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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

ROMPER COM O DISCURSO POÉTICO NÃO É COMO ROMPER COM O PROCESSO SOCIAL- Ferreira Gullar

Romper com o discurso poético não é como romper com o processo social

Mudar é próprio da existência. Tanto muda a natureza como mudamos nós, a sociedade e a cultura; e, se há o que muda independentemente da nossa vontade, há o que mudamos nós, por nossa própria determinação.

Naturalmente, dentre essas mudanças por nós mesmos realizadas, há as que decorrem de determinantes que mal controlamos e as que resultam de nossa opção consciente.

Fui levado a refletir sobre esses fenômenos ao me deparar com os problemas que enfrentamos, sobretudo na época moderna em face da necessidade de mudar a sociedade em que vivemos, que se impôs a partir da revolução industrial e do desenvolvimento do regime capitalista.

Em função disso, a partir da segunda metade do século 19, em praticamente todos os setores da sociedade, mudanças radicais se impuseram. Agravou-se uma visão crítica do modo de produção capitalista que iria culminar, em começos do século 20, com a revolução comunista de 1917.

É também no final do século 19 que, no terreno das artes, surge um movimento renovador que culminará com a eclosão cubista no início do século 20. Tais eclosões revolucionárias, tanto do campo de produção industrial quanto da criação artística, não são meras coincidências, mas, sim, resultantes das complexas relações que condicionam essas distintas manifestações da criatividade humana.

Um século depois de deflagradas, essas mudanças radicais, tanto no campo político-econômico como no plano estético, ambas, após as mudanças que provocaram, esgotaram-se.

No campo artístico, após uma série de movimentos realmente inovadores, chegou-se à desintegração das linguagens e, finalmente, a uma espécie de vale-tudo. Isso porque, quando se afirma que será arte "tudo o que se disser que é arte", é decretado o fim da arte.

No campo político não chegamos a esse niilismo, nem poderíamos chegar, pelo fato de que a política não lida apenas com metáforas, mas com a realidade concreta da vida.

E aqui chegamos ao ponto que me levou a estas considerações: se é verdade que a mudança é um fator decisivo da existência e, portanto, também da realidade social, inovar, neste campo, não é o mesmo que inovar no campo das artes, pelo fato de que este é um terreno particularmente complexo, pois envolve desde o pão de cada dia até o custo das aposentadorias e o índice de desemprego.

A Revolução Soviética de 1917 deu início a mudanças radicais na sociedade russa, mas também no processo político mundial, fomentando, sobretudo na intelectualidade e na juventude, a luta por uma sociedade anticapitalista, justa e revolucionária.

Essa utopia não se realiza plenamente em razão mesma da complexidade dos problemas nela implicados. Marx subestimou a importância decisiva da iniciativa privada no processo econômico e, com isso, perdeu a disputa com o regime capitalista.

Em consequência disso, aquela ideologia perdeu força, mas a luta pelas mudanças sociais ainda se mantém, seja na versão do populismo latino-americano, seja no projeto de alguns partidos que pregam um socialismo moderado em diversos países europeus.

Há, ainda, também na Europa, países que praticam um capitalismo sensato, em que a diferença de renda é compensada com a prestação, pelo Estado, de serviços eficientes no campo da saúde e da educação, sobretudo.

Em países como o nosso, esses serviços são muito mais precários não só porque os recursos são insuficientes, mas porque o número de pessoas carentes é muito maior.

Na América Latina surgiram alguns governos populistas que tentaram explorar politicamente essa desigualdade, implantando programas que excluíam a possibilidade real de colocá-los em prática. A consequência disso foi o agravamento da situação econômica geral e a estagnação do crescimento, que resultou no fracasso desse populismo nos países que tentaram implantá-lo.

Então, volto à tese que já expus aqui: uma coisa é romper com a lógica do discurso poético; outra coisa, muito diversa, é romper com a lógica do processo social. Dá em Venezuela, por exemplo. 

Folha de São Paulo, 20/11/2016




FERREIRA GULLAR 
Sétimo ocupante da cadeira nº 37 da ABL, eleito em 9 de outubro de 2014, na sucessão de Ivan Junqueira, e recebido em 5 de dezembro de 2014, pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.
Ferreira Gullar nasceu em 10 de setembro de 1930, em São Luís do Maranhão – MA e faleceu  em 4 de dezembro de 2016, no Rio de Janeiro.

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NÍDIA COSTA REIS & EGLÊ S MACHADO: BRINCANDO COM AS EXPRESSÕES

Clique sobre a foto, para vê-la no tamanho original
Dueto: Nídia Costa Reis & Eglê S Machado


Nídia Maria da Costa Reis:
Peço licença para invadir sua página e enviar-lhe outra "brincadeira" que já publiquei no Facebook tempos atrás. Você pediu e aí vai:
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Há alguns anos, escrevi esta história empregando expressões populares muito conhecidas. Ela foi bastante comentada e apreciada, e tema de um programa na rádio São João del-Rei, do qual participei ao vivo, como convidada.

 Um rapaz nasceu onde Judas perdeu as botas e sempre andou de déu em déu. Sua vida foi difícil. Comeu o pão que o diabo amassou, mas nunca entregou a rapadura.
 Certa vez, arranjou um emprego, mas foi fogo de palha. O patrão despediu-o e ele saiu com uma mão na frente e outra atrás. O rapaz continuou seu caminho. Encontrou um homem assentado debaixo de uma árvore com cara de quem comeu e não gostou. Quis puxar conversa. O homem não estava disposto e, diante da insistência do rapaz, perdeu as estribeiras e partiu para a ignorância. O rapaz deu no pé
Ao longe, viu uma fazenda e resolveu pedir pousada. Ao chegar, achou que ia tirar a barriga da miséria porque a cozinha estava sortida. A dona da casa era uma unha de fome e dizia que as coisas estavam pela hora da morte. Deu-lhe uma xicrinha de café puro e mandou-o picar a mula. Ele não gostou e começou a xingar a dona que ouviu cobras e lagartos
Nesse instante, apareceu o dono da fazenda e resolveu mostrar ao rapaz com quantos paus se faz uma canoa. Olhou para ele e começou a rir de sua boca de chupar ovo. Disse-lhe que ganharia comida só no dia em que na galinha nascesse dente. A única coisa que poderia ganhar era um pouco de água que o passarinho não bebe. O rapaz respondeu que não era seu irmão de opa e que ele estava chorando de barriga cheia. O dono nem abanou o rabo e saiu
O rapaz pensou: “É, desse mato não sai coelho. Vou cantar em outra freguesia.
Chegou a uma cidade depois de uma longa caminhada. Ele tinha mesmo fôlego de sete gatos. Aproximou-se de um mercadinho e entrou. Começou a examinar as mercadorias porque não podia levar gato por lebre. Ele achou que as mercadorias estavam na bacia das almas e ficou com água na boca. Perguntou ao dono se podia comprar fiado. Alguém gritou de longe: “Não vende não porque ele não apaga nem fogo na roupa”. Era um leva-e-traz que ele conhecia e gostava de fazer tempestade num copo d'água. O dono do mercadinho era um água morna e deixou-o escolher alguma coisa para comer. Aí, caiu a sopa no mel. O rapaz pensou: “Vou aproveitar enquanto Braz é o tesoureiro”. Encheu a sacolinha e foi saindo. A moça do caixa disse-lhe que ele devia vinte reais. “Eu sei. Você quer ensinar o Pai Nosso ao seu vigário?”, respondeu ele. A moça disse: ”Vá pagando e vá saindo. Aqui é assim: tretou, relou, o pau cantou”. 
O dono chegou e pôs água na fervura. Dirigindo-se ao rapaz, disse: ”Você quer ir para a cidade dos pés juntos ou quer ficar para semente?” E continuou: ”Sabe de uma coisa? Dê-me esta sacola. Você é muito atrevido e vai ficar a ver navios. Se ficar cheio de nove horas, vou chamar a polícia e você vai ver o sol nascer quadrado.
O rapaz, que estava com a orelha pegando fogo, respondeu. “Não quer receber os vinte, não é? Sua alma, sua palma. Não vou me vender caro, nem meter os pés pelas mãos. Não adianta remar contra a corrente. Vou sair desta espelunca antes que esta história termine em pizza...”

