Aniversário da Cidade
Cyro de Mattos
Comemora
a cidade outro ano de emancipação política. Falam de seu progresso e vocação de
seu povo para o trabalho. A cidade torna-se festiva e desperta muito cedo com a
descarga de foguetes que crepitam no céu. Os moradores sabem que a cidade é
antes de tudo raiz e seiva que escorrem no comercinho novo. É trama com ânsia e
sonho. Antes aconteceu na légua do tropeiro, roupa do alfaiate, plaina do
carpina, tenda do sapateiro. Nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado
pela cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do
pedreiro. No sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o
povo para voar na valsa. Na cuia do cego, na cantiga da lavadeira, na cartilha
da professora. Na bola do menino que quebrou a vidraça do vizinho. Com os
namorados que passeiam de mãos dadas no jardim. Na rua, na loja, no armazém, no
banco, a cidade com o seu modo de estipular o mundo. Na guerra da palavra em
tempo de eleições, quando a vitória é uma questão de vida ou morte. No jornal
que dá a notícia boa ou má, sempre veloz, indo de canto a canto.
Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade
anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela
na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez
mais assusta.
Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão,
colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa
verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da
automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia
global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos
a maneira sensível de alguns conceberem a vida. Existem aqueles que lambem as
palavras e se alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer
na vida, negando a morte.
E o cronista, aprendiz das palavras que queimam como brasa,
no momento que está concluindo a crônica, imagina o primeiro homem que pisou no
chão de suas raízes. A noite daquele homem no navio misturando-se com as
conversas de macho. As estrelas tão longe. Perdidas na abóboda do céu negro. O
navio já se aproximando do porto de Ilhéus.
Na viola do peito, Félix Severino do Amor Divino cantava
baixinho, sem ninguém cantava.
Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é poeta e ficcionista.
Possui prêmios literários importantes. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de
diversos gêneros.
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