Je donne des aulas na Sorbonne. Foi o
que disse um desembargador ao rasgar a multa na cara do guarda. Que orgulho
deve ter sentido dessa coragem. Tornou-se homem, desafiador. Levitou. A frase
em francês, por ele dita ofenderia os ouvidos de Fanny Marracini, que morreu
quase aos 100 anos, depois de ter ensinado dezenas de gerações de
araraquarenses a ler e a falar francês. Mon Dieu! exclamaria horrorizada,
porque amava como poucos a língua. Nunca me esqueço do primeiro dia em que
entrou na classe, nos levantamos e ela cumprimentou: “Bom dia, meus alunos”.
Seguido por: “Esta é a primeira e última vez que vocês ouvem falar português em
minhas aulas”. Emendou: “Bonjour mes enfants”.
Realmente, dali para a frente só ouvimos francês e aprendemos, muitos
ainda o usam como segunda língua. Pessoas como Sidney Sanchez, que chegou ao
Supremo Tribunal Federal, Zé Celso que leu L’Être et le Neant no
original, a Luis Roberto Salinas Fortes, que traduziu Sartre e se tornou
professor de filosofia de primeira na USP ou o irmão dele, Hugo Fortes,
advogado de nomeada que leu Balzac inteiro aos 20 anos também no original, ou
Celso Lafer, o humanista e diplomata.
Fanny ao ouvir a frase em suposto
francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado
estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não.
Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal
língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame
Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge
Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se
exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem
sabe no ugarítico?
Lembrei-me de uma história acontecida comigo e com o jornalista Humberto
Pereira, o criador dessa joia que é o Globo Rural. Estávamos em Paris, décadas
atrás, e ele me viu saindo da Sorbonne, nas proximidades da Rue Cujas, onde eu
estava hospedado. “O que estava fazendo aí?”, ele indagou. Sorri: “Ora, estudo
aqui, pós-graduação”. Mostrei três livros comprados na Livraria LGDJ, ali
vizinha, especialista em obras jurídicas, a pedido de meu amigo Fernando
Passos, advogado de minha terra. Pereira abriu os olhos deste tamanho, mas
entendeu, me fez um sinal: você não perde por esperar. Não revelei que vi uma
porta por onde alunos entravam, fui atrás, queria ver por dentro escola tão
famosa. Andei um pouco, fui interpelado por um bedel e posto para fora.
Na mesma viagem, cheguei a Milão e
Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro
Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo
momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para
sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu
tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma
linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro
Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a
me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na
Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo
jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não
parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?
O que me incomodou foi um homenzinho
que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se
transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um
servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de
inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na
escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto.
Quem não sabe ler e escrever.
Fiquei intrigado. Como pode ser
analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi
à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que
lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei.
Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua
importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender.
Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma
dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou
meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o
formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto?
Naquela hora me veio velhíssima
história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no
tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez
descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente,
que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para
cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o
indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante
dignidade.
Membro das
Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna, publicado também no exterior, Doutor Honoris Causa da UESC,
autor de extensa obra, de vários gêneros, o escritor e poeta Cyro de Mattos
acaba de publicar pela editora baiana Via Litterarum o livro “Poesia e Prosa no
Sul da Bahia", com capa do consagrado desenhista Juarez Paraíso,
também membro da Academia de Letras da Bahia. Na obra, estuda autores
que enfocam em seus textos a
civilização cacaueira ou mantém com ela
laços de origem, sintonizados na
raiz com um contexto de natureza cultural singular e importância histórica.
Segundo
Cyro de Mattos, esse livro de ensaios, alguns escritos ao longo do tempo,reúnenomes consagrados queultrapassaram as fronteiras nacionais, outros quesão reconhecidos em nível nacional e alguns
quesão retiradosdos limites de seu município, onde se
encontram,por certas
circunstâncias,fora de uma circulação
literáriamais abrangente, o que nem
sempre parece justo.A obrafunciona como testamento crítico valiososobre a produçãode uma região poderosa no campo das
letras,quevem contribuindo para a expansão do acervo
cultural e literário da Bahia e até mesmo do Brasil.
No
alentado volume de 350 páginas, o escritor e poetaestuda obras de 47 autores sulinosdoEstado da Bahia, assimelencados:
I – PROSA. De
autor adulto para infantojuvenil,
Adonias Filho; precursor e
pré-modernista, Afrânio Peixoto; Emoção do contista, Aleilton Fonseca; Absurdo
e galhofa, Augusto Mário Ferreira; Nascimento do Brasil, Aracyldo Marques;
Romancista do Vale do Rio de Contas, Clodomir Xavier de Oliveira; Legado no
labirinto, Elvira Foeppel; Humor do novelista,
Euclides Neto; Relato do mato virgem, (Ferdinand Maximiliano von
Habsburg; Mestre da crônica, Fernando Leite Mendes; No mar de Azov, Hélio Pólvora;
Chamado do mar, James Amado; Prosador grandão e poeta , Jorge Amado; Dramaturgo
exemplar , Jorge Araújo; Contista de Água Preta, Jorge Medauar; Tramas na
adolescência, Lilia Gramacho; Caminhos de Adonias Filho, Ludmila Bertié; Mares do Sul, Marcos Santarrita; Cronista na
província, Manoel Lins; Dobras do tempo,
Margarida Fahel; Ilógico da vida, Naomar de Almeida Filho; Historinhas e
mundinhos, Odilon Pinto; Retrato do mundo real, Ricardo Cruz; Testamento
lírico, Ritinha Dantas; Narrador de itan, Ruy Póvoas; Outro precursor , Sabóia Ribeiro, Atritos e
Conflitos, Sonia Coutinho.
II – POESIA.
Colhedor de haicai, Abel Pereira; Tanta dor, poesia, Adelmo Oliveira; Rosa com agruras, Ariston
Caldas; Rio das solidões, Carlos Roberto Santos Araújo; Musa delicada,
Conceição Nunes Brook; Resistência santa, Firmino Rocha; Poética enorme,
Florisvaldo Matos; O pássaro do poeta, Hélio Nunes; Casa onde habitamos, Heloísa Prazeres; Ditado
do poeta, Ildásio Tavares; Lira descuidada, Iolanda Costa; Do jeito que o povo
gosta, Minelvino; Cacau em versos, Oscar Benício dos Santos; Soneto e cordel, Piligra; O tempo na
pulseira, Renato Prata; Poesia com alforrias , Rita Santana; Singular e plural,
Sosígenes Costa; Questões profundas, Telmo Padilha; Canto contido, Valdelice
Soares Pinheiro; Discurso existencialista, Walker Luna.
Da esquerda para a direita: Joaquín Gómez, chefe dos
negócios de Narcotráfico das FARC; Dom Darío Monsalve, Arcebispo de Cali; Iván
Márquez, segundo comandante das FARC, atualmente prófugo; padre Francisco de
Roux, superior dos jesuítas na Colômbia.
Eugenio Trujillo Villegas *
São muitos os contratempos com os quais se defronta o
arcebispo de Cali, Dom Dario de Jesus Monsalve, no exercício de sua
controvertida missão pastoral.
Ele não se destaca exatamente pelo zelo em defender as
ovelhas de seu rebanho dos muitos inimigos da Fé Católica — como é dever do
verdadeiro pastor, especialmente nestes tempos de confusão —, pois pouco ou
nada fala sobre a crise religiosa em que nós, católicos, vivemos.
Tampouco o preocupa a perda da fé de inúmeros católicos que
se afastam da Igreja para aderir aos diversos cultos cristãos, ou que se distanciam
dos sacramentos e se esquecem da doutrina santa e milenar da Igreja pelo
simples fato de não haver quem a ensine e proclame, ou porque os chamados a
fazê-lo a trocaram por um novo “evangelho” marxista.
As preocupações do arcebispo vão infelizmente por outros
caminhos bem diferentes daquele da verdadeira Igreja. Sua voz de pastor de
almas só ressoa com firmeza quando se trata de defender os inimigos ateus de
nossa Fé, os terroristas destruidores da Nação e os grupos subversivos que
semearam o ódio e o crime no seio da nossa sociedade enferma e decadente.
Há pouco, por ocasião dos 50 anos da morte do padre apóstata
Camilo Torres, o arcebispo Dom Monsalve não hesitou em pedir a sua canonização.
Esse sacerdote, juntamente com outros padres guerrilheiros, como Domingo Laín e
Manuel Pérez, foram os fundadores por volta de 1970 do ELN (Exército de
Libertação Nacional). Esta organização terrorista adquiriu importância
ultimamente porque, na falsa pacificação promovida pelo governo anterior, as
chamadas dissidências das FARC se uniram a ela.
Quando os Acordos com as FARC estavam sendo assinados, Dom
Monsalve não julgou nada melhor do que convidar a cúpula dessa organização para
um retiro espiritual dirigido por ele numa casa religiosa perto de Cali.
Ignoramos qual tenha sido a conveniência para o clero arquidiocesano ouvir as
façanhas terroristas de alguns dos piores criminosos da Nação. Pouco antes do
plebiscito através do qual a Colômbia recusou os Acordos com as FARC, o
arcebispo anunciou que não eram bons católicos aqueles que pensavam em votar
pelo NÃO, pois, segundo ele, aceitar a capitulação do País diante da extorsão
das FARC seria uma atitude de cristãos.
Mais recentemente, ele e o padre Francisco de Roux, superior
dos jesuítas na Colômbia, se tornaram intermediários de uma nefasta negociação
com o ELN, grupo que não dá qualquer sinal de querer a paz. Antes pelo
contrário, vem redobrando seus atentados e crimes, como o do carro-bomba que
fizeram explodir na Escola de Polícia em Bogotá em janeiro de 2019, com um
saldo de 21 cadetes covardemente assassinados e centenas de feridos.
Com uma total falta de senso moral, o inquieto arcebispo
voltou na semana passada a gerar polêmica, ao acusar o governo de promover um
genocídio contra o ELN. Isso obrigou o Núncio Apostólico, Dom Luis Mariano
Montemayor, a esclarecer que tal afirmação não era compartilhada pelos outros
bispos, nem pelo Papa Francisco e demais autoridades do Vaticano.
Uma amizade inexplicável
Como explicar uma
amizade tão estreita do arcebispo com os piores terroristas da Colômbia? Dom
Monsalve deve a este respeito uma muito necessária explicação ao País e a Cali.
Sobretudo porque seus devaneios com esses grupos terroristas são objeto da mais
profunda rejeição de seus fiéis diocesanos. E também porque esses grupos
subversivos perpetraram em passado recente os atropelos mais espantosos contra
os fiéis governados por Dom Monsalve. Este talvez se tenha esquecido de que seu
antecessor na Arquidiocese de Cali, Dom Isaías Duarte, no término da celebração
de uma missa por sequestrados em 2002, foi vilmente assassinado por pistoleiros
das FARC, num ato de barbárie com poucos antecedentes na história milenar da
Igreja.
Como se o anterior não bastasse, nessa mesma época o ELN
sequestrou cerca de 200 paroquianos que assistiam a uma missa na igreja La
María, em Cali. E, de forma quase simultânea, perpetrou análogo crime contra 50
pessoas que se encontravam num restaurante nos arredores dessa cidade. Ambas as
ações foram planejadas com a maior perfídia, tendo alguns dos sequestrados sido
friamente assassinados, enquanto outros permaneceram durante quase dois ano sem
cativeiro. Em 1989 o ELN sequestrou, torturou com requintes de maldade e depois
assassinou friamente o bispo diocesano de Arauca (Colômbia), Dom Jesús Emilio
Jaramillo.
Diante desses fatos aterrorizantes, jamais houve o menor
sinal de arrependimento, reparação ou pedido de perdão da parte das FARC e do
ELN. Tais crimes constituem para eles atos legítimos de uma guerra declarada
contra a nossa sociedade com o objetivo de nos impor o sistema marxista vigente
em Cuba e na Venezuela. Querem o desaparecimento de todas as liberdades e a
imersão da população colombiana na miséria e na opressão. É porventura esse o
evangelho pregado por Dom Monsalve? Essa é a fé que ele deseja nos impor, a
nós, habitantes de Cali? Sua opção preferencial é o evangelho do marxismo, da
miséria e do crime?
É o que parece. E é precisamente isso que não queremos, nós,
católicos desta importante arquidiocese que reúne cerca de quatro milhões de
pessoas entre os habitantes de Cali e das cidades próximas. Tampouco o querem
pessoas que vivem aqui e que, apesar de não serem católicas, se veem obrigadas
a padecer das atitudes insensatas do prelado.
Nestes tempos de confusão e de perda da Fé, as atitudes
depredadoras de Dom Monsalve geram escândalo entre seus fiéis. Elas são tão
impróprias a seu cargo, que começam a aparecer nas extremidades de sua batina
episcopal as garras e as presas do lobo que ele é, sem que tenha o menor
cuidado de ocultá-las. A realidade é que esse pastor, que deveria apascentar as
ovelhas de Jesus Cristo, se converteu no lobo que as dispersa e as conduz à
perdição.
Terrível e espantosa situação! Ela seria menos grave se
houvesse na Igreja quem exercesse a autoridade para colocar as coisas em ordem,
exigindo do Pastor que se comporte como tal. Ou, à falta disso, que o
destituísse do cargo e nomeasse outro que soubesse cumprir com o mandado de
Nosso Senhor Jesus Cristo a Pedro, o escolhido como Chefe dos Apóstolos: “Apascenta
as minhas ovelhas” (Jo 21, 16).
________________
(*) Diretor da Sociedad Colombiana Tradición y Acción.
Os poemas reunidos em Cantiga Grapiúna**, de Cyro de Mattos,
referem-se ao campo e às cidades da região do cacau, no sul da Bahia. Canto de
filho amantíssimo, cuja voz se ergue no alto louvor dos pioneiros, “homens
domando os ventos”, da mata, “corpo de medo”, das fazendas, “entre o nascer dos
verdes e cair dos maduros”, no louvor de todos os elementos desse chão tão rico
e de história tão dramática.
Com profunda emoção, Cyro de Mattos canta a cidade de Ilhéus
no seu centenário, no magnífico “Poemazul para Ilhéus”, “repetida de azul a
cidade anoitece...” Não menos belo é opoema “Itabunamada”, dedicado à cidade de Itabuna, “minha cidade de
metal”, como fala o poeta.
Cantiga
Grapiúna, pequeno grande livro de poemas, do conhecido ficcionista Cyro de
Mattos, detentor de vários prêmios brasileiros importantes, é canto construído
de ternura e solidariedade. Canto de amor de um escritor que carrega dentro de
si, para transformar em literatura, a epopeia e o mistério da terra grapiúna.
*Jorge Amado, romancista, in “Dois Livros de Cyro de
Mattos”, Revista FESPI, janeiro-dezembro 1983, Ilhéus, Bahia.
**Cantiga Grapiúna, Cyro de Mattos, Edições GRD, capa de
Renard, Rio de Janeiro, 1981.
Perguntaram-me sobre Itabuna e o
que disse me pareceu justo e certo. Itabuna – disse como numa crônica - é uma
ilha porque rodovias a cercam por todos os lados. Todos os lados, eu disse.
Menos um, que é o lado do Cachoeira, o rio. Lugar que não parou de crescer, no
chão baiano do cacau, desde que Severino do Amor Divino, no começo do século
passado, abriu o arruado no ventre da selva. E, se em vila não tardou a se
tornar, em 1910 já era cidade de tanta fama que servia comércio aos grapiúnas
que venciam as matas a fogo e a machado.
Um burgo de penetração, pois, que
nasceu como centro de entradas. E no qual não faltaram, com a graça de Deus,
índios camacãs e pataxós da valente raça aimoré. Burgo velho que hoje é cidade
grande, de município grande, numa terra grande.
Não muito longe da praia,
precisamente a trinta quilômetros de Ilhéus – onde o Cachoeira, sem barulho e
em paz, desemboca nos mares do Atlântico – em Itabuna ainda se pisa areia e no
ar se guarda um pouco de maresia. Mas, assim tão perto do oceano, seu povo
buscando Olivença que foi vila de fundação indígena bem no começo do século
XVIII, e buscando Olivença para os banhos de mar e pesca, de Itabuna se pode
dizer que, quando não uma cidade do agreste, pelo menos a porta litorânea para
os sertões.
E por isso mesmo, porque caminho
obrigatório dos brabos que chegaram para a conquista da selva e o plantio do
cacau – sergipanos, alemães, sírios, polacos – tem folclore particular e tão
cheio de heróis, e aventuras e guerras que até parece ter vindo do tempo
medieval. Uma região só, naqueles idos. E quando se separou de Ilhéus, virando
capital do município com autonomia de padre e juiz, também a sua saga adquiriu
independência de cultura e geografia. A selvagem saga do cacau, porém, com
muitos daqueles brabos tendo os nomes nas ruas, essa violenta saga parece de
séculos frente à cidade moderna que é Itabuna.
É preciso ver Itabuna hoje, em
plena trepidação, para que se saiba como vive uma cidade em plena expansão
econômica. A base municipal, com reflexo imediato no comércio, concentra o
pequeno mundo rural do interior – outras cidades, os distritos, os arruados e
as fazendas – em torno do que é de fato um enorme centro regional. Tudo o que
se produz tem aí efetivamente o seu mercado.
E o que se produz – coco ou piaçava,
dendê ou mandioca, principalmente acima de tudo o cacau – mas vem da boa terra
o que se produz. E, como é muito o que se produz, parte de tamanha riqueza ao
povo se devolve em educação. A rede escolar de tal modo se expandiu nos dois
graus de ensino que, somada com a de Ilhéus, exigiu mesmo uma Universidade.
Perto, nos limites dos dois municípios, fica essa Universidade, a Universidade
de Santa Cruz.
Tudo isso, pois, é Itabuna.
E, se a primeira impressão é de
muito trabalho, a última percepção é a de que apenas esse trabalho explica a
dimensão da cidade. Uma cidade de tamanha vida, em verdade, que, já
ultrapassando o velho rio Cachoeira e as rodovias que a cercam, vence a ilha. E
a vence, como qualquer um pode observar, para ganhar espaços.
Mas, apesar dos novos espaços
conquistados, canteiros de obras e parques ocupando-os para a indústria e mais
trabalho, Itabuna não permite que a urbanização a derrote contra a natureza. O
cacau, aliás, de tal maneira é uma agricultura permanente ajustada à natureza –
e não depredadora como o café ou o pastoreio desorientado – que a envolve como
um manto protetor. O que há de fato é um exemplo de como a urbanização pode se
expandir sem violentar a melhor vivência rural.
E, porque foi o que disse quando me
perguntaram sobre Itabuna, o que disse me pareceu justo e certo.
(CRÔNICA AVULSA)
Adonias Filho ...................
FONTE: ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES - Cyro de Mattos
..........
Adonias Filho - Quinto ocupante da Cadeira 21 da ABL, eleito
em 14 de janeiro de 1965, na sucessão de Álvaro Moreyra e recebido em 28 de
abril de 1965 pelo Acadêmico Jorge Amado. Recebeu a Acadêmica Rachel de Queiroz
e os Acadêmicos Otávio de Faria, Joracy Camargo e Mauro Mota.
Divorciado,
pai de três filhas, o ponta-esquerda Fernando Riela tornou-se um mito na
história do futebol amador de Itabuna. Foi disparado o melhor ponta-esquerda
que jogou no Campo da Desportiva. Para muitos que conheciam o futebol do Rio e
de São Paulo, com seus grandes times, Fernando Riela foi o melhor
ponta-esquerda do futebol brasileiro. Pode a afirmação soar como exagero, mas é
que naquela época os meios de comunicação eram outros, sem as condições de
hoje, não havia televisão, os jornais como O Globo e Estado de São Paulo, bem
como A Tarde, de Salvador, não chegavam a Itabuna. As rádios da capital não
eram ouvidas também na cidade. Escutava-se apenas a rádio Nacional, do Rio, um
pouco a Tupi e Tamoio.
Essa
ausência de comunicação, entre uma cidade do interior da Bahia e os centros
mais desenvolvidos do país, fazia com que vários craques do futebol de Itabuna
fossem desconhecidos pela imprensa do Rio de Janeiro, São Paulo e até certo
ponto de Salvador. Se fosse hoje, tempos de globalização do planeta, não há
dúvida que Fernando Riela estaria vestindo a camisa de um grande clube do
Brasil e até mesmo da Europa. Futebol de craque aquele inesquecível
ponta-esquerda tinha de sobra para isso. É sempre lembrado com admiração e
carinho pelos companheiros de geração e torcedores.
Começou muito
cedo, aos 14 anos de idade já jogava no time principal do Fluminense. Jogou
tambémno Flamengo, mas ao retornar para
o Fluminense, de onde nunca mais saiu, sagrou-se campeão em várias temporadas,
inclusive invicto em 1960. Para Fernando Riela, o melhor jogador de seu tempo
foi Santinho. Um jogador completo. Tombinha, Carlos Riela, Santinho e o goleiro
Luís Carlos, qualquer um deles poderia fazer carreira no futebol profissional
de hoje, em grandes clubes do Rio ou São Paulo, se tivesse sorte, observou o
craque. Fernando contou que Santinho, muito mais do que um amigo, era um de
seus ídolos. “Foi ele que me ensinou muita coisa, inclusive a ser uma pessoa
correta dentro e fora do campo.” Foi também a Santinho que o pai de Fernando
confiou quando ele passou a jogar pelo Fluminense, em sua primeira partida, em
Ipiaú, aos 14 anos de idade.
O time amador daquele tempo treinava na semana, com um
programa que devia ser seguido rigorosamente. Mas sempre tinha um ou outro
jogador que não se interessava em seguir as regras para que tivesse bom
desempenho no campo. Uma coisa era certa, ninguém bebia na semana que ia ter no
jogo de domingo. O próprio Fernando contou que ele mesmo só experimentou cerveja
pela primeira vez aos 18 anos de idade. “Um exemplo que o atleta de hoje
deveria seguir”, declarou, acrescentando que essa disciplina que o jogador
mantinha contribuiu para que a seleção do Itabuna fosse campeã do
Intermunicipal por seis anos consecutivos.
Ficou comovido quando se lembrou da seleção de Itabuna e dos
bons tempos do futebol amador. Com jogadores como Francisquinho, Zé Maria,
Nininho, Santinho e o goleiro Carlito, homens de ouro de um futebol igualmente
brilhante, nos anos de 1957 e 1958. Houve um período em que o campeonato amador
ficou parado no Campo da Desportiva. Fortes chuvas cortadas por relâmpagos e
trovoadas causaram grandes danos no estádio. Derrubaram a parte da
arquibancada, o muro e fizeram do campo um grosso lamaçal.
Durante anos, a
cidade ia ficando com ares sombrios pela tarde, sem os jogos de futebol que
aconteciam aos domingos no velho Campo da Desportiva. Até que o empresárioVeloso e o pecuarista Rebouças decidiram
recuperar o Campo da Desportiva, contando com a ajuda de alguns desportistas,
comerciantes e fazendeiros de cacau. A velha Desportiva voltou a funcionar como
o palco de grandes partidas de futebol pelo campeonato amador. Para soerguer o
interesse pelo futebol, times do Rio eram contratados para jogar na Desportiva
contra o Bahia de Salvador. Numa dessas partidas amistosas, o Bahia venceu de
dois a um o Flamengo. Veio primeiro o Fluminense, depois o Flamengo,América,Bangu,Vasco eBotafogo.
Fernando
criticou a construção do Centro de Cultura Adonias Filho no terreno onde
existia o Campo da Desportiva. A ideia do prefeito Ubaldo Dantas foi boa quando
quis dotar a cidade de um centro cultural, mas que deveria ser construído em
outro lugar. E o pior de tudo foi que prometeu construir um novo estádio para
times amadores e nunca isso aconteceu.Fernando ressaltou que o América, um time tradicional de Minas Gerais,
tem um estádio no centro de Belo Horizonte, um pouco maior do que era a
Desportiva, mas nem por isso foi demolido para dar lugar a um prédio com
finalidade cultural ou pública. Continuava até hoje no mesmo lugar, servindo
para jogos do campeonato juvenil mineiro, sendo preservado como patrimônio
esportivo da cidade.
Em sua época, Itabuna contava com mais de dez campos de
várzea. Ele citou, entre eles,os campos
no bairro Banco Raso, Fátima, Fuminho, Borboleta, o de Melquiades e o da Rua de
Palha, no distrito de Ferradas. Tinha campo até no cemitério. A garotada fazia
suas peladas nos terrenos baldios espalhados pela cidade, na beira do rio e na
praça Camacã, antes que se tornasse um jardim com o nome de Otávio Mangabeira.
Nessa época, as cidades de Ibicaraí, Buerarema, Camacã, Coaraci, Uruçuca e
Itajuípe não tinham o campeonato local. Ubaitaba, Ilhéus e Itabuna eram as
praças esportivas onde se praticava o futebol amador mais animado da região
cacaueira. Os jogadores que se revelavam como bons naquelas cidades
circunvizinhas sonhavam jogar um dia no futebol de Itabuna.
Fernando
também foi um dos fundadores do time profissional do Itabuna. Ele contou que,
quando a Federação Baiana de Futebol acabou com o Intermunicipal para
descentralizar o campeonato profissional, realizado somente com times de
Salvador, o futebol amador ficou meio sem graça. Perdeu o brilho e o espírito
competitivo entre os clubes da cidade. Ilhéus decidiu participar do campeonato
baiano de futebol profissional com três clubes: Flamengo, Colo-Colo e Vitória.
Foi aí que um grupo de desportistas locais reuniu-se na Cooperativa Rural e
fundou o Itabuna Esporte Clube como um time profissional,aproveitando a maioria dos jogadores da
seleção amadora.
Ele participou
desse grupo de fundadores, que teve o pecuarista Zelito Fontes como uma figura
importante para que a iniciativa se tornasse realidade. Esse dirigente de
futebol deu três mil cruzeiros para cobrir as despesas da inscrição do time na
federação baiana, em Salvador. Nove amadores da seleção amadora de Itabuna
foram jogar no Itabuna profissional A primeira partida foi contra o São
Cristóvão, vencida por um a zero. A segunda lotou o Campo da Desportiva. O
Itabuna empatou de dois a dois com o Galícia. A renda alcançou doze mil
cruzeiros, uma enorme soma de dinheiro na época.
Muitas pessoas
passam na vida e deixam boas lembranças nos outros, que jamais se apagam.
Algumas dessas pessoas permanecem em cada um de nós pela sua humildade ou
dedicação ao que fazem. Como esquecer Arnaldo, o roupeiro da seleção; Alfredo,
o enfermeiro, Gil Néri, o técnico, o médico John Leahy e Gerson Souza, o
Marechal da Vitória? – ele perguntou e ficou sem saber como responder sobre a
razão de que tudo na vida é uma passagem sem retorno.
Ele, o
craque inesquecível do futebol amador sul baiano, com suas investidas
fulminantes, dribles rápidos e desconcertantes, deixou-nos e sua querida
Itabuna no último dia 22, quarta-feira, e foi jogar futebol nos campos do
eterno. Quem o viu jogar, sente-se um torcedor privilegiado, nunca é demais
lembrar.
................
Cyro de Mattos, escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia
de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
O ministro José Luís Barroso, presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), tocou em ponto delicado, silenciado e óbvio: “Temos
preocupação que a facultatividade [do voto] possa produzir a deslegitimação dos
eleitos na possibilidade de um elevadíssimo índice de abstenção”. Depois,
aludiu a questão circunstancial: “Embora ache que deva se considerar, sim,
uma eventual anistia de multa, ou considerar uma justificação dos que não
compareceram por fundado temor de contração do vírus por se sentir grupo de
risco.” Em resumo, seria bom deixar de multar quem não apertar os botões
na urna em 15 e 29 de novembro próximos.
Vou tratar do óbvio silenciado, levantado para surpresa
minha por José Luís Barroso: o temor de o voto facultativo deslegitimar no
Brasil as eleições e os eleitos. De outro modo, que o povo, soberano
reverenciado na mitologia revolucionária, dê as costas para o processo
eleitoral, desvalorizando o mandato dos escolhidos. “Tô nem aí”, diria um
jovem. Repetindo o ministro para fazer de clareza solar a afirmação dele —
existe generalizado temor de que o voto facultativo possa deslegitimar os
eleitos pela possibilidade de elevadíssimo índice de abstenção.
Qual seria o índice de abstenção no Brasil com o fim do voto
obrigatório? Ninguém sabe. Meu palpite, 70-75% de abstenção em média,
considerando todas as eleições. Um pouco menor nas votações para presidente e
governadores, quem sabe prefeitos de grandes cidades, subiria a abstenção nas
legislativas.
Já tratei do assunto em vários artigos: não acho que o voto
facultativo deslegitime a eleição e desvalorize os eleitos entre nós — todo
mundo está cansado de saber que o voto vale pouco. À vera, expulsaria a fraude
política silenciada e puxaria para o proscênio a realidade, mesmo desagradável,
e a transparência. O voto obrigatório perpetua o embuste que cobre a
representação, faz aparentar interesse onde não há, tange para a urna sob pena
de punição ou distribuição de pequenos prêmios, multidões desinteressadas; todo
mundo fica obrigado a votar debaixo de vara; se não o fizer, multa, proibição
de praticar atos normais da vida civil. O soberano (o povo) é quase tratado
como marginal perigoso, que precisa de vigilância minuciosa. Veja o que
acontece ao desvalido eleitor se deixar de votar, exercício de um direito,
transmutado em dever penoso, e não justificar (alguns exemplos, não é tudo):
não pode se inscrever em concurso público; não receberá vencimentos,
remuneração em emprego público, autárquico ou de paraestatal, de empresa ligada
ao Estado; proibição de participar em concorrências públicas; proibição de tirar
passaporte, carteira de identidade, renovar matrícula em instituição
fiscalizada pelo Estado; proibição de empréstimo na Caixa Econômica Federal;
proibição de participar em ato para o qual se exija quitação do serviço militar
ou do imposto de renda. Em suma, amolação e atraso de vida para o pobre cidadão
desamparado. Retrocesso.
A maioria dos países adota o voto facultativo. Entre eles,
Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha, Espanha, Portugal.
Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem desvalorizar eleitos por causa da
abstenção. Entre a minoria que adota o voto obrigatório, além do Brasil,
figuram Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Egito.
Entre nós, o voto facultativo baratearia as eleições (o
custo proibitivo das campanhas é o maior fator de corrupção na política),
melhoraria a representação, traria maior proximidade entre eleitores e eleitos.
Apesar da evidência, o político brasileiro, direita, centro e esquerda, no
caso, deputados federais e senadores, em geral foge da aprovação do voto
facultativo como o diabo da cruz. Tem pavor de tratar do assunto. Quando
pressionado, dá evasivas; poucas vezes se diz pronto a aprovar qualquer PEC a
respeito. Há poucas exceções, às quais aqui homenageio. Não custa lembrar, voto
obrigatório (determinado pelo artigo 14, § 1º, I da Constituição) não é
cláusula pétrea. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto,
secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e
garantias individuais.
Sem dúvida, o voto facultativo traria eleitos com votações
pequenas, acabaria com muitos candidatos folclóricos, forçaria atitudes de
sobriedade e modéstia nas casas legislativas, silenciaria blá-blá-blás de
participação popular (inautêntica). Enfim, sanearia muita coisa. Mas é pregar no
deserto, para desgraça nossa existe sólida maioria na Câmara dos Deputados e no
Senado contrária à sua adoção, unida na preservação do entulho autoritário.
Panaceia? De modo nenhum, melhoraria algum tanto a representação política, já é
ganho ponderável, um avanço civilizatório, de que nos privam os eleitos (por
nós).
Viro a página. O ministro Barroso levantou tema de enorme
importância: a legitimidade. Deixou evidente que a legitimidade, mesmo em
situações perfeitamente legais, pode ser ofendida e é dever dos homens de bem
evitar a ofensa. Com o voto facultativo, opina o ministro, as eleições teriam
igual força constitucional e legal, mas faltaria legitimidade aos eleitos,
pouco sufragados. Para ele, situação grave a evitar. Ele tem razão num ponto
essencial, a legitimidade não se assenta exclusivamente na lei. Assenta-se
também, completo, em outras realidades; se olharmos para o Direito Natural,
negado por tantos, tem ali raízes. Concretamente, o que é legitimidade? Vai
aqui conceito caseiro, sujeito a bombardeios, é a conformidade com a ordem.
Ordem via de regra nascida da natureza, da História, do fato moralmente justo.
Qualquer situação, brotando da desordem, irrompe ilegítima. É útil recordar,
existem a legitimidade e a ilegitimidade da ordem social, das leis, das
condições sociais, das dinastias e não apenas das reais. Viver dentro da
legitimidade é das mais importantes condições para a consecução do bem comum.
E, por ricochete, dos bens individuais. É, contudo, assunto para outra ocasião.
Volto ao fulcro, não fujamos do óbvio. É notório, o eleitor
brasileiro, desinteressado de política e eleições, sem apetência pelos pratos
oferecidos, em sua boa maioria, não votaria se não fosse tangido, debaixo de
vara, para a urna. É inafastável a pouca representatividade dos eleitos, a mais
do claro fracasso democrático, fatos em nada ofuscados pela tentativa de tentar
tapar o sol com a peneira mediante a adoção do voto obrigatório. Haveria mais
legitimidade em nossos processos eleitorais com a adoção do voto facultativo; a
verdade e a transparência, hoje evitadas, iluminariam melhor o processo
eleitoral.
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo,
ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e
toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria
uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres
e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que
já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os
calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada Não falo sequer
da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a
cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu
no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos
gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a
mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão”
— equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: “Entra em cena o ator
João Caetano”; — ou então: “O ator Martinho cantará uma de suas melhores
árias”. Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a
festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no
chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da
orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do
mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse
dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas
ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e
deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro,
apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à
mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a
Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua
verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José — disse
a vizinha.
- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor,
que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica
naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça,
nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa
sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas
vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma
dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor.
Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As
primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril
entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens.
Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas
óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava
exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão.
Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo:
doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa
da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de
traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse
o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem ideia nem harmonia. Nos
últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça,
um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher,
que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito
bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela.
Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com
inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração
não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor
as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a
inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta,
nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de
papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o
tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas
conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a
sensação de felicidade extinta.
— Pai José — disse ele ao entrar —,
sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à
botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no
dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. E preciso dizer que ele padecia
do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que
o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.
— Para quê? - disse o mestre. — Isto
passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não
assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do
incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o
mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do
tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que
o boticário lhe dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas
consigo mesmo dizia que era o final.
“Está acabado”, pensava ele.
Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o
realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras
enganadoras:
— Isto não é nada; é preciso não pensar
em músicas...
Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre
um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava
desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo,
e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora,
fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma
na terra.
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque
isto, e se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que
lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou
que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe
preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos
de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos
presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
— Aqueles chegam — disse ele —, eu saio.
Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...
— Lá, lá, lá...
Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como
gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...
Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça
profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se
ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava
reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros
tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lados
casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos
ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para
baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo;
mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não
soavam.
— Lá... lá... lá...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do
papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido,
começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada
nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical,
justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre
ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
(Histórias sem data, 1884)
......
Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis),
jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio
de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em
29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira
de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de
vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome
do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a
presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de
Assis.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
Mateus.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “O
Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o
mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra
aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura
pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai,
vende todos os seus bens e compra aquela pérola. O Reino dos Céus é
ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. Quando
está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e recolhem os
peixes bons em cestos e jogam fora os que não prestam.
Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para
separar os homens maus dos que são justos, e lançarão os maus na
fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes.
Compreendestes tudo isso?” Eles responderam: “Sim”.
Então Jesus acrescentou: “Assim, pois, todo o mestre da
Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que
tira do seu tesouro coisas novas e velhas”.
“Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e
compra aquele campo” (Mt 13,44)
As parábolas são uma expressão de surpresa diante
da vida, que nos ultrapassa sempre, fazendo-nos capazes de pensar de um modo
diferente, captar o outro lado da realidade concreta e abrir-nos à dimensão da
transcendência. Dessa forma, elas recolhem e desvelam a vida real dos homens e
mulheres de cada tempo, movendo-os a assumir uma atitude mais aberta e mais
comprometida com a situação onde estão envolvidos. Isso significa acolher o dom
e a missão do Reino.
Em geral, as parábolas evocam experiências desconcertantes e
em quase todas elas se revela um dinamismo que rompe os esquemas “normais” da
vida, conduzindo o ouvinte (ou leitor) a um outro patamar, mais inspirador e
desafiante. Elas removem a vida, arrancando-a da “normose” (normalidade
doentia) e despertando outros recursos internos, que não foram ainda
mobilizados. Assim, esta mesma vida, começa a adquirir um outro sabor e um
outro sentido.
O Evangelho deste domingo recolhe duas pequenas parábolas
fulgurantes de Jesus: uma do tesouro e outra da pérola. São
relatos de uma enorme eficácia. Elas nos situam frente a uma experiência
desencadeante de vida, frente à surpresa de Deus, e assim expõem e põem em
marcha o caminho do Reino. Elas também nos situam diante da máxima riqueza e
exigem, ao mesmo tempo, o maior desprendimento.
São imagens que pedem radicalidade, ou seja, “vender tudo”
para adquirir o tesouro ou a pérola
.
Mas, quase não percebemos que há um passo prévio: a descoberta,
a iluminação interior, o ver clara-mente. Tanto o caminhante pelos campos como
o comerciante de pérolas, vendem tudo porque se convenceram de que o
investimento valia a pena.
Nestas duas pequenas parábolas, são apresentadas duas opções
para que cada qual possa identificar-se: ou é aquele que encontra
inesperadamente o tesouro e compra o campo, ou é aquele que tem a vocação de
comerciante e percorre o mundo procurando pérolas preciosas.
Uns serão aqueles que vão passear, deixando-se surpreender
pela vida e pelos acontecimentos, sem perder a capacidade de assombro, de
entusiasmo, de admiração. A pessoa de nossa parábola, ao ser encontrada pelo
tesouro, “sai” de si para vender quanto tem, procura o proprietário e compra
aquele campo. Mas também percebemos que faz tudo isso a partir de dentro, como
se houvesse conectado com algo pessoal e íntimo, que lhe permite “sair” do mais
profundo de si mesmo. E esse duplo movimento é carregado de uma plenificante
alegria.
Outros serão de mentalidade “comercial”: encantam-lhes a
aventura, a busca, a estratégia. Não nasceram para estar quietos, nem para se
conformar com boas e bonitas pérolas. O específico seu é continuar viajando e
buscando sempre a pérola maior até encontrá-la. E quando a encontram,
compram-na, e continuam buscando sempre. Porque isso é próprio de um
comerciante: apostar, comprar, vender, às vezes ganhar, outras vezes perder...
A pérola também sai ao encontro daquele que busca.
A decisão e o risco que assumiram, tanto o comerciante de
pérolas quanto o nosso caminhante pelos campos, mudaram suas vidas. O tesouro e
a pérola continuarão sendo valiosos, quer eles vivam com fidelidade e paixão ou
não. O que os transforma não é o tesouro ou a pérola em si, mas a atitude e a
decisão que tomam, atraídos por eles. É um tesouro e uma pérola que exigem uma
transformação do antigo e conhecido passado para um novo e desconhecido futuro.
Quando a pessoa se fecha às surpresas da vida, ou quando
deixa de esperar algo bom e precioso, ela se invalida para ser descobridora de
tesouros ou buscadora de pérolas.
Para deixar-nos encontrar pelo tesouro e pela pérola é
preciso deslumbrar-nos, fascinar-nos, encantar-nos, apaixonar-nos. Parece
simples, mas é muito aberto e evocador. “Aquilo pelo qual nos encantamos
mobiliza nossa imaginação e acaba por deixar sua marca em tudo”, dizia
Pe. Pedro Arrupe.
E como encantar-nos? Não é só questão de vontade, mas de
viver com os olhos abertos, atento à realidade, externa e interna, ser poroso
para que nos deixemos encontrar pela pérola preciosa e pelo tesouro escondido;
diante deste surpresa, não poderemos deixar de ficar fascinados.
E então, sim, estaremos dispostos a queimar barcos, vender
tudo, dar o salto. Talvez nosso maior problema é que, na realidade, o que nos
interessa são nossas posses, poder, objetos, apegos à auto-imagem e não
descobrimos ainda o tesouro escondido e a pérola fina, que não estão distantes
de nós; pelo contrário, encontram-se no mais profundo de nós mesmos.
“Descer” ao chão de nossa interioridade é a
oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o
reino interior, para encontrar a riqueza interior e assim experimentar a
transformação. O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela
“descida” aos campos de nosso coração. Isso requer coragem para
passar por todas as regiões, mesmo as sombrias, e chegar ao mais profundo. Mas
essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos,
ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos
levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente originais
e criativos.
É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos
uma nova riqueza para a nossa vida; é “descendo” que
poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em
direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele
nos é oferecido como dom. Não basta falar de “pedra preciosa”, é
também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso
coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim
como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos.
Cada um de nós possui uma fonte inesgotável de
qualidades-habilidades; podemos dizer: “somos um presente”, um
valor para os outros. A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa
superficial é aquela que se confunde com suas ideias, coisas... A pessoa do “eu
profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa
vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
É no coração que existem, em abundância, os
aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas
tendências. Aí se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira
diferente, dando a cada um, uma fisionomia própria, um caráter único.
Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos
valores, das ideias-força... que formam o eixo da nossa existência, o melhor de
nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização, o positivo que nos
solicita continuamente a nos tornar o que devemos ser.
A força da transformação, portanto, nós não a
encontramos na superfície ou distante de nós, mas sim, nas profundezas. Para
ter acesso à riqueza no interior de nós mesmos, podemos imitar, simbolicamente,
os hábitos dos pescadores de certo atol do Pacífico. Eles vivem pauperrimamente
sobre uma terra desprovida de vegetação e açoitada pelos ventos; mas o fundo do
seu mar é muito rico em pérolas.
Desenvolveram aí aptidões excepcionais para o mergulho;
descem sem qualquer aparelho, ao fundo do mar, localizam as pérolas,
arrancam-nas, trazem-nas para a superfície, atiram-nas no barco, para depois
mergulharem de novo.
Este é o caminho da verdadeira espiritualidade: “descer” até
o fundo, mergulhar no oceano interior onde estão escondidas as pérolas que
dão significado e sentido às nossas vidas.
Encantados com a descoberta, trazê-las à tona e colocá-las a
serviço dos outros, multiplicando-as.
Textos bíblicos: Mt. 13,44-52
Na oração: Para realizar-te e desenvolver toda a
tua potencialidade, busca, na oração, cavar mais profundamente,
até atingir as raízes de teu ser, o núcleo original de tua
personalidade.
- Olha no profundo de teu coração, olha no íntimo de ti
mesmo, e pergunta: “tenho um coração que deseja o maior (“magis”) ou um coração
adormecido pelas coisas? Meu coração conserva a inquietude da busca ou deixa-se
sufocar pelos apegos, que acabam por atrofiar-me?”