Nídia costa Reis

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Eglê S Machado:

Amiga Nídia Costa Reis, esse rapaz é meu conhecido:

O ADEMAR! 

Eis que o caldo engrossou para o Ademar!
Porém já que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, ele,  teimoso igual uma mula acabou se arranjando. A sorte que não tá nem aí para os errados  lhe deu uma mãozinha. E ele conseguiu  se mancar e procurar fazer da natureza força  depois de concluir que santo de casa não faz milagre  e resolveu  sair de fininho  rumo a outra fazenda bem distante desta, com muita fartura de trabalho e alimento.
Como quem é do chão não quer colchão demorou para acostumar-se com a nova vida, para depois   passar a dar duro confiando que de grão em grão a galinha enche o papo.  Afoito, sempre agiu como seu pai, pois quem sai aos seus não degenera. A velha Benta vivia afirmando: tal pai, tal filho!
Conseguiu fazer boas amizades, é belo, veste-se bem e é admirado. 
Como  em  terra de cego quem tem um olho é rei, ele começou  um novo tempo. Chegou à conclusão de que águas passadas não movem moinhos, e começou a sonhar com uma companheira para formar família. Logo estaria enfeitiçado por alguma das muitas moças da fazenda e redondezas; o tempo inteiro observava as meninas pensando em fazer a melhor escolha, já que macaco velho não mete a mão em cumbuca. Detesta a solidão embora afirme que antes só do que mal acompanhado.
Nos vilarejos vizinhos sua intenção de casar-se deixou em polvorosa as mocinhas casadoiras, e os mancebos invejosos. Dom Juan do pedaço, Jaime, tropeiro de profissão nota a animação da Ritinha, sua fã que suspirava pela sua pessoa e agora nem lhe olha e vive em constantes cochichos com as amigas. Lembrando-se da sua avó que dizia cochilou, cachimbo cai tratou de ser mais delicado com a Ritinha e no seu coração ameaçava o intruso apelidava-o de tucano rico de pena e bico e não entendia o que sua apaixonada esperava do forasteiro, se nem ao menos o conhecia. Enfim, pensou, cada cabeça, uma sentença e decidiu que no final da semana falaria com os pais da menina, assumiria compromisso de noivado, já que mais vale um pássaro na mão do que dois voando
Sorriu   prometendo que na primeira oportunidade diria na cara do rival: quando você ia buscar os cajus, eu já vinha com as castanhas.
O nosso Ademar que conseguiu economizar alguns reais resolveu deixar a fazenda para montar um comércio de artigos femininos, ou um armarinho, a fim de melhor manter contato com as moças, saber sobre suas famílias e quem sabe encontrar sua cara metade.
Encontrou um pequeno ponto comercial na rua principal da vila de Mutuns, que, se o dono estivesse disposto a fazer uma pequena reforma e cobrar um aluguel justo, o alugaria até conseguir seu próprio imóvel. Qual não foi o seu espanto ao descobrir que Lucilo, seu amigo de adolescência e lupanares há cinco anos, era o proprietário do imóvel. 
Lucilo ficou contente por vê-lo, mas lamentou estar de viagem para  João Pessoa. Iria encontrar uma rica paraibana  que estava enrabichada por ele e lhe enviara uma passagem de avião exigindo sua presença. Como o costume do cachimbo é que põe a boca torta Lucilo estava de malas prontas, disposto a mais uma aventura, desta vez com uma mulher de cabelo nas ventas que lhe prometia chamego, diversão e tripa forra todos os dias; segredou ao amigo: mulher de bigode nem o diabo pode
Ademar ainda tentou dissuadi-lo: rapaz,  cuidado, em terra que eu não vou, feijão bota na raiz, lá é muito seco, terra que filho chora e mãe não vê...  No que o amigo, retrucou: ham, quem desdenha quer comprar... Não se avexe não   que vaso ruim não se quebra. Cê fica com minha casa, monta seu armarinho, não me paga nada e ainda assino documento de doação, tudo em nome dos nossos bons tempos.
Ademar  viu que teria de gastar algum dinheiro com a reforma, mas ficou contente e concluiu que de cavalo dado não se olha a muda
