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sábado, 4 de agosto de 2018

UMA ORAÇÃO PARA OS NOVOS TEMPOS - Martha Medeiros


Que honremos o fato de ter nascido, e que saibamos desde cedo que não basta rezar um Pai Nosso para quitar as falhas que cometemos diariamente. Essa é uma forma preguiçosa de ser bom. O sagrado está na nossa essência, e se manifesta em nossos atos de boa fé e generosidade, frutos de uma percepção profunda do universo, e não de ocasião. Se não estamos focados no bem, nossa aclamada religiosidade perde o sentido.

Que se perceba que quando estamos dançando, festejando, namorando, brindando, abraçando, sorrindo e fazendo graça, estamos homenageando a vida, e não a maculando. Que sejam muitos esses momentos de comemoração e alegria compartilhados, pois atraem a melhor das energias. Sentir-se alegre não deveria causar desconfiança, o espírito leve só enriquece o ser humano, pois é condição primordial para fazer feliz a quem nos rodeia.

Que estejamos abertos, se não escancaradamente, ao menos de forma a possibilitar uma entrada de luz pelas frestas – que nunca estejamos lacrados para receber o que a vida traz. Novidade não é sinônimo de invasão, deturpação ou violência. Acreditemos que o novo é elemento de reflexão: merece ser avaliado sem preconceito ou censura prévia.

Que tenhamos com a morte uma relação amistosa, já que ela não é apenas portadora de más notícias. Ela também ensina que não vale a pena se desgastar com pequenas coisas, pois no período de mais alguns anos estaremos todos com o destino sacramentado, invariavelmente. Perder tempo com picuinhas é só isso, perder tempo.

Que valorizemos nossos amigos mais íntimos, as verdadeiras relações pra sempre.

Que sejamos bem-humorados, porque o humor revela consciência da nossa insignificância – os que não sabem brincar, se consideram superiores, porém não conquistam o respeito alheio que tanto almejam. Ria de si mesmo, e engrandeça-se.

Que o mar esteja sempre azul, que o céu seja farto de estrelas, que o vinho nunca seja proibido, que o amor seja respeitado em todas as suas formas, que nossos sentimentos não sejam em vão, que saibamos apreciar o belo, que percebamos o ridículo das ideias estanques e inflexíveis, que leiamos muitos livros, que escutemos muita música, que amemos de corpo e alma, que sejamos mais práticos do que teóricos, mais fáceis do que difíceis, mais saudáveis do que neurastênicos, e que não tenhamos tanto medo da palavra felicidade, que designa apenas o conforto de estar onde se está, de ser o que se é e de não ter medo, já que o medo infecciona a mente.

Que nosso Deus, seja qual for, não nos condene, não nos exija penitências, seja um amigo para todas as horas, sem subtrair nossa inteligência, prazer e entrega às emoções que nos fazem sentir plenos.

A vida é um presente, e desfrutá-la com leveza, inteligência e tolerância é a melhor forma de agradecer – aliás, a única.

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Martha Mattos Medeiros é escritora, aforista e poetisa brasileira. É conhecida como uma das melhores cronistas brasileiras. Entre suas obras mais conhecidas estão "Divã", "Doidas e Santas" e "Feliz Por Nada". Seus livros já ultrapassaram a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.

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10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO - O Sobrevivente)


Clique sobre a foto, para vê-la no tamanho original
(Rio de Janeiro, 1956 -  o sobrevivente)


            Valério Konder*, que não me retirou sua estima quando deixei de militar no Partido Comunista, dá-me notícia da campanha desencadeada contra mim, pela direção do Partido, no estrangeiro: disseram cobras e lagartos, fui tratado de traidor e vendido. Diógenes de Arruda Câmara, na época uma espécie de dono do Partido (e da verdade), declarou numa reunião do Comitê Central: em seis meses ele deixará de existir como escritor e homem de esquerda. Vamos acabar com ele.

            Nas fofocas que me chegam a esse propósito, uma me entristece: Pedro Motta Lima**, meu velho amigo e camarada de longo caminho, andara fazendo minha caveira mundo afora, na URSS, na Bulgária, em Cuba, sei lá onde. Entristeço-me, mas compreendo: comunista imemorial, bolchevique comprovado, obediente às ordens recebidas, meu bom Pedro deve ter dado seu recado de coração apertado, disciplina é disciplina, não lhe guardo rancor. Outros cumpriram as ordens alegremente, sempre fui visto com desconfiança pelos intelectuais cooptados à direção partidária, o que esses disseram e fizeram não chegou a me entristecer.

            O que me admira até hoje é que a afirmativa do enraivecido dirigente não tenha se convertido em realidade, que sua previsão não se tenha cumprido. Sobrevivi, quem o diria.

* Valério Konder, médico sanitarista.

** Pedro Motta Lima (1889/1966), jornalista.

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            Sendo antidoutor por excelência, o antierudito, trovador popular, populachero, escrevinhador de cordel, penetra na cidade das letras, um estranho nos saraus da inteligentzia, universidades da França, da Itália e do Brasil fizeram-me doutor honoris causa, vamos lá saber por quê.

            No Brasil, a alegria superou a honra, pois na Universidade da Bahia elevaram-me a doutor ao lado de Carybé e de Caymmi e na do Ceará vestiram comigo a toga do saber na solene cerimônia Eduardo Portella e Aldemir Martins, quatro doutores de verdade, criadores de cultura. Se não me pretendo mestre como eles, deles sou mabaça, corre em nossas veias o mesmo sangue mestiço do povo brasileiro, condiciona nossa arte e nossa literatura.

(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado

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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.

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