Pacificação
A intervenção das Forcas Armadas na segurança do Rio, bem ou
mal recebida, é um fato consumado.
É muito possível que a decisão sobre a intervenção tenha
atendido aos baixos interesses políticos de um presidente em agonia e seus
acólitos contumazes que, mais que tudo, temem a prisão. A ninguém surpreenderia
uma manobra fria e manipuladora urdida nos porões do Jaburu.
Muitas das reações contrárias à intervenção obedecem à mesma
lógica do interesse político, perguntando quem ganha e quem perde em seus
cálculos eleitoreiros. Lula chamou a atenção para as oblíquas pretensões
eleitorais do presidente. Bolsonaro bravateou que ninguém roubará sua bandeira,
como se a segurança tivesse dono. O interesse político há muito se dissociou do
interesse público. A população só é visível quando as pesquisas de opinião
traduzem as tragédias em prováveis votos futuros.
Do ponto de vista da população desamparada por serviços
públicos em frangalhos, sofrendo na carne a violência, a questão é saber se
este fato consumado será o ponto de inflexão, o freio no descontrole da
segurança pública sensível no aumento da violência, territórios dominados pelo
tráfico e paralisia da polícia minada pela corrupção. Ou uma bala de prata que,
errando o alvo, provoque o efeito contrário, a aceleração de todos esses
processos nefastos.
Estamos, portanto, diante de uma situação de altíssimo risco
em que não cabem precipitações que ponham tudo a perder. Inteligência,
perseverança, bom senso e capacidade de escuta serão necessários aos
responsáveis da intervenção.
Se a intervenção na segurança fracassar, uma sociedade
convivendo com a barbárie no seu cotidiano, tomada pela exasperação, poderia
recorrer a uma candidatura truculenta que aumentaria o caos, levando de
cambulhada direitos e liberdades.
Há uma aposta possível na capacidade operacional deste
Exército brasileiro que, nas palavras do fundador do Viva Rio, Rubem César
Fernandes, que trabalhou com os militares na bem-sucedida missão de paz no
Haiti, se reinventa como força de estabilização e de pacificação. Pacificação é
o que se espera das Forças Armadas no Rio de Janeiro.
A intervenção na segurança pública tem motivado em pessoas
desesperadas com a espiral da violência uma retórica guerreira.
Reação
explicável por um imenso cansaço, pelo desgaste das esperanças e pela confessa
incapacidade do governo do estado de defender a população contra o crime
organizado, encastelado em territórios ocupados, e contra o crime desorganizado
que se espalha, epidêmico, em um ambiente propício de desordem e impunidade. E
pelo medo com boas razões partilhado por toda a população. Essa retórica
guerreira, no entanto, seria como apagar um incêndio com gasolina. O desespero,
ainda que compreensível, é péssimo conselheiro.
As Forças Armadas estão assumindo uma grave
responsabilidade. Se a intervenção na segurança pública for, de fato, um
impulso na reconstrução do Rio, a dimensão policial e militar precisará ser
completada por um leque muito mais amplo de ações sociais, como há anos vem
sendo dito e redito por todos que se debruçam seriamente sobre o desafio da
segurança.
Escolas, creches, postos de saúde, trens e ônibus dependem
para funcionar da garantia da ordem pública. No caos em que estamos vivendo,
restabelecer a ordem pública, reduzir a violência e estancar a corrupção é o começo,o
meio e o fim do processo de pacificação.
A atitude da população do Rio não pode ser a de vítima
inerte ou espectadora atenta. Sua participação não atenderá a uma receita que
alguém lhe dê como tarefa. Cabe a ela mesma a autoria de suas iniciativas.
A expectativa positiva da maioria da população coexiste com
a desconfiança, em muitos, de que a legítima aspiração à paz seja mais uma vez
frustrada. Os fatos falarão por si. A confiança se constrói no tempo. O
monitoramento das operações de pacificação é essencial na construção da
confiança.
Este é o papel das lideranças comunitárias, da mídia e de todos
aqueles que, na democracia, têm o direito de opinar sobre o que afeta suas
vidas. Quanto maior a interação entre os militares e a população, melhor,
cabendo à Justiça o exercício de sua função de balizamento dos limites da lei,
como ocorreu no debate sobre a legalidade do mandado coletivo de busca e
apreensão.
O futuro é incerto, sabemos, mas é sempre pelas brechas da
incerteza que a esperança se infiltra. O Rio de Janeiro é resistente. Agora,
mais do que resistir, é preciso pacificar. Reconhecer a queda, não desanimar e
dar a volta por cima.
O Globo, 24/02/2018
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Rosiska
Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de
abril de 2013. É escritora e ensaísta. Sua obra literária exprime uma
trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo
Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23 de dezembro de
2012.
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