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sexta-feira, 31 de julho de 2020

O INTRÉPIDO QUE RASGOU A MULTA - Ignácio de Loyola Brandão



J
e donne des aulas na Sorbonne. Foi o que disse um desembargador ao rasgar a multa na cara do guarda. Que orgulho deve ter sentido dessa coragem. Tornou-se homem, desafiador. Levitou. A frase em francês, por ele dita ofenderia os ouvidos de Fanny Marracini, que morreu quase aos 100 anos, depois de ter ensinado dezenas de gerações de araraquarenses a ler e a falar francês. Mon Dieu! exclamaria horrorizada, porque amava como poucos a língua. Nunca me esqueço do primeiro dia em que entrou na classe, nos levantamos e ela cumprimentou: “Bom dia, meus alunos”. Seguido por: “Esta é a primeira e última vez que vocês ouvem falar português em minhas aulas”. Emendou: “Bonjour mes enfants”. 

Realmente, dali para a frente só ouvimos francês e aprendemos, muitos ainda o usam como segunda língua. Pessoas como Sidney Sanchez, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, Zé Celso que leu L’Être et le Neant no original, a Luis Roberto Salinas Fortes, que traduziu Sartre e se tornou professor de filosofia de primeira na USP ou o irmão dele, Hugo Fortes, advogado de nomeada que leu Balzac inteiro aos 20 anos também no original, ou Celso Lafer, o humanista e diplomata.

Fanny ao ouvir a frase em suposto francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não. Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem sabe no ugarítico?

Lembrei-me de uma história acontecida comigo e com o jornalista Humberto Pereira, o criador dessa joia que é o Globo Rural. Estávamos em Paris, décadas atrás, e ele me viu saindo da Sorbonne, nas proximidades da Rue Cujas, onde eu estava hospedado. “O que estava fazendo aí?”, ele indagou. Sorri: “Ora, estudo aqui, pós-graduação”. Mostrei três livros comprados na Livraria LGDJ, ali vizinha, especialista em obras jurídicas, a pedido de meu amigo Fernando Passos, advogado de minha terra. Pereira abriu os olhos deste tamanho, mas entendeu, me fez um sinal: você não perde por esperar. Não revelei que vi uma porta por onde alunos entravam, fui atrás, queria ver por dentro escola tão famosa. Andei um pouco, fui interpelado por um bedel e posto para fora. 

Na mesma viagem, cheguei a Milão e Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?

O que me incomodou foi um homenzinho que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto. Quem não sabe ler e escrever.

Fiquei intrigado. Como pode ser analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei. Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender. Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto? 

Naquela hora me veio velhíssima história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente, que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante dignidade. 

O Estado de S. Paulo, 24/07/2020


https://www.academia.org.br/artigos/o-intrepido-que-rasgou-multa

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.


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CYRO DE MATTOS PUBLICA LIVRO DE PROSA E POESIA DE AUTORES DO SUL DA BAHIA


                        Cyro de Mattos Publica

Livro de Prosa e Poesia

De Autores do Sul da Bahia

         

          Membro das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna,  publicado também  no exterior, Doutor Honoris Causa da UESC, autor de extensa obra, de vários gêneros, o escritor e poeta Cyro de Mattos acaba de publicar pela editora baiana Via Litterarum o livro “Poesia e Prosa no Sul da Bahia", com capa do consagrado desenhista Juarez  Paraíso,  também membro da Academia de Letras da Bahia. Na obra, estuda  autores  que enfocam em seus textos a  civilização cacaueira ou mantém com ela  laços de origem,  sintonizados na raiz com  um contexto de natureza  cultural singular e importância histórica. 

           Segundo Cyro de Mattos, esse livro de ensaios, alguns escritos ao longo do tempo,  reúne  nomes consagrados que  ultrapassaram as fronteiras nacionais, outros que  são reconhecidos em nível nacional e alguns que  são retirados   dos limites de seu município, onde se encontram,  por certas circunstâncias,  fora de uma circulação literária  mais abrangente, o que nem sempre parece justo.  A obra  funciona como testamento crítico valioso  sobre a produção  de uma região poderosa no campo das letras,  que    vem contribuindo para a expansão do acervo cultural e literário da Bahia e até mesmo do Brasil.

            No alentado volume de 350 páginas, o escritor e poeta  estuda obras de 47 autores sulinos  do  Estado da Bahia, assim  elencados:

           I – PROSA. De autor adulto  para infantojuvenil, Adonias Filho;  precursor e pré-modernista, Afrânio Peixoto; Emoção do contista, Aleilton Fonseca; Absurdo e galhofa, Augusto Mário Ferreira; Nascimento do Brasil, Aracyldo Marques; Romancista do Vale do Rio de Contas, Clodomir Xavier de Oliveira; Legado no labirinto, Elvira Foeppel;  Humor do  novelista,  Euclides Neto; Relato do mato virgem, (Ferdinand Maximiliano von Habsburg; Mestre da crônica, Fernando Leite Mendes; No mar de Azov, Hélio Pólvora; Chamado do mar, James Amado; Prosador grandão e poeta , Jorge Amado; Dramaturgo exemplar , Jorge Araújo; Contista de Água Preta, Jorge Medauar; Tramas na adolescência, Lilia Gramacho; Caminhos de Adonias Filho, Ludmila Bertié;  Mares do Sul, Marcos Santarrita; Cronista na província, Manoel Lins;  Dobras do  tempo,  Margarida Fahel; Ilógico da vida, Naomar de Almeida Filho; Historinhas e mundinhos, Odilon Pinto; Retrato do mundo real, Ricardo Cruz; Testamento lírico, Ritinha Dantas; Narrador de itan, Ruy Póvoas;  Outro precursor , Sabóia Ribeiro, Atritos e Conflitos, Sonia Coutinho.

          II – POESIA. Colhedor de haicai, Abel Pereira; Tanta dor, poesia,  Adelmo Oliveira; Rosa com agruras, Ariston Caldas; Rio das solidões, Carlos Roberto Santos Araújo; Musa delicada, Conceição Nunes Brook; Resistência santa, Firmino Rocha; Poética enorme, Florisvaldo Matos; O pássaro do poeta, Hélio Nunes;  Casa onde habitamos, Heloísa Prazeres; Ditado do poeta, Ildásio Tavares; Lira descuidada, Iolanda Costa; Do jeito que o povo gosta, Minelvino; Cacau em versos, Oscar Benício dos Santos;  Soneto e cordel, Piligra; O tempo na pulseira, Renato Prata; Poesia com alforrias , Rita Santana; Singular e plural, Sosígenes Costa; Questões profundas, Telmo Padilha; Canto contido, Valdelice Soares Pinheiro; Discurso existencialista, Walker Luna.


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quinta-feira, 30 de julho de 2020

COISAS ANTIGAS QUE SÃO BOAS – Vários autores


 

 Os velhos amigos para conversar.

 A velha lenha para aquecer.

 Velhos vinhos para beber.

 Os livros antigos para ler.

Émile A. Faguet

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O segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão.

Gabriel Garcia Marques

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Envelhecer é como escalar uma grande montanha: enquanto escala, as forças diminuem, mas o olhar é mais livre, a visão mais ampla e mais serena.

Ingmar Bergman

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Os primeiros quarenta anos de vida nos dão o texto; os próximos trinta, o comentário.

Arthur Schopenhauer

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Os velhos desconfiam dos jovens porque já foram jovens.

William Shakespeare

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Quando me dizem que estou velho demais para fazer alguma coisa, tento fazer mais rápido.

Pablo Picasso

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A arte do envelhecimento é a arte de preservar alguma esperança.

André Maurois

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As rugas do espírito nos fazem mais velhos que os do rosto.

Michel Eugene de le Montaigne

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O jovem conhece as regras, mas o velho conhece as exceções.

Oliver Wendell Holmes

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Na juventude aprendemos, na velhice entendemos.

Marie von Ebner Eschenbach

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A maturidade do homem é ter recuperado a serenidade com a qual brincávamos quando éramos crianças.

Frederich Nietzsche

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O velho não pode fazer o que um jovem faz; mas faz melhor.

Cícero

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Leva dois anos para aprender a falar e sessenta para aprender a calar a boca.

Ernest Hemingway

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As árvores mais antigas dão os frutos mais doces.

Provérbio alemão

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A velhice tira o que herdamos e nos dá o que merecemos.

Gerald Brenan

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Um homem não é velho até que comece a reclamar em vez de sonhar.

John Barrymore

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Velho é aquele que considera que sua tarefa está cumprida. Aquele que se levanta sem metas e se deita sem esperança.

Autor desconhecido

 

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quarta-feira, 29 de julho de 2020

UM ARCEBISPO CAPAZ DE EMPUNHAR ARMAS – Eugenio Trujillo Villegas

28 de julho de 2020

Da esquerda para a direita: Joaquín Gómez, chefe dos negócios de Narcotráfico das FARC; Dom Darío Monsalve, Arcebispo de Cali; Iván Márquez, segundo comandante das FARC, atualmente prófugo; padre Francisco de Roux, superior dos jesuítas na Colômbia.

 Eugenio Trujillo Villegas *

 

São muitos os contratempos com os quais se defronta o arcebispo de Cali, Dom Dario de Jesus Monsalve, no exercício de sua controvertida missão pastoral.

Ele não se destaca exatamente pelo zelo em defender as ovelhas de seu rebanho dos muitos inimigos da Fé Católica — como é dever do verdadeiro pastor, especialmente nestes tempos de confusão —, pois pouco ou nada fala sobre a crise religiosa em que nós, católicos, vivemos.

Tampouco o preocupa a perda da fé de inúmeros católicos que se afastam da Igreja para aderir aos diversos cultos cristãos, ou que se distanciam dos sacramentos e se esquecem da doutrina santa e milenar da Igreja pelo simples fato de não haver quem a ensine e proclame, ou porque os chamados a fazê-lo a trocaram por um novo “evangelho” marxista.

As preocupações do arcebispo vão infelizmente por outros caminhos bem diferentes daquele da verdadeira Igreja. Sua voz de pastor de almas só ressoa com firmeza quando se trata de defender os inimigos ateus de nossa Fé, os terroristas destruidores da Nação e os grupos subversivos que semearam o ódio e o crime no seio da nossa sociedade enferma e decadente.

Há pouco, por ocasião dos 50 anos da morte do padre apóstata Camilo Torres, o arcebispo Dom Monsalve não hesitou em pedir a sua canonização. Esse sacerdote, juntamente com outros padres guerrilheiros, como Domingo Laín e Manuel Pérez, foram os fundadores por volta de 1970 do ELN (Exército de Libertação Nacional). Esta organização terrorista adquiriu importância ultimamente porque, na falsa pacificação promovida pelo governo anterior, as chamadas dissidências das FARC se uniram a ela.

