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sexta-feira, 9 de junho de 2017

JUNHO - MÊS DE MACHADO DE ASSIS (III)

1.º de Junho de 1863


O Jornal de Recife deu-nos duas notícias importantes, com a diferença de alegrar-nos  a primeira tanto quanto nos contrista a segunda; refiro-me às melhorias de saúde de Gonçalves Dias e a morte de J. F. Lisboa, verdadeira a última ou não passa de deplorável engano? É lícito duvidar da exatidão dela, e, sem ofensa a folha pernambucana, deve-se esperar uma confirmação mais positiva.

Não é que o fato seja impossível; mas o silêncio da imprensa portuguesa a respeito, silêncio impossível, a ter-se dado o caso, abre lugar à dúvida. Mau era se a indiferença de um país amigo e irmão fosse a única elegia que tivesse na morte um homem tão ilustre como o autor do Jornal de Timon.

Pelo que respeita a Gonçalves Dias, a mesma folha se refere a uma carta do poeta. Os seus sofrimentos não desapareceram de todo, nem deixam de ser grandes; mas o ilustre poeta está fora de perigo. Escreve de Dresde, e ia partir para Carlsbad, a fim de tomar banhos minerais. A esta notícia acrescenta que tem em mãos vários trabalhos literários que pretende mandar imprimir em Leipzig.

Doente embora, o grande cantor nacional emprega a sua atividade em encher de novas joias o seu já tão farto escrínio literário. Belo exemplo esse à mocidade de hoje, a quem pertence o futuro do país. É deste modo que o talento é sacerdócio.

Que importa o labor de uma longa semana? Há, para muito descanso, o domingo da imortalidade.

Falando dos moços e indicando-lhes tal exemplo, devo mencionar, entre outros nomes, o do Sr. Bruno Seabra, mavioso poeta paraense, a quem já os leitores conhecem sem dúvida por suas delicadas composições. Acaba ele de chegar da Europa para onde partira há oito ou nove meses.
Demorou-se em Paris a maior parte do tempo, aplicando como melhor pôde, a sua aptidão e o seu desejo de saber.
Entre outras composições, trouxe já, impressa uma comédia em um ato, que intitulou: Por direito de Patchouly. O título indica o assunto: é a vitória do néscio cheiroso na luta com o homem chão e sisudo, coisa que se vê todos os dias, mas que o poeta reduziu a um ato chistoso, fácil, epigramático, original. Tem Bruno Seabra boas qualidades para o gênero, e a sua estreia, se alguma coisa tem de menos, apresenta já, uma boa amostra do que ele pode fazer se não parar neste primeiro trabalho. Estou certo de que o autor das Flores e Frutos corresponderá à justiça que lhe faço, e trabalhará como lhe cumpre na medida do seu belo talento.

Em São Paulo publicou o Sr. Luiz Ramos Figueira, bacharel e estudante do 4.º ano de Direito, um volume a que deu por título Dalmo ou os Mistérios da noite.

Em boa justiça devem-se louvores ao Sr. Figueira. Se a sua obra acusa descuidos, revela qualidade de imaginação e de apreciação; há nela muitas belezas derramadas por muitas páginas. Uma boa crítica não pode deixar de acolher a obra do Sr. Figueira como um presente que promete outros muitos, e a isso fica virtualmente emprazado o leitor.

Pertence o Sr. Figueira à mocidade acadