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domingo, 6 de setembro de 2020

A SENHORA DO GALVÃO – Machado de Assis


           
 Começaram a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro, quando eles não tinham ainda passado dos primeiros obséquios. Assim se fazem algumas reputações más, e, o que parece absurdo, algumas boas. Com efeito, há vidas que só têm prólogo; mas toda gente fala do livro que se lhe segue, e o autor morre com as folhas em branco. No presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas um grosso volume de trezentas páginas compactas, sem contar as notas. Estas foram postas no fim, não para esclarecer, mas para recordar os capítulos passados; tal é o método nesses livros de colaboração. Mas a verdade é que eles apenas combinavam no plano, quando a mulher do advogado recebeu este bilhete anônimo:

            “Não é possível que a senhora se deixasse embair mais tempo, tão escandalosamente, por uma de suas amigas, que se consola da viuvez, seduzindo os maridos alheios, quando bastava conservar os cachos...” 

            Que cachos? Maria Olympia não perguntou que cachos eram; da viúva do Brigadeiro, que os trazia por gosto e não por moda. Creio que isto se passou em 1853. Maria Olympia leu e releu o bilhete; afinal, meteu-o no vestido e encarou a mucama, que esperava por ela e que lhe perguntou:

            - Nhanhã não quer mais ver o chale?

            Maria Olympia pegou no chale que a mucama lhe dava e foi pô-lo aos ombros, defronte do espelho. Achou que lhe ficava bem, muito melhor que à viúva. Cotejou suas graças com as da outra. Enquanto fazia essas reflexões, ia compondo pregando e despregando o chale.

          - Este parece melhor que o outro, aventurou a mucama.

           - Não sei... disse a senhora, chegando mais para a janela, com os dois nas mãos.

           - Bota o outro, nhanhã.

            A nhanhã obedeceu. Experimentou cinco chales dos dez que ali estavam, em caixas, vindos de uma loja da rua da Ajuda. Concluiu que os dois primeiros eram os melhores; a questão era saber qual dos dois escolheria, uma vez que o marido, recente advogado, pedia-lhe que fosse econômica. Contemplava-os alternadamente, e ora preferia um, ora outro. De repente, lembrou-se da aleivosia do marido, a necessidade de mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe que não era peteca de ninguém, nem maltrapilha; e, de raiva, comprou os dois chales.

          Ao bater das quatro horas (era a hora do marido), nada de marido. Nem às quatro e meia. Maria Olympia imaginava uma porção de coisas aborrecidas, ia à janela, tornava a entrar, temia um desastre ou doença repentina, pensou também, que fosse uma sessão de júri. Cinco horas, e nada. Os cachos da viúva também negrejavam diante dela, entre a doença e o júri com uns tons de azul-ferrete, que era provavelmente a cor do diabo. Realmente era para exaurir a paciência de uma moça de vinte e seis anos. Vinte e seis anos; não tinha mais. Era filha de um deputado do tempo da Regência, que a deixou menina; e foi uma tia que a educou com muita distinção. A tia não a levou muito cedo a bailes e espetáculos. Era religiosa, conduziu-a primeiro à igreja. Maria Olympia tinha a vocação da vida exterior, e, nas procissões e missas cantadas, gostava principalmente do rumor, da pompa. Magra devoção, que escasseou ainda mais com o primeiro espetáculo e o primeiro baile. Não alcançou a Candiani, mas ouviu a Ida Edelvira, dançou à larga e ganhou fama de elegante.

            Eram cinco horas e meia, quando o Galvão chegou. Maria Olympia, que então passeava na sala, tão depressa se lhe ouviu os pés, fez o que faria qualquer outra senhora na mesma situação: pegou um jornal de modas e sentou-se, lendo, com um grande ar de pouco caso. Galvão entrou ofegante, risonho, cheio de carinhos, perguntando-lhe se estava zangada, e jurando que tinha um motivo para a demora, um motivo que ela havia de agradecer, se soubesse...

            - Não é preciso, interrompeu ela friamente.