Lucilo partiu (a bem da verdade pesaroso por deixar a vila e os amores). Já no avião decolando deu um muxoxo e pensou: ora, vão-se os anéis ficam os dedos...
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Casa reformada, armarinho montado, freguesia conquistada, sem concorrente à altura, o Ademar já planejava adquirir o terreno baldio ao lado, onde construiria uma boa casa assim que escolhesse a mulher que se tornaria sua  cara metade. Já observara e se informara de vida pessoal, familiar e financeira da maioria das moças da vila, seu coração ora pendia para uma, ora para outra, mas permanecia ainda pulando de galho em galho.
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O tropeiro Jaime já montara casa, a Ritinha já estava com o enxoval pronto, faltando alguns detalhes de acabamento. O noivo lhe pedira para acompanha-la quando fosse comprar algo para o enxoval e sempre a levava ao armarinho  de um amigo que um dia lhe ajudara e assim uma mão lavada lava a outra, explicava. 
Na Capelinha da Assunção corriam os proclamas, toda a Vila se engalanava para o evento.
Ademar não estranhava não ter sido convidado, pois há poucos  meses o noivo esteve no armarinho jogando conversa fora e falou do seu casamento próximo. Quando lhe foi oferecido crédito para alguma compra respondeu irônico palavras sem nexo sobre buscar cajus e trazer castanhas, deu-lhe as costas por resposta  e afastou-se dizendo que ri melhor quem ri por último.  Ademar não entendeu tal reação e comentou consigo mesmo: cada doido com a sua mania...
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Ritinha, meio desanimada estava diante da sua mãe que lhe tirava as medidas para a confecção do seu vestido de noiva. Dona Lara já escolhera o tecido branco e junto com a filha escolhiam o modelo com cauda não muito longa para economizar tecido, mangas compridas  e decote discreto, com enfeites que deveriam escolher  em um dos  armarinhos da Vila. 
Como  o noivo não pode tomar conhecimento de detalhes do vestido da noiva ou vê-lo antes do dia do casamento, dona Lara resolveu acompanhar a filha para as compras dos aviamentos e já a caminho optou pelo armarinho do Ademar por ser o seu estoque de qualidade sabidamente superior ao do concorrente. Ritinha lembrou à mãe que o Jaime sempre fez questão de comprar no armarinho do amigo, mas dona Lara pensou um pouco e disse à filha: aí é que a porca torce o rabo, quero o que há de melhor na vila para  seu vestido de noiva e várias vezes já fiz compras no armarinho do seu Ademar que é muito educado e sempre me dá um bom desconto.  Vamos para lá, pois quem muito dorme pouco aprende oxente!
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Três anos depois, a vila novamente em polvorosa, a Capelinha da Assunção  engalanada, proclamas já corridos, a casa construída vizinha ao armarinho do Ademar  pintada de branco com janelas verdes parecia cenário de contos de fadas, Lucilo e a sua Paraíba mais uma bela  pré-adolescente convidados  especiais.  Até a Bandinha da escola foi escolhida para tocar a marcha nupcial no casamento da Ritinha, a professora mais querida com Ademar, o maior comerciante da Vila.
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E os amigos do Jaime até hoje não entenderam como o tropeiro teve a coragem de picar a mula, abandonando a tropa na estrada, desistindo de um casamento praticamente aos pés do altar.
Alguém comentou que um estradeiro muito parecido com o Jaime  foi  visto na feira livre de uma cidade distante lendo suas histórias de Cordel. Uma boa plateia  às gargalhadas aplaudia o poeta, principalmente quando  ele repetia sem cansar que:  fogo ladeira acima, água ladeira abaixo e mulher quando quer, não tem quem segure!...


 Eglê S Machado



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