10 de Fevereiro de 2019
♦ Péricles Capanema
Sublinhada pelo encontro dos corpos soterrados na lama e
pelo escoar lento do Paraopeba tóxico, a tragédia em Brumadinho (MG) lembra
doloridamente ao Brasil enlutado a necessidade contínua de medidas de
prevenção, de nada deixar ao acaso, de ter sempre diante dos olhos a
possibilidade pior. Em suma, retirar de cada fato ou princípio, até o fim, suas
decorrências lógicas e agir segundo elas; é criar o hábito da responsabilidade.
Nosso hábito é outro, namoramos o desleixo, a imprevidência,
a inconsequência, brincamos inconsideradamente com a lógica. Tudo leva a crer,
Brumadinho, encaixada no contexto de Mariana, boate Kiss, alojamento do
Flamengo, incêndio no Museu Nacional, é prenúncio de outras tragédias.
No âmago da catástrofe, repito, está o hábito de nada levar
até suas últimas consequências lógicas. Vou dar um exemplo gritante,
relacionado com o que acima comentei. Muita gente, qual urubu na carniça,
aproveitou-se de a VALE estar no miolo do drama que desabou sobre Brumadinho,
para criticar a privatização da empresa, e por ricochete, a política de
privatização em geral. O novo rumo teria diminuído preocupações sociais e
cuidados com o meio ambiente. Prejudicaria o povo, favoreceria os ricos; em
suma, seria antissocial.
Vamos devagar, começando por recordar alguns marcos, o que
poderá evitar que muita gente continue saudosa do atraso e agarrada nos enredos
do retrocesso. A VALE (antiga “Vale do Rio Doce”), criada empresa estatal em
1942 por Getúlio Vargas, foi privatizada em maio de 1997 durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso. Em números redondos, é empresa privada há 22 anos,
uma vida. Quem manda em empresa privada são os acionistas. Certo? Na VALE, em
termos. Acionistas, sim, grandes, mas não privados.
Trago à baila trechos da delação de Joesley Batista, um dos
donos do grupo JBS, que não é grande acionista da VALE, divulgada em maio de
2017. Em conversa com o megaempresário o então senador Aécio Neves lhe garantiu
que já não conseguiria nomear o presidente da VALE (desejo dele), mas Joesley
Batista poderia indicar um outro diretor e seria atendido. A contrapartida eram
os dois milhões de reais na mão para, afirmava o senador, pagar despesas de
advogado. Coisa de comparsas, Joesley Batista, hoje condenado, teria garantido
até 40 milhões se conseguisse sentar alguém de sua confiança na presidência da
VALE. Palavras de Joesley Batista constantes do material da delação: “Aí
ele [Aécio] falou, ‘não pode porque eu já nomeei’. Parece que a Vale tem uma
governança pra ter uma independência pra escolher presidente, mas parece que
eles têm algum jeito de fraudar esse troço e virar presidente alguém com
nomeação política. Ele [Aécio] me explicou isso, disse ‘nós fizemos um treco lá
que em tese é independente, mas na prática o candidato da gente acaba
ganhando’. Ele disse que eu poderia escolher qualquer uma das quatro
diretorias, que eu escolhesse e que ele botava quem eu quisesse, se fosse o
Dida, ele botava o Dida”. O Dida é Aldemir Bendine, hoje condenado e preso por
corrupção.
Lauro Jardim, cerca de dois meses antes da divulgação do
material acima, já informava que a escolha do presidente da VALE vinha de “uma
triangulação da qual participaram os acionistas (Bradesco à frente), Michel
Temer e Aécio Neves. Quando oficialmente a Vale contratou a Spencer Stuart para
encontrar o nome do sucessor de Ferreira, foram agregados pela empresa duas
dezenas de nomes aos de Schvartsman”.
Fundos de pensão de estatais e BNDES (controlados pelo
governo) são grandes acionistas da VALE. O que dá aos políticos enorme
ingerência na empresa. A coerência da política de privatizações mandaria o
governo entregar a empresa à iniciativa privada. Não o fez; saiu pela porta da
frente e entrou pela porta dos fundos. E a situação geradora de lambanças está
assim há mais de 20 anos.
Existe pior. Boa parte das empresas privatizadas depois de
1997 hoje se encontra nas mãos de estatais chinesas (ou, por outra, nas mãos do
Partido Comunista Chinês) e também nas mãos de estatais de países ocidentais.
Vai abaixo o que divulguei em dezembro de 2015, ainda no
governo Dilma, no artigo “Desnacionalização suicida”, serve para hoje, espero
que não valha no futuro: “Nunca fui nacionalista; vejo com simpatia a
presença de empresas estrangeiras entre nós. Mas o caso agora é outro. Em 25 de
novembro último, o governo colocou à venda concessões por 30 anos para as
usinas de Ilha Solteira, Jupiá, Três Marias, Salto Grande, 29 hidrelétricas no
total. Ganharam o leilão CEMIG (estatal), COPEL (estatal), CELG (estatal),
CELESC (estatal), ENEL (forte presença do governo italiano) e THREE GORGES (estatal
chinesa). A estatal chinesa ficou com 80% da energia e pagou R$13,8 bilhões
pela outorga. Vejam esta falácia lida por milhares, quem sabe milhões, ilustra
como os meios de divulgação vêm tratando o caso: ‘Com os ativos
recém-adquiridos, a CTG [China Three Gorges, a estatal chinesa] atinge
capacidade instalada de 6.000 W, tornando-se a segunda maior geradora privada
do país’”.
Privada? Capitais do Estado chinês, dirigido tiranicamente
por um partido imperialista e totalitário. Temos no caso estatismo agravado,
mais danoso que o estatismo brasileiro, com suas roubalheiras e incompetências.
A dizer verdade, o programa de desestatização brasileiro, em vários de seus
aspectos importantes, é uma enganação monstruosa e vergonhosa. Chega até a
ameaçar a segurança nacional.
Fecho. A irresponsabilidade tem raiz na falta de lógica, no
hábito de conviver com a incoerência. Agora vitimou Brumadinho. Antes, causou
outras desgraças. No futuro, provocará tragédias parecidas. Se não forem
expulsas a incoerência e a ilogicidade, alimentadoras do descaso, do desleixo e
da irresponsabilidade.
* * *