            Levantou-se; foram jantar. Falaram pouco; ela menos que ele, mas em todo o caso sem parecer magoada. Pode ser que entrasse a duvidar da carta anônima; pode ser também que os dois chales lhe pesassem na consciência. No fim do jantar, Galvão explicou a demora; tinha ido, a pé, ao teatro provisório comprar camarote para esta noite: davam os Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar um carro...

            - Os Lombardos? Interrompeu Maria Olympia.

            - Sim, canta a Leboceta, canta a Jacobson, há bailado. Você nunca viu os Lombardos?

            - Nunca.

            - E aí está porque me demorei. Que é que você merecia agora? Merecia que eu lhe cortasse a ponta desse narizinho arrebitado...

            Como ele acompanhasse o dito com um gesto, ela recuou a cabeça; depois acabou de tomar o café. Tenhamos pena da alma dessa moça. Os primeiros acordes dos Lombardos ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre, espécie de “Réquiem”. E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de inimigos, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar. Era isto mesmo. Entretanto, uma vez que estava avisada, não os perderia de vista. Aqui acudiu-lhe uma ideia: consultou o marido se poderia convidar a viúva.

            - Não, respondeu ele; o carro só tem dois lugares e eu não hei de ir na boleia.

            Maria Olympia sorriu de contente, e levantou-se. Há muito tempo que tinha vontade de ouvir os Lombardos. Vamos aos Lombardos! Trá, lá, lá, lá... Meia hora depois foi vestir-se. Galvão, quando a viu pronta daí a pouco, ficou encantado. Minha mulher é linda, pensou ele; e fez um gesto para estreitá-la ao peito; mas a mulher recuou, pedindo-lhe que não a amarrotasse. E, como ele, por umas veleidades de camareiro, pretendeu consertar-lhe a pluma do cabelo, ela disse-lhe enfastiada:

            - Deixa, Eduardo! Já veio o carro? 

            Entraram no carro e seguiram para o teatro. Quem é que estava no camarote contíguo ao deles? Justamente a viúva e a mãe; esta coincidência, filha do acaso, podia fazer crer algum ajusta prévio. Maria Olympia chegou a suspeitá-lo, mas a sensação da entrada não lhe deu tempo de examinar a suspeita. Toda a sala voltara-se para vê-la, e ela, bebeu a tragos demorados, o leite da admiração pública. Demais, o marido, teve a inspiração maquiavélica de lhe dizer ao ouvido: “Antes a mandasses convidar; ficava-nos devendo o favor”. Qualquer suspeita cairia diante desta palavra. Contudo, ela cuidou de não os perder de vista.

            Juntas saíram do camarote, no fim e atravessaram os corredores. A modéstia com que a viúva trajava podia realçar a magnificência da amiga.

            Uma semana depois, recebeu Maria Olympia outra carta anônima. Era mais longa e explícita. Vieram outras, uma por semana durante três meses. Maria Olympia leu as primeiras com algum aborrecimento; as seguintes foram calejando a sensibilidade. Não havia dúvida que o marido demorava-se fora, muitas vezes, ao contrário do que fazia dantes, ou saía à noite e regressava tarde, mas, segundo dizia, gastava o tempo no Wallerstein ou no Bernardo, em palestras políticas. E isto era verdade, uma verdade de cinco a dez minutos, o tempo necessário para recolher alguma anedota ou novidade, que pudesse repetir em casa, à laia de documento. Dali seguia para o Largo São Francisco e metia-se no ônibus.

            Tudo era verdade. E, contudo, ela continuava a não crer nas cartas. Ultimamente, não se dava mais ao trabalho de a refutar consigo; lia-as de uma só vez e rasgava-as. Com o tempo foram surgindo alguns indícios menos vagos, pouco a pouco, ao modo de aparecimento da terra aos navegantes. Mas este Colombo teimava não crer na América. Negava o que via; não podendo negá-lo, interpretava-o; depois recordava algum caso de alucinação, uma anedota de aparência ilusória, e nesse travesseiro cômodo e mole punha a cabeça e dormia. Já então, prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas e jantares, iam a bailes, teatros, corridas de cavalos. Maria Olympia vivia alegre, radiante; começava a ser um dos nomes da moda. E andava muita vez com a viúva, a despeito das cartas, a tal ponto que uma destas lhe dizia: “Parece que é melhor não escrever mais, uma vez que a senhora se regala numa comborçaria de mau gosto.” Que era comborçaria? Maria Olympia quis perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e não pensou mais nisso. 

            Entretanto, constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de quem? Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória as pessoas que lhe frequentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros ou bailes e achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam adoradores.

            - Cartas de quem? Repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.

            Durante sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e gastando em casa grande parte do tempo. No oitavo dia, veio uma carta.

            - Para mim? Disse ele vivamente.

            - Não; é para mim, respondeu Maria Olympia, lendo o sobrescrito; parece letra de Mariana ou de Lulu Fontoura.

            Não queria lê-la, mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave. Maria Olympia leu a carta e dobrou-a , sorrindo; ia guardá-la, quando o marido desejou ver o que era.

            - Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.

            - Qual! É um negócio de moldes.

            - Me deixa ver.

            - Para que, Eduardo?

            - Que tem? Você não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá.

            Já não sorria, tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três vezes. Teve mesmo ideia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo até o fim. Realmente, era uma situação original. Quando ela viu que não tinha remédio, determinou ceder. Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A carta era das mais explícitas: falava da viúva em termos crus. Maria Olympia entregou-lha.

            - Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que tenha recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para... Leia, leia a carta.

            Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, já tinha a fisionomia composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da inocência, e falou de outra coisa.

            Redobraram as cautelas do marido; parece também que  ele não pôde esquivar-se a um tal ou qual sentimento de admiração para com a mulher. Pela sua parte, a viúva, tendo notícia das cartas, sentiu-se envergonhada; mas reagiu depressa, e requintou de maneiras afetuosas com a amiga.

            Na segunda ou terceira semana de agosto, Galvão fez-se sócio do Cassino Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis de setembro, fazia anos a viúva, como sabemos. Na véspera, foi Maria Olympia (com a tia que chegara de fora), comprar-lhe um mimo: era uso entre elas. Comprou-lhe um anel. Viu na mesma casa uma joia engraçada, uma meia lua de diamantes para o cabelo, emblema de Diana, que lhe iria muito bem sobre a testa. De Maomé, que fosse; todo emblema de diamantes é cristão. Maria Olympia pensou naturalmente na primeira noite do Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo, quis comprar a joia, mas era tarde, estava vendida.

            Veio a noite do baile. Maria Olympia subiu comovida as escadas do Cassino. Pessoas que a conheciam naquele tempo, dizem que o que ela achava na vida exterior, era a sensação de uma grande carícia pública, à distância; era a sua maneira de ser amada. Entrando no Cassino, ia recolher nova cópia de admirações e não se enganou, porque elas vieram, e de fina casta.

            Foi pelas dez horas e meia que a viúva ali apareceu. Estava realmente bela, trajada a primor, tendo na cabeça a meia lua de diamantes. Ficava-lhe bem o diabo da joia, com as duas pontas para cima, emergindo do cabelo negro. Toda a gente admirou sempre a viúva naquele salão. Tinha muitas amigas, mais ou menos íntimas, não poucos adoradores, e possuía um gênero de espírito que espertava com as grandes luzes. Certo secretário da ligação não cessava de recomendar aos diplomatas novos: “Causez avec Mme. Tavares, c’est adorable!” Assim era nas noites; assim foi nesta.

            - Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olympia lá para meia-noite.

            - Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: - Ypiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido?

            A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olympia acrescentou, com os olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama no triunfo. Já no resto da noite falaram pouco; três dias depois, romperam para nunca mais.

            

(CONTOS DE ALCOVA)

Compilados por Ives Idílio

           

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MACHADO DE ASSIS

 Machado de Assis, nascido no Rio de Janeiro em 1839, representa nesta antologia, a literatura brasileira. 

Ninguém melhor do que o autor de “Dom Casmurro”, reúne credenciais para comparecer a este cortejo de autores de diferentes países e de épocas diversas.

