saíam buscando a galinha pelos becos, por todos os cantos, pelos quintais da vizinhança.

          Naquele tempo as pragas vinham dizimando os terreiros; Moreninha foi uma das vítimas. Acometida de uma doença, deu para perder as forças, para gogar, passando depois a ter desmaios, com piados sufocantes. Foi piorando e em poucos dias morreu. Dona Lídia tentara, antes, umas doses de sulfato de sódio em colherinhas, nem adiantou. Moreninha foi enterrada embaixo da mangueira, junto a seus irmãos.

          Em casa de dona Lídia, depois da morte de Moreninha, a tristeza alastrou-se por muito tempo. Toda noite ela desfiava um rosário inteiro orando pela “alma” da galinha; enquanto rezava, as lágrimas lhe escorriam lentas pelo rosto enrugado; amanhecia de cara fechada, arredia às pessoas. Constantemente sonhava com Moreninha empoleirada, passeando pelos móveis, cacarejando à toa; da janela da cozinha via o galo de Eufrosina ciscando no pé da cerca, entortando o pescoço, fincando pé atrás de Moreninha, todo metido a importante. Num desses sonhos de dona Lídia, Moreninha aparecia aureolada por uma luz azulada emitindo raios fulgurantes. “Ela está no reino dos céus!”, pensava postando as mãos. Lembrava que Moreninha não era virgem, mas bem-comportada e mãe de dezesseis filhos. “Deus sabe disso, certamente lhe deu bom lugar na vida eterna”. Concluía seus pensamentos vislumbrando a galinha de corpo inteiro, tudo lhe passando como fita de cinema; lembrava do aniversário de Moreninha, de suas correrias pelas camas, por outros móveis; se pudesse teria matado a galinha preta que deixou Moreninha com um olho inchado, a crista sangrando, “a infeliz parecia um urubu”. Mas vingou-se do moleque Serapião, lhe borrifando a cara com uma ducha de água quente.

 

(LINHAS INTERCALADAS)

Ariston Caldas

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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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