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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Aniversário da Cidade

Cyro de Mattos

 


                Comemora a cidade outro ano de emancipação política. Falam de seu progresso e vocação de seu povo para o trabalho. A cidade torna-se festiva e desperta muito cedo com a descarga de foguetes que crepitam no céu. Os moradores sabem que a cidade é antes de tudo raiz e seiva que escorrem no comercinho novo. É trama com ânsia e sonho. Antes aconteceu na légua do tropeiro, roupa do alfaiate, plaina do carpina, tenda do sapateiro. Nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado pela cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do pedreiro. No sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o povo para voar na valsa. Na cuia do cego, na cantiga da lavadeira, na cartilha da professora. Na bola do menino que quebrou a vidraça do vizinho. Com os namorados que passeiam de mãos dadas no jardim. Na rua, na loja, no armazém, no banco, a cidade com o seu modo de estipular o mundo. Na guerra da palavra em tempo de eleições, quando a vitória é uma questão de vida ou morte. No jornal que dá a notícia boa ou má, sempre veloz, indo de canto a canto.       

            Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez mais assusta.

             Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão, colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos a maneira sensível de alguns conceberem a vida. Existem aqueles que lambem as palavras e se alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer na vida, negando a morte.

             E o cronista, aprendiz das palavras que queimam como brasa, no momento que está concluindo a crônica, imagina o primeiro homem que pisou no chão de suas raízes. A noite daquele homem no navio misturando-se com as conversas de macho. As estrelas tão longe. Perdidas na abóboda do céu negro. O navio já se aproximando do porto de Ilhéus.

             Na viola do peito, Félix Severino do Amor Divino cantava baixinho, sem ninguém cantava.

 

Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Possui prêmios literários importantes. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de diversos gêneros.

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