O genial romancista Brasileiro, que começa a prender a atenção dos leitores e críticos de todo o mundo, embora faça viver seus personagens em cenário autenticamente nacional, consegue ultrapassar as barreiras da língua, graças ao acento de universalidade que lhe aureola a obra.

Dedicado também ao conto, gênero dos mais difíceis, consegue escrevê-lo com facilidade, sem desprestigiar uma só de suas qualidades, superando os obstáculos naturais que a brevidade impõe.

“A Senhora do Galvão”, amostra brilhante de sutileza, é o endosso convincente de nossas palavras a respeito da obra do maior de nossos escritores.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (200)



23º Domingo do Tempo Comum – 06/09/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 18,15-20)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.

— Glória a vós, Senhor.


Naquele tempo, Jesus disse a seus discípulos: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão. Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se ele não vos der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público.

Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu.

De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois, onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

 

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe André Teles:

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A correção fraterna inspirada pelo amor


pexels.com

“Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!” (Mt

18,15)

Como pessoas, somos seres sociais, comunitários. Todas as dimensões de nossa existência são vividas socialmente: família, povo, Igreja, comunidades, associações, partidos políticos, etc... Desde o nascimento até à morte, somos para e com os demais.

Saber se relacionar com os outros é uma necessidade fundamental da pessoa humana; esta, revela sua matu-ridade e se realiza humanamente quando se abre às relações interpessoais e descobre o prazer de conviver.

Jesus veio restabelecer um novo tipo de relações, e nos motiva a colocá-las em prática e estendê-las em todos os nossos encontros.

A vida de relação também ocupa o centro da comunidade cristã, que é pensada e vivida como mistério de comunhão e de missão, fundada na relação com Deus, comunhão de Pessoas e fundamento de nossa fraternidade. Tal fundamento dá vida e equilíbrio às realidades comunitárias, onde a atenção recíproca ajuda a superar a solidão, a comunicação favorece a corresponsabilidade, o perdão cicatriza as feridas e cada pessoa é motivada a sair de si para viver o compromisso com o outro.

Cremos no “Deus dos laços”, das conexões e das relações criativas. Deus, já desde o princípio, faz resplandecer seu rosto trinitário na expressão “façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. Ele deixou sua pegada de amor recíproco e compartilhado em cada ser humano.

Por isso, para curar na raiz os males que provocam as falsas relações e as forças desagregadoras, temos de aprender do Deus trinitário o segredo de um amor oblativo, de um esvaziamento recíproco de nossos egos, a fim de que nossos laços fraternais também sejam alimentados por um amor expansivo.

O evangelho deste domingo é um texto significativamente comunitário. Mateus emprega, pela primeira vez aqui, o termo “irmão”, para fazer referência às pessoas que faziam parte da comunidade cristã, e mostra costumes que, seguramente, faziam parte da organização e do modo de vida das primeiras comunidades.

O relato reflete, a partir da memória destas comunidades mateanas, a importância que o cuidado das relações interpessoais tinha para aqueles(as) que professavam a fé em Jesus Cristo. Por isso, o evangelista põe na boca de Jesus o que conhecemos como correção fraterna, o perdão e a oração em comum.

O ponto central do relato (a correção fraterna) é “ganhar” o irmão. Jesus buscou salvar sempre o que estava perdido. A finalidade de sua vida não foi a de condenar ou castigar, mas “ganhar” o irmão, encontrar a ovelha perdida, acolher o filho perdido, receber no Reino o bom ladrão.

Isto nos recorda a necessidade do diálogo e da compaixão em nossas relações humanas. Relações que são, em definitiva, o eixo principal de nossa vida comunitária e eclesial. De nada servem as reuniões, celebrações ou projetos que realizamos se não cuidamos, concretamente, da relação com os outros, com as irmãs e irmãos que o Senhor nos presenteou como companheiros(as) de caminho. 

Jesus, com suas palavras, mostra mais uma vez compreensão e firmeza, sensatez e liberdade. A correção fraterna, em qualquer grupo, se torna difícil. Talvez seja uma das atitudes que mais nos custa viver com maturidade. Mas, a correção se torna simples quando brota do carinho e da humildade, quando está permea-da pelo amor e pela misericórdia. Afinal, somos humanos e todos cometemos equívocos em algum momento da vida. Esta correção busca, a partir do coração, não humilhar, mas sustentar o(a) irmão(a) nas dificuldades.

