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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

INFÂNCIA DE POETA - Marco Lucchesi


Infância de Poeta


O mundo como espanto e admiração é a nossa primeira experiência com o ambiente que nos cerca. A voz da mãe, tão viva e contundente na memória ilumina partes secretas do labirinto de que somos feitos. Uma fina membrana nos separa da vida. Agrega e separa, como um sonho fugaz.

A infância profunda é um naufrágio delicado. O barco segue oculto no seio do mar primordial. Boiam alguns fragmentos, ideias rarefeitas, sentimentos em estado selvagem, antes da organização das palavras, da forma de entender o mar e de saber quem somos.

É certo que a infância não passa nunca, desafiadora, como um velho álbum, que, de quando em quando, é preciso rever, com tantas pessoas nas fotos, cujo nome ignoramos, se estão vivos ou não. Boa parte deixou de ser. A infância é um álbum povoado de fantasmas, para os adultos, cujas fotos manuseiam, emocionados ou indiferentes. 

Mas a infância do poeta não passa. A poesia é o estado permanente daquele menino impossível, de Jorge de Lima, cercado de brinquedos ou versos cheios de mistério e luz. O brincar como ensaio do que estávamos construindo para nós.

Desenho a locação das nuvens, condensadas ao longo de zonas celestes, distantes para os olhos de agora e de ontem, que desde cedo me deslumbram.

Minha infância incerta no mês de julho no Rio, com seus dias breves, feridos por uma espessa camada de melancolia, ainda mais sentida nos subúrbios da Leopoldina, sinuosa, como a linha de trem que avança nas entranhas fluminenses.

Como alcançar as feridas da memória, que chego apenas a sentir, quase impalpável, dor que a tudo se mostra rebelde e insubmissa nos primeiros anos?

Sob o líquido coral de nuvens, passa um menino, perdido, com seu cãozinho branco nos quintais. Seus olhos fosfatados de inocência trazem largas parcelas de futuro, como se estivesse ao abrigo dos deuses ferozes do mundo, dentro de uma esfera de pura vertigem. Inventa e sonha a linha do horizonte. Talvez fosse incluir um canário amarelo, com a gaiola, na parte dos fundos da casa, na pequena e infinita varanda, um cachorrinho branco, saltitante. Uma casa verde, cheia de bichos como a Arca de Noé.

No fim do mundo, posso apostar, “alguma coisa escapa do naufrágio das ilusões” e verei todos os meus animais.

Uma narrativa ou memória sem quantidade, feita de sentimentos dispersos é quanto me resta. Mas, e se tudo não passa de mera intuição, vida provisória, potência que se afoga no vazio das palavras?
Será apenas um salto no silêncio, a volta para a infância, algo que se nutre do nada em que se apoia e brilha, fugaz como um raio: sentimento que de súbito se exaure, na vida adulta, como num piscar de olhos?

Ao longe, e a muitos quintais de distância, reconheço uma farmácia. Não lembro como se chamava, onde se lia, em letras redondas, na vitrine, “agradecemos a preferência, volte sempre”.

Tão obscura me parece a relação do menino com as nuvens e os remédios da farmácia. Um fio da memória esgarçado em muitos pontos que deviam, mas não sabem, fazer um único nó.

Porque, a essa altura, o cachorro branco fugiu da coleira e perdeu-se. O menino deixou o quintal em busca de outros, mais incertos. A farmácia baixou as portas e não sei onde buscar novos remédios.
Como dizer uma história sem progressão? Fechada para o mundo como se a névoa lhe impedisse o passado.

Essa rememoração tem algo do canário que a tanto mundo não se atreve. Para Kafka, uma gaiola saiu para buscar um pássaro. Amarelo talvez, como aquele do menino, cujo canto dissipou-se na partitura dos dias.

Indago tão-somente a densidade das nuvens e a rarefação da história, que se passa no mês de julho, nos subúrbios do Rio e que reúne, sem motivos claros, a infância de um menino, o quintal onde armou alguns sonhos e as portas baixas da farmácia.

Um físico pergunta: Por que não nos lembramos do futuro?

O Globo, 31/07/2018


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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018.

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CANÇÃO PARA ACORDAR JORGE AMADO - Heribaldo de Assis


AGOSTO DE JORGE AMADO:

Canção para acordar Jorge Amado 


O escritor Jorge Amado, prestes a completar 90 anos, dormia profundamente em sua cadeira de balanço – suas mãos pendiam... Nelas os dedos calejados por uma antiga máquina de escrever mecânica.

Mas, há algum tempo, o velho Jorge Amado não escrevia, devido a um problema na visão – uma Degeneração Macular que estava retirando-lhe até o ânimo de viver, pois o impossibilitava de dedicar-se a sua maior paixão: a Literatura!

Inconformados com aquela situação, as personagens de Jorge Amado resolveram então sair das páginas dos romances e das novelas para tentarem despertar o escritor e reanimá-lo a enveredar-se pelas páginas da Literatura novamente, mesmo que com o auxílio visual de sua eterna companheira Zélia Gattai.

Mas, para não ocupar muito espaço na sala da casa do Rio Vermelho em Salvador – Bahia, somente algumas personagens de Jorge Amado receberam a permissão de saírem do mundo da imaginação e realizarem a tarefa de acordar o desanimado e sonolento escritor.

Então Gabriela, Tiêta, Tereza Batista (cansada de guerra), Dona Flor (sem seus dois maridos), Perpétua, Cinira, Amorzinho, o Negro Damião e Sinhozinho Badaró abandonaram temporariamente as páginas dos romances e do mundo imaginário para acordarem Jorge Amado...

E, num átimo, aportaram magicamente diante do escritor que havia lhes dado o sopro da vida e concedido-lhes destinos, sonhos, ideais, alegrias e sofrimentos. Por alguns instantes contemplaram emudecidos as marcas visíveis que quase um século de dedicação à Literatura e à luta pela Liberdade haviam deixado no corpo alquebrado do escritor octogenário: os cabelos brancos de preocupação com a miséria social da Bahia, as rugas que simbolizavam o testemunho de todo um passado, os calos nas mãos que extenuaram-se nas teclas da máquina de escrever, as pálpebras cansadas das romanescas noites em claro.

Ele parecia estar sonhando – mas com o que sonhava Jorge Amado: com um país no qual as crianças tivessem acesso a uma educação pública e gratuita de qualidade (e assim, no futuro, se tornassem cidadãs ao invés de se tornarem capitães de areia) ? Ou sonhava com um país no qual cavaleiros da Esperança e da Justiça finalmente triunfassem sobre a corrupção, a miséria e a violência?

Sim! Esse era Jorge Faria Amado – o filho do senhor João Amado e Dona Lalu: o menino grapiúna que nasceu em Ferradas (distrito de Itabuna-BA) em 10 de agosto de 1912 e que começou a publicar seus primeiros romances (No país do carnaval, Cacau, Suor) a partir de 1931. Logo depois vieram outras obras: Jubiabá (1935); Mar Morto (1936); Capitães de Areia (1937); Terras do Sem-fim (1942); Gabriela, Cravo e Canela (1958), dentre outros títulos que venderam milhões de exemplares, foram traduzidos para 54 idiomas e adaptados para a televisão, o teatro e o cinema. Uma carreira literária que o levou a ser eleito pela Academia Brasileira de Letras em 1959 e indicado ao Prêmio Nobel de Literatura por três vezes.

Nisso as personagens começaram a confabular sobre a melhor maneira de acordar o escritor – o Negro Damião (que estava com um clavinote na mão), propôs logo dar um tiro para o ar:

- Assim ele vai acordar mais rápido. Disse o Negro Damião.

Perpétua se contrapôs:

- Tá doido homem?! Assim ele vai é acordar assustado.

Tieta, indiferente à discussão das outras personagens, aproximou-se do escritor e sussurrou-lhe sensualmente no ouvido:

- Jorge, acorda. Sou eu, sua cabritinha: béé, béé, béé!

Dona Flor teve uma ideia e propôs:

- Por que não chamamos meu marido Teodoro para tocar fagote: assim, ao invés de acordar com barulho, Jorge vai acordar é com uma bela canção.

Tereza Batista comentou:

- Somente nove personagens tiveram permissão de vir até aqui, por que é que não teve essa ideia antes? Assim viriam 10 personagens ao invés de nove – se fosse permitido é claro.

Nisso alguém surge, mas não era Teodoro, era Vadinho (o primeiro marido de Dona Flor) – que (num passe de mágica) adentrara a sala completamente nu. Cinira e Amorzinho começaram a gritar e quase desmaiaram ao verem a nudez desavergonhada do defunto que abandonou as páginas do romance Dona Flor e seus dois maridos sem nenhuma permissão. Subitamente Vadinho aproximou-se de Dona Flor (que distraidamente confabulava com Gabriela a respeito de doces e quitutes) e então Vadinho apalpou as volumosas nádegas de Dona Flor que, acostumada com aquele gesto impetuoso, foi logo dizendo sem voltar-se para trás:

- Vadinho, deixe de vadiagem: aqui não né!

Gabriela também o censurou:

- Estamos em uma missão importante seu Vadinho, olha o respeito!

Vadinho limitou-se a dar um sorriso debochado para as duas e após acenar para a sua amada Dona Flor resolveu abandonar o recinto – não sem antes balançar as partes íntimas diante de Cinira e Amorzinho que, não desmaiaram porque foram amparadas por Perpétua. E Perpétua ameaçou:

- Volte logo para sua estória homem senão eu te dou umas bordoadas com meu guarda-chuva!

E, apesar de estar se divertindo com tudo aquilo, Vadinho resolveu retornar para o mundo da ficção para não criar mais balbúrdia ainda na sala da casa do Rio Vermelho. Sinhozinho Badaró, impaciente com toda aquela situação, tentou acordar mais uma vez Jorge Amado, mas não obteve sucesso.

Por fim, Gabriela fez mais uma tentativa: colocou as mãos no ombro de Jorge Amado, sem querer suas mãos macias e graciosas deslizaram no peito do escritor – mas o coração estava parado!

Quase aos prantos Gabriela cravo e canela exclamou para as demais personagens:

- Nenhuma música no coração de Jorge! Nenhuma música no coração de Jorge!

Todas as personagens imediatamente aproximaram-se para examinar o corpo desfalecido do escritor: a testa fria, as mãos geladas, o coração parado.

Então lágrimas escorreram dos olhos tristes de suas filhas mais famosas: Dona Flor, Tieta, Tereza Batista e... Gabriela. As demais personagens também ficaram inconsoláveis: O Negro Damião (homem acostumado a ver muitas mortes) tentou disfarçar a tristeza, Cinira, Amorzinho e Perpétua se amparavam – umas nos braços das outras. Sinhozinho Badaró contemplou o chão para não ter que encarar aquela cena.Todas as personagens, ao redor do corpo inerte de Jorge Amado, ficaram cabisbaixas e, inconscientemente, fizeram mais do que um minuto de silêncio. E em silêncio era até possível ouvir o bramido do mar nas praias do bairro Rio Vermelho:

"É doce morrer no mar, nas águas verdes do mar.
É doce morrer no mar, nas águas verdes do mar."

Por fim, disse Perpétua:

- Não há mais o que fazer aqui: vamos embora!

Instantaneamente quase todas as personagens desapareceram no ar e retornaram às paginas dos romances que encantavam e entretinham milhões de leitores no mundo inteiro.

Somente Gabriela ficou na sala, diante de Jorge Amado – aquele que lhe concedera fama e notoriedade. E, em um último esforço, Gabriela aproximou-se do corpo sem vida de Jorge Amado (que continuava na imóvel cadeira de balanço), sentou-se em seu colo e encostando a cabeça no peito dele sussurrou em prantos:

- Acorda painho, acorda!

Embalando a cadeira de balanço com suas coxas grossas, Gabriela fez o corpo inerte de Jorge Amado movimentar-se pela última vez – como se o embalasse para dormir junto com ela... E por fim ela também dormiu e desapareceu para entrar no coração sem vida do velho escritor. Amante e amada, escritor e personagem, criador e criatura fundiram-se finalmente para encerrarem o capítulo final de um dos maiores e bem-sucedidos escritores da Literatura Brasileira! Muito longe dali, à meia-noite, um jagunço – montando em um cavalo também espectral – galopou velozmente pelas ruas de Itabuna e Ilhéus bradando fantasmagoricamente a anunciar:

- Coronel Jorge Amado morreu! Coronel Jorge Amado morreu! Coronel Jorge Amado morreu!

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Heribaldo de Assis – Escritor, Poeta, Filósofo, Compositor, Redator-publicitário e Licenciado em Letras pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.

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