Quando os Acordos com as FARC estavam sendo assinados, Dom Monsalve não julgou nada melhor do que convidar a cúpula dessa organização para um retiro espiritual dirigido por ele numa casa religiosa perto de Cali. Ignoramos qual tenha sido a conveniência para o clero arquidiocesano ouvir as façanhas terroristas de alguns dos piores criminosos da Nação. Pouco antes do plebiscito através do qual a Colômbia recusou os Acordos com as FARC, o arcebispo anunciou que não eram bons católicos aqueles que pensavam em votar pelo NÃO, pois, segundo ele, aceitar a capitulação do País diante da extorsão das FARC seria uma atitude de cristãos.

Mais recentemente, ele e o padre Francisco de Roux, superior dos jesuítas na Colômbia, se tornaram intermediários de uma nefasta negociação com o ELN, grupo que não dá qualquer sinal de querer a paz. Antes pelo contrário, vem redobrando seus atentados e crimes, como o do carro-bomba que fizeram explodir na Escola de Polícia em Bogotá em janeiro de 2019, com um saldo de 21 cadetes covardemente assassinados e centenas de feridos.

Com uma total falta de senso moral, o inquieto arcebispo voltou na semana passada a gerar polêmica, ao acusar o governo de promover um genocídio contra o ELN. Isso obrigou o Núncio Apostólico, Dom Luis Mariano Montemayor, a esclarecer que tal afirmação não era compartilhada pelos outros bispos, nem pelo Papa Francisco e demais autoridades do Vaticano.

 Uma amizade inexplicável

        Como explicar uma amizade tão estreita do arcebispo com os piores terroristas da Colômbia? Dom Monsalve deve a este respeito uma muito necessária explicação ao País e a Cali. Sobretudo porque seus devaneios com esses grupos terroristas são objeto da mais profunda rejeição de seus fiéis diocesanos. E também porque esses grupos subversivos perpetraram em passado recente os atropelos mais espantosos contra os fiéis governados por Dom Monsalve. Este talvez se tenha esquecido de que seu antecessor na Arquidiocese de Cali, Dom Isaías Duarte, no término da celebração de uma missa por sequestrados em 2002, foi vilmente assassinado por pistoleiros das FARC, num ato de barbárie com poucos antecedentes na história milenar da Igreja.

Como se o anterior não bastasse, nessa mesma época o ELN sequestrou cerca de 200 paroquianos que assistiam a uma missa na igreja La María, em Cali. E, de forma quase simultânea, perpetrou análogo crime contra 50 pessoas que se encontravam num restaurante nos arredores dessa cidade. Ambas as ações foram planejadas com a maior perfídia, tendo alguns dos sequestrados sido friamente assassinados, enquanto outros permaneceram durante quase dois ano sem cativeiro. Em 1989 o ELN sequestrou, torturou com requintes de maldade e depois assassinou friamente o bispo diocesano de Arauca (Colômbia), Dom Jesús Emilio Jaramillo.

Diante desses fatos aterrorizantes, jamais houve o menor sinal de arrependimento, reparação ou pedido de perdão da parte das FARC e do ELN. Tais crimes constituem para eles atos legítimos de uma guerra declarada contra a nossa sociedade com o objetivo de nos impor o sistema marxista vigente em Cuba e na Venezuela. Querem o desaparecimento de todas as liberdades e a imersão da população colombiana na miséria e na opressão. É porventura esse o evangelho pregado por Dom Monsalve? Essa é a fé que ele deseja nos impor, a nós, habitantes de Cali? Sua opção preferencial é o evangelho do marxismo, da miséria e do crime?

É o que parece. E é precisamente isso que não queremos, nós, católicos desta importante arquidiocese que reúne cerca de quatro milhões de pessoas entre os habitantes de Cali e das cidades próximas. Tampouco o querem pessoas que vivem aqui e que, apesar de não serem católicas, se veem obrigadas a padecer das atitudes insensatas do prelado.

Nestes tempos de confusão e de perda da Fé, as atitudes depredadoras de Dom Monsalve geram escândalo entre seus fiéis. Elas são tão impróprias a seu cargo, que começam a aparecer nas extremidades de sua batina episcopal as garras e as presas do lobo que ele é, sem que tenha o menor cuidado de ocultá-las. A realidade é que esse pastor, que deveria apascentar as ovelhas de Jesus Cristo, se converteu no lobo que as dispersa e as conduz à perdição.

Terrível e espantosa situação! Ela seria menos grave se houvesse na Igreja quem exercesse a autoridade para colocar as coisas em ordem, exigindo do Pastor que se comporte como tal. Ou, à falta disso, que o destituísse do cargo e nomeasse outro que soubesse cumprir com o mandado de Nosso Senhor Jesus Cristo a Pedro, o escolhido como Chefe dos Apóstolos: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21, 16).

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(*) Diretor da Sociedad Colombiana Tradición y Acción.

http://www.abim.inf.br/um-arcebispo-capaz-de-empunhar-armas/


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terça-feira, 28 de julho de 2020

CANTIGA GRAPIÚNA, por Jorge Amado


Cantiga Grapiúna

Jorge Amado*

 

Os poemas reunidos em Cantiga Grapiúna**, de Cyro de Mattos, referem-se ao campo e às cidades da região do cacau, no sul da Bahia. Canto de filho amantíssimo, cuja voz se ergue no alto louvor dos pioneiros, “homens domando os ventos”, da mata, “corpo de medo”, das fazendas, “entre o nascer dos verdes e cair dos maduros”, no louvor de todos os elementos desse chão tão rico e de história tão dramática.

Com profunda emoção, Cyro de Mattos canta a cidade de Ilhéus no seu centenário, no magnífico “Poemazul para Ilhéus”, “repetida de azul a cidade anoitece...” Não menos belo é o  poema “Itabunamada”, dedicado à cidade de Itabuna, “minha cidade de metal”, como fala o poeta.

 Cantiga Grapiúna, pequeno grande livro de poemas, do conhecido ficcionista Cyro de Mattos, detentor de vários prêmios brasileiros importantes, é canto construído de ternura e solidariedade. Canto de amor de um escritor que carrega dentro de si, para transformar em literatura, a epopeia e o mistério da terra grapiúna.

 

*Jorge Amado, romancista, in “Dois Livros de Cyro de Mattos”, Revista FESPI, janeiro-dezembro 1983, Ilhéus, Bahia.

**Cantiga Grapiúna, Cyro de Mattos, Edições GRD, capa de Renard, Rio de Janeiro, 1981.


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UM BURGO DE PENETRAÇÃO – Adonias Filho


               Um Burgo de Penetração
Adonias Filho

            Perguntaram-me sobre Itabuna e o que disse me pareceu justo e certo. Itabuna – disse como numa crônica - é uma ilha porque rodovias a cercam por todos os lados. Todos os lados, eu disse. Menos um, que é o lado do Cachoeira, o rio. Lugar que não parou de crescer, no chão baiano do cacau, desde que Severino do Amor Divino, no começo do século passado, abriu o arruado no ventre da selva. E, se em vila não tardou a se tornar, em 1910 já era cidade de tanta fama que servia comércio aos grapiúnas que venciam as matas a fogo e a machado.

            Um burgo de penetração, pois, que nasceu como centro de entradas. E no qual não faltaram, com a graça de Deus, índios camacãs e pataxós da valente raça aimoré. Burgo velho que hoje é cidade grande, de município grande, numa terra grande.

            Não muito longe da praia, precisamente a trinta quilômetros de Ilhéus – onde o Cachoeira, sem barulho e em paz, desemboca nos mares do Atlântico – em Itabuna ainda se pisa areia e no ar se guarda um pouco de maresia. Mas, assim tão perto do oceano, seu povo buscando Olivença que foi vila de fundação indígena bem no começo do século XVIII, e buscando Olivença para os banhos de mar e pesca, de Itabuna se pode dizer que, quando não uma cidade do agreste, pelo menos a porta litorânea para os sertões.

            E por isso mesmo, porque caminho obrigatório dos brabos que chegaram para a conquista da selva e o plantio do cacau – sergipanos, alemães, sírios, polacos – tem folclore particular e tão cheio de heróis, e aventuras e guerras que até parece ter vindo do tempo medieval. Uma região só, naqueles idos. E quando se separou de Ilhéus, virando capital do município com autonomia de padre e juiz, também a sua saga adquiriu independência de cultura e geografia. A selvagem saga do cacau, porém, com muitos daqueles brabos tendo os nomes nas ruas, essa violenta saga parece de séculos frente à cidade moderna que é Itabuna.

            É preciso ver Itabuna hoje, em plena trepidação, para que se saiba como vive uma cidade em plena expansão econômica. A base municipal, com reflexo imediato no comércio, concentra o pequeno mundo rural do interior – outras cidades, os distritos, os arruados e as fazendas – em torno do que é de fato um enorme centro regional. Tudo o que se produz tem aí efetivamente o seu mercado.

          E o que se produz – coco ou piaçava, dendê ou mandioca, principalmente acima de tudo o cacau – mas vem da boa terra o que se produz. E, como é muito o que se produz, parte de tamanha riqueza ao povo se devolve em educação. A rede escolar de tal modo se expandiu nos dois graus de ensino que, somada com a de Ilhéus, exigiu mesmo uma Universidade. Perto, nos limites dos dois municípios, fica essa Universidade, a Universidade de Santa Cruz.

            Tudo isso, pois, é Itabuna.

            E, se a primeira impressão é de muito trabalho, a última percepção é a de que apenas esse trabalho explica a dimensão da cidade. Uma cidade de tamanha vida, em verdade, que, já ultrapassando o velho rio Cachoeira e as rodovias que a cercam, vence a ilha. E a vence, como qualquer um pode observar, para ganhar espaços.

            Mas, apesar dos novos espaços conquistados, canteiros de obras e parques ocupando-os para a indústria e mais trabalho, Itabuna não permite que a urbanização a derrote contra a natureza. O cacau, aliás, de tal maneira é uma agricultura permanente ajustada à natureza – e não depredadora como o café ou o pastoreio desorientado – que a envolve como um manto protetor. O que há de fato é um exemplo de como a urbanização pode se expandir sem violentar a melhor vivência rural.

            E, porque foi o que disse quando me perguntaram sobre Itabuna, o que disse me pareceu justo e certo.


   (CRÔNICA AVULSA)
Adonias Filho
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FONTE: ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES - Cyro de Mattos
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Adonias Filho - Quinto ocupante da Cadeira 21 da ABL, eleito em 14 de janeiro de 1965, na sucessão de Álvaro Moreyra e recebido em 28 de abril de 1965 pelo Acadêmico Jorge Amado. Recebeu a Acadêmica Rachel de Queiroz e os Acadêmicos Otávio de Faria, Joracy Camargo e Mauro Mota.

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FERNANDO RIELA: UM MITO NA PONTA-ESQUERDA – Cyro de Mattos


Fernando Riela: um mito na ponta-esquerda
                                        Cyro de Mattos

           
             Divorciado, pai de três filhas, o ponta-esquerda Fernando Riela tornou-se um mito na história do futebol amador de Itabuna. Foi disparado o melhor ponta-esquerda que jogou no Campo da Desportiva. Para muitos que conheciam o futebol do Rio e de São Paulo, com seus grandes times, Fernando Riela foi o melhor ponta-esquerda do futebol brasileiro. Pode a afirmação soar como exagero, mas é que naquela época os meios de comunicação eram outros, sem as condições de hoje, não havia televisão, os jornais como O Globo e Estado de São Paulo, bem como A Tarde, de Salvador, não chegavam a Itabuna. As rádios da capital não eram ouvidas também na cidade. Escutava-se apenas a rádio Nacional, do Rio, um pouco a Tupi e Tamoio.

            Essa ausência de comunicação, entre uma cidade do interior da Bahia e os centros mais desenvolvidos do país, fazia com que vários craques do futebol de Itabuna fossem desconhecidos pela imprensa do Rio de Janeiro, São Paulo e até certo ponto de Salvador. Se fosse hoje, tempos de globalização do planeta, não há dúvida que Fernando Riela estaria vestindo a camisa de um grande clube do Brasil e até mesmo da Europa. Futebol de craque aquele inesquecível ponta-esquerda tinha de sobra para isso. É sempre lembrado com admiração e carinho pelos companheiros de geração e torcedores.

            Começou muito cedo, aos 14 anos de idade já jogava no time principal do Fluminense. Jogou também  no Flamengo, mas ao retornar para o Fluminense, de onde nunca mais saiu, sagrou-se campeão em várias temporadas, inclusive invicto em 1960. Para Fernando Riela, o melhor jogador de seu tempo foi Santinho. Um jogador completo. Tombinha, Carlos Riela, Santinho e o goleiro Luís Carlos, qualquer um deles poderia fazer carreira no futebol profissional de hoje, em grandes clubes do Rio ou São Paulo, se tivesse sorte, observou o craque. Fernando contou que Santinho, muito mais do que um amigo, era um de seus ídolos. “Foi ele que me ensinou muita coisa, inclusive a ser uma pessoa correta dentro e fora do campo.” Foi também a Santinho que o pai de Fernando confiou quando ele passou a jogar pelo Fluminense, em sua primeira partida, em Ipiaú, aos 14 anos de idade.

            O time amador daquele tempo treinava na semana, com um programa que devia ser seguido rigorosamente. Mas sempre tinha um ou outro jogador que não se interessava em seguir as regras para que tivesse bom desempenho no campo. Uma coisa era certa, ninguém bebia na semana que ia ter no jogo de domingo. O próprio Fernando contou que ele mesmo só experimentou cerveja pela primeira vez aos 18 anos de idade. “Um exemplo que o atleta de hoje deveria seguir”, declarou, acrescentando que essa disciplina que o jogador mantinha contribuiu para que a seleção do Itabuna fosse campeã do Intermunicipal por seis anos consecutivos.

           Ficou comovido quando se lembrou da seleção de Itabuna e dos bons tempos do futebol amador. Com jogadores como Francisquinho, Zé Maria, Nininho, Santinho e o goleiro Carlito, homens de ouro de um futebol igualmente brilhante, nos anos de 1957 e 1958. Houve um período em que o campeonato amador ficou parado no Campo da Desportiva. Fortes chuvas cortadas por relâmpagos e trovoadas causaram grandes danos no estádio. Derrubaram a parte da arquibancada, o muro e fizeram do campo um grosso lamaçal.

           Durante anos, a cidade ia ficando com ares sombrios pela tarde, sem os jogos de futebol que aconteciam aos domingos no velho Campo da Desportiva. Até que o empresário  Veloso e o pecuarista Rebouças decidiram recuperar o Campo da Desportiva, contando com a ajuda de alguns desportistas, comerciantes e fazendeiros de cacau. A velha Desportiva voltou a funcionar como o palco de grandes partidas de futebol pelo campeonato amador. Para soerguer o interesse pelo futebol, times do Rio eram contratados para jogar na Desportiva contra o Bahia de Salvador. Numa dessas partidas amistosas, o Bahia venceu de dois a um o Flamengo. Veio primeiro o Fluminense, depois o Flamengo,  América,  Bangu,  Vasco e  Botafogo.

            Fernando criticou a construção do Centro de Cultura Adonias Filho no terreno onde existia o Campo da Desportiva. A ideia do prefeito Ubaldo Dantas foi boa quando quis dotar a cidade de um centro cultural, mas que deveria ser construído em outro lugar. E o pior de tudo foi que prometeu construir um novo estádio para times amadores e nunca isso aconteceu.  Fernando ressaltou que o América, um time tradicional de Minas Gerais, tem um estádio no centro de Belo Horizonte, um pouco maior do que era a Desportiva, mas nem por isso foi demolido para dar lugar a um prédio com finalidade cultural ou pública. Continuava até hoje no mesmo lugar, servindo para jogos do campeonato juvenil mineiro, sendo preservado como patrimônio esportivo da cidade.

           Em sua época, Itabuna contava com mais de dez campos de várzea. Ele citou, entre eles,  os campos no bairro Banco Raso, Fátima, Fuminho, Borboleta, o de Melquiades e o da Rua de Palha, no distrito de Ferradas. Tinha campo até no cemitério. A garotada fazia suas peladas nos terrenos baldios espalhados pela cidade, na beira do rio e na praça Camacã, antes que se tornasse um jardim com o nome de Otávio Mangabeira. Nessa época, as cidades de Ibicaraí, Buerarema, Camacã, Coaraci, Uruçuca e Itajuípe não tinham o campeonato local. Ubaitaba, Ilhéus e Itabuna eram as praças esportivas onde se praticava o futebol amador mais animado da região cacaueira. Os jogadores que se revelavam como bons naquelas cidades circunvizinhas sonhavam jogar um dia no futebol de Itabuna.

            Fernando também foi um dos fundadores do time profissional do Itabuna. Ele contou que, quando a Federação Baiana de Futebol acabou com o Intermunicipal para descentralizar o campeonato profissional, realizado somente com times de Salvador, o futebol amador ficou meio sem graça. Perdeu o brilho e o espírito competitivo entre os clubes da cidade. Ilhéus decidiu participar do campeonato baiano de futebol profissional com três clubes: Flamengo, Colo-Colo e Vitória. Foi aí que um grupo de desportistas locais reuniu-se na Cooperativa Rural e fundou o Itabuna Esporte Clube como um time profissional,  aproveitando a maioria dos jogadores da seleção amadora.

            Ele participou desse grupo de fundadores, que teve o pecuarista Zelito Fontes como uma figura importante para que a iniciativa se tornasse realidade. Esse dirigente de futebol deu três mil cruzeiros para cobrir as despesas da inscrição do time na federação baiana, em Salvador. Nove amadores da seleção amadora de Itabuna foram jogar no Itabuna profissional A primeira partida foi contra o São Cristóvão, vencida por um a zero. A segunda lotou o Campo da Desportiva. O Itabuna empatou de dois a dois com o Galícia. A renda alcançou doze mil cruzeiros, uma enorme soma de dinheiro na época.

            Muitas pessoas passam na vida e deixam boas lembranças nos outros, que jamais se apagam. Algumas dessas pessoas permanecem em cada um de nós pela sua humildade ou dedicação ao que fazem. Como esquecer Arnaldo, o roupeiro da seleção; Alfredo, o enfermeiro, Gil Néri, o técnico, o médico John Leahy e Gerson Souza, o Marechal da Vitória? – ele perguntou e ficou sem saber como responder sobre a razão de que tudo na vida é uma passagem sem retorno.

             Ele, o craque inesquecível do futebol amador sul baiano, com suas investidas fulminantes, dribles rápidos e desconcertantes, deixou-nos e sua querida Itabuna no último dia 22, quarta-feira, e foi jogar futebol nos campos do eterno. Quem o viu jogar, sente-se um torcedor privilegiado, nunca é demais lembrar.


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Cyro de Mattos, escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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segunda-feira, 27 de julho de 2020

FUGINDO DO ÓBVIO – Péricles Capanema

27 de julho de 2020


 Péricles Capanema

O ministro José Luís Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tocou em ponto delicado, silenciado e óbvio: “Temos preocupação que a facultatividade [do voto] possa produzir a deslegitimação dos eleitos na possibilidade de um elevadíssimo índice de abstenção”. Depois, aludiu a questão circunstancial: “Embora ache que deva se considerar, sim, uma eventual anistia de multa, ou considerar uma justificação dos que não compareceram por fundado temor de contração do vírus por se sentir grupo de risco.” Em resumo, seria bom deixar de multar quem não apertar os botões na urna em 15 e 29 de novembro próximos.

Vou tratar do óbvio silenciado, levantado para surpresa minha por José Luís Barroso: o temor de o voto facultativo deslegitimar no Brasil as eleições e os eleitos. De outro modo, que o povo, soberano reverenciado na mitologia revolucionária, dê as costas para o processo eleitoral, desvalorizando o mandato dos escolhidos. “Tô nem aí”, diria um jovem. Repetindo o ministro para fazer de clareza solar a afirmação dele — existe generalizado temor de que o voto facultativo possa deslegitimar os eleitos pela possibilidade de elevadíssimo índice de abstenção.

Qual seria o índice de abstenção no Brasil com o fim do voto obrigatório? Ninguém sabe. Meu palpite, 70-75% de abstenção em média, considerando todas as eleições. Um pouco menor nas votações para presidente e governadores, quem sabe prefeitos de grandes cidades, subiria a abstenção nas legislativas.

Já tratei do assunto em vários artigos: não acho que o voto facultativo deslegitime a eleição e desvalorize os eleitos entre nós — todo mundo está cansado de saber que o voto vale pouco. À vera, expulsaria a fraude política silenciada e puxaria para o proscênio a realidade, mesmo desagradável, e a transparência. O voto obrigatório perpetua o embuste que cobre a representação, faz aparentar interesse onde não há, tange para a urna sob pena de punição ou distribuição de pequenos prêmios, multidões desinteressadas; todo mundo fica obrigado a votar debaixo de vara; se não o fizer, multa, proibição de praticar atos normais da vida civil. O soberano (o povo) é quase tratado como marginal perigoso, que precisa de vigilância minuciosa. Veja o que acontece ao desvalido eleitor se deixar de votar, exercício de um direito, transmutado em dever penoso, e não justificar (alguns exemplos, não é tudo): não pode se inscrever em concurso público; não receberá vencimentos, remuneração em emprego público, autárquico ou de paraestatal, de empresa ligada ao Estado; proibição de participar em concorrências públicas; proibição de tirar passaporte, carteira de identidade, renovar matrícula em instituição fiscalizada pelo Estado; proibição de empréstimo na Caixa Econômica Federal; proibição de participar em ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou do imposto de renda. Em suma, amolação e atraso de vida para o pobre cidadão desamparado. Retrocesso.

A maioria dos países adota o voto facultativo. Entre eles, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha, Espanha, Portugal. Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem desvalorizar eleitos por causa da abstenção. Entre a minoria que adota o voto obrigatório, além do Brasil, figuram Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Egito.

Entre nós, o voto facultativo baratearia as eleições (o custo proibitivo das campanhas é o maior fator de corrupção na política), melhoraria a representação, traria maior proximidade entre eleitores e eleitos. Apesar da evidência, o político brasileiro, direita, centro e esquerda, no caso, deputados federais e senadores, em geral foge da aprovação do voto facultativo como o diabo da cruz. Tem pavor de tratar do assunto. Quando pressionado, dá evasivas; poucas vezes se diz pronto a aprovar qualquer PEC a respeito. Há poucas exceções, às quais aqui homenageio. Não custa lembrar, voto obrigatório (determinado pelo artigo 14, § 1º, I da Constituição) não é cláusula pétrea. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Sem dúvida, o voto facultativo traria eleitos com votações pequenas, acabaria com muitos candidatos folclóricos, forçaria atitudes de sobriedade e modéstia nas casas legislativas, silenciaria blá-blá-blás de participação popular (inautêntica). Enfim, sanearia muita coisa. Mas é pregar no deserto, para desgraça nossa existe sólida maioria na Câmara dos Deputados e no Senado contrária à sua adoção, unida na preservação do entulho autoritário. Panaceia? De modo nenhum, melhoraria algum tanto a representação política, já é ganho ponderável, um avanço civilizatório, de que nos privam os eleitos (por nós).

Viro a página. O ministro Barroso levantou tema de enorme importância: a legitimidade. Deixou evidente que a legitimidade, mesmo em situações perfeitamente legais, pode ser ofendida e é dever dos homens de bem evitar a ofensa. Com o voto facultativo, opina o ministro, as eleições teriam igual força constitucional e legal, mas faltaria legitimidade aos eleitos, pouco sufragados. Para ele, situação grave a evitar. Ele tem razão num ponto essencial, a legitimidade não se assenta exclusivamente na lei. Assenta-se também, completo, em outras realidades; se olharmos para o Direito Natural, negado por tantos, tem ali raízes. Concretamente, o que é legitimidade? Vai aqui conceito caseiro, sujeito a bombardeios, é a conformidade com a ordem. Ordem via de regra nascida da natureza, da História, do fato moralmente justo. Qualquer situação, brotando da desordem, irrompe ilegítima. É útil recordar, existem a legitimidade e a ilegitimidade da ordem social, das leis, das condições sociais, das dinastias e não apenas das reais. Viver dentro da legitimidade é das mais importantes condições para a consecução do bem comum. E, por ricochete, dos bens individuais. É, contudo, assunto para outra ocasião.

Volto ao fulcro, não fujamos do óbvio. É notório, o eleitor brasileiro, desinteressado de política e eleições, sem apetência pelos pratos oferecidos, em sua boa maioria, não votaria se não fosse tangido, debaixo de vara, para a urna. É inafastável a pouca representatividade dos eleitos, a mais do claro fracasso democrático, fatos em nada ofuscados pela tentativa de tentar tapar o sol com a peneira mediante a adoção do voto obrigatório. Haveria mais legitimidade em nossos processos eleitorais com a adoção do voto facultativo; a verdade e a transparência, hoje evitadas, iluminariam melhor o processo eleitoral.


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domingo, 26 de julho de 2020

CANTIGA DE ESPONSAIS – Machado de Assis

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão” — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: “Entra em cena o ator João Caetano”; — ou então: “O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias”. Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

     — Mestre Romão lá vem, pai José — disse a vizinha.

     -   Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem ideia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

    — Pai José — disse ele ao entrar —, sinto-me hoje adoentado.

    — Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...

    — Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. E preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

    — Para quê? - disse o mestre. — Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

“Está acabado”, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

    — Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

    — Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

    — Aqueles chegam — disse ele —, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...

    — Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lados casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

    — Lá... lá... lá...

    Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

(Histórias sem data, 1884)

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Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

Fonte: ABL 

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (194)


17º Domingo do Tempo Comum – 26/07/202


Anúncio do Evangelho (Mt 13,44-52)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola. O Reino dos Céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e recolhem os peixes bons em cestos e jogam fora os que não prestam.
Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos, e lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes.
Compreendestes tudo isso?” Eles responderam: “Sim”.
Então Jesus acrescentou: “Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.


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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Padre Roger Araújo:

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 “Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13,44)

As parábolas são uma expressão de surpresa diante da vida, que nos ultrapassa sempre, fazendo-nos capazes de pensar de um modo diferente, captar o outro lado da realidade concreta e abrir-nos à dimensão da transcendência. Dessa forma, elas recolhem e desvelam a vida real dos homens e mulheres de cada tempo, movendo-os a assumir uma atitude mais aberta e mais comprometida com a situação onde estão envolvidos. Isso significa acolher o dom e a missão do Reino.

Em geral, as parábolas evocam experiências desconcertantes e em quase todas elas se revela um dinamismo que rompe os esquemas “normais” da vida, conduzindo o ouvinte (ou leitor) a um outro patamar, mais inspirador e desafiante. Elas removem a vida, arrancando-a da “normose” (normalidade doentia) e despertando outros recursos internos, que não foram ainda mobilizados. Assim, esta mesma vida, começa a adquirir um outro sabor e um outro sentido.

O Evangelho deste domingo recolhe duas pequenas parábolas fulgurantes de Jesus: uma do tesouro e outra da pérola. São relatos de uma enorme eficácia. Elas nos situam frente a uma experiência desencadeante de vida, frente à surpresa de Deus, e assim expõem e põem em marcha o caminho do Reino. Elas também nos situam diante da máxima riqueza e exigem, ao mesmo tempo, o maior desprendimento.

São imagens que pedem radicalidade, ou seja, “vender tudo” para adquirir o tesouro ou a pérola
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Mas, quase não percebemos que há um passo prévio: a descoberta, a iluminação interior, o ver clara-mente. Tanto o caminhante pelos campos como o comerciante de pérolas, vendem tudo porque se convenceram de que o investimento valia a pena. 

Nestas duas pequenas parábolas, são apresentadas duas opções para que cada qual possa identificar-se: ou é aquele que encontra inesperadamente o tesouro e compra o campo, ou é aquele que tem a vocação de comerciante e percorre o mundo procurando pérolas preciosas.

Uns serão aqueles que vão passear, deixando-se surpreender pela vida e pelos acontecimentos, sem perder a capacidade de assombro, de entusiasmo, de admiração. A pessoa de nossa parábola, ao ser encontrada pelo tesouro, “sai” de si para vender quanto tem, procura o proprietário e compra aquele campo. Mas também percebemos que faz tudo isso a partir de dentro, como se houvesse conectado com algo pessoal e íntimo, que lhe permite “sair” do mais profundo de si mesmo. E esse duplo movimento é carregado de uma plenificante alegria.

Outros serão de mentalidade “comercial”: encantam-lhes a aventura, a busca, a estratégia. Não nasceram para estar quietos, nem para se conformar com boas e bonitas pérolas. O específico seu é continuar viajando e buscando sempre a pérola maior até encontrá-la. E quando a encontram, compram-na, e continuam buscando sempre. Porque isso é próprio de um comerciante: apostar, comprar, vender, às vezes ganhar, outras vezes perder... A pérola também sai ao encontro daquele que busca.

A decisão e o risco que assumiram, tanto o comerciante de pérolas quanto o nosso caminhante pelos campos, mudaram suas vidas. O tesouro e a pérola continuarão sendo valiosos, quer eles vivam com fidelidade e paixão ou não. O que os transforma não é o tesouro ou a pérola em si, mas a atitude e a decisão que tomam, atraídos por eles. É um tesouro e uma pérola que exigem uma transformação do antigo e conhecido passado para um novo e desconhecido futuro.

Quando a pessoa se fecha às surpresas da vida, ou quando deixa de esperar algo bom e precioso, ela se invalida para ser descobridora de tesouros ou buscadora de pérolas.

Para deixar-nos encontrar pelo tesouro e pela pérola é preciso deslumbrar-nos, fascinar-nos, encantar-nos, apaixonar-nos. Parece simples, mas é muito aberto e evocador. “Aquilo pelo qual nos encantamos mobiliza nossa imaginação e acaba por deixar sua marca em tudo”, dizia Pe. Pedro Arrupe.

E como encantar-nos? Não é só questão de vontade, mas de viver com os olhos abertos, atento à realidade, externa e interna, ser poroso para que nos deixemos encontrar pela pérola preciosa e pelo tesouro escondido; diante deste surpresa, não poderemos deixar de ficar fascinados.

E então, sim, estaremos dispostos a queimar barcos, vender tudo, dar o salto. Talvez nosso maior problema é que, na realidade, o que nos interessa são nossas posses, poder, objetos, apegos à auto-imagem e não descobrimos ainda o tesouro escondido e a pérola fina, que não estão distantes de nós; pelo contrário, encontram-se no mais profundo de nós mesmos.

“Descer” ao chão de nossa interioridade é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza interior e assim experimentar a transformação. O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela “descida” aos campos de nosso coração. Isso requer coragem para passar por todas as regiões, mesmo as sombrias, e chegar ao mais profundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente originais e criativos.

É preciso “descer” até o fundo para descobrirmos uma nova riqueza para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.

Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido como dom. Não basta falar de “pedra preciosa”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos.

Cada um de nós possui uma fonte inesgotável de qualidades-habilidades; podemos dizer: “somos um presente”, um valor para os outros. A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, coisas... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...

É no coração que existem, em abundância, os aspectos positivos de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Aí se aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um, uma fisionomia própria, um caráter único.

Esta região profunda coincide com o mundo das certezas, dos valores, das ideias-força... que formam o eixo da nossa existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa realização, o positivo que nos solicita continuamente a nos tornar o que devemos ser. 

A força da transformação, portanto, nós não a encontramos na superfície ou distante de nós, mas sim, nas profundezas. Para ter acesso à riqueza no interior de nós mesmos, podemos imitar, simbolicamente, os hábitos dos pescadores de certo atol do Pacífico. Eles vivem pauperrimamente sobre uma terra desprovida de vegetação e açoitada pelos ventos; mas o fundo do seu mar é muito rico em pérolas.

Desenvolveram aí aptidões excepcionais para o mergulho; descem sem qualquer aparelho, ao fundo do mar, localizam as pérolas, arrancam-nas, trazem-nas para a superfície, atiram-nas no barco, para depois mergulharem de novo.

Este é o caminho da verdadeira espiritualidade: “descer” até o fundo, mergulhar no oceano interior onde estão escondidas as pérolas que dão significado e sentido às nossas vidas.

Encantados com a descoberta, trazê-las à tona e colocá-las a serviço dos outros, multiplicando-as.

Textos bíblicos:  Mt. 13,44-52    
Na oração:  Para realizar-te e desenvolver toda a tua potencialidade, busca, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de teu ser, o núcleo original de tua personalidade.
- Olha no profundo de teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e pergunta: “tenho um coração que deseja o maior (“magis”) ou um coração adormecido pelas coisas? Meu coração conserva a inquietude da busca ou deixa-se sufocar pelos apegos, que acabam por atrofiar-me?”

Pe. Adroaldo Palaoro sj



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