E isto é assim porque lhe mostra o mal que fez para que possa crescer e ser melhor pessoa.

A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. A correção fraterna “não faz ruído”; por isso Jesus convida a corrigir a sós com o ofensor e só em último caso, recorrer à comunidade.

Corrigir com amor não significa pôr o(a) outro(a) de joelhos para que reconheça as suas faltas; a correção nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente nele a esperança...

A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores(as)”,  não como “justos(as)”.

O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo. 

Corrigir é ter esperança naquele que ofende, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade.

O ser humano é muito mais que um ato falho ou uma decisão equivocada. É reconhecer sua liberdade de ser, de abrir uma nova possibilidade para sua vida e de reiniciar-se a si mesmo.

A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do(a) outro(a) e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele(a). Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo(a) outro(a).

Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no(a) outro(a), crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o(a) irmão(ã) é melhor que aquilo que aparenta ser.

Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus: "Vai e não peques mais”.  Força que realiza aquilo que diz.

No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao(à) outro(a) o direito de “ser um outro”, não o(a) aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão errada.

Tal correção é muito mais uma atitude de vida que pede um olhar mais amplo sobre o(a) outro(a), contem-plá-lo(a) a partir de outra perspectiva. É enxergar no(a) outro(a) não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus.

Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, pois destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma.

Na realidade, a correção fraterna deve fazer parte de nossa vida cotidiana, das relações familiares, de amizade, relações comunitárias... Ela não se restringe a um ato pontual mas deve se tornar um “modo de viver” no qual a outra pessoa é mais importante para nós que os atos equivocados que realiza. Por isso, buscamos seu bem, seu crescimento, seu desenvolvimento como pessoa, a partir do amor verdadeiro.

Bem vivida, a correção é das experiências mais enriquecedoras para ambas pessoas, porque o desafio não é só para aquele(a) que deve acolher a correção, mas também para aquele(a) que a realiza, pois, para este(a) implica maturidade, amor, bondade, liberdade e espírito de discernimento. Igualmente, este(a) deve ter consciência de que todos são “santos(as) e pecadores(as)” e, portanto, todos necessitam de pessoas amigas que as façam ver, com maior claridade, se desviaram do caminho por alguma causa.

Como costuma acontecer em tudo o que é humano, quem melhor sabe propor a correção fraterna é quem já a experimentou em sua própria pele e saboreou o bem que isso traz.

Podemos concluir afirmando: fazem parte da comunidade dos(das) seguidores(as) de Jesus, aqueles(as) que perdoam e se deixam perdoar, aqueles(as) que acolhem a mútua correção fraterna. Mas, aqueles(as) que negam o perdão (dar e receber), acabam se afastando da mesma comunidade.

Não é a comunidade em si que exclui o “irmão que pecou”, mas é este que se auto-exclui, porque não é capaz de entrar no fluxo do perdão.

Aqui aparece a grande novidade: a comunidade cristã é capaz de regular-se e criar comunhão a partir da autoridade do perdão do evangelho.

O centro é o perdão, sempre oferecido, acima da lei, como graça fundante.

Texto bíblico:  Mt 18,15-20

Na oração:

Olhar cada uma das pessoas com quem convive.

Dar-se conta daquilo que sente para com cada uma delas, como as trata, como as acolhe...

Contemplar o outro respeitando-o em seu modo de ser, de agir, de pensar, de falar,

ajudando-o a ser mais humano no seu modo de ser, de pensar, de viver...

Observar e descobrir seus valores, suas riquezas, sua originalidade, sua profundidade; lentamente, mas com um olhar sereno e profundo... tentar descobrir “algo mais” presente em cada pessoa com quem convive (família, trabalho, comunidade);  vê-la com os olhos do coração: imagem de Deus, amada por Deus,  templo do Espírito, presença de Deus no mais profundo de seu ser.

 


Pe. Adroaldo Palaoro sj

https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2140-a-correcao-fraterna-inspirada-pelo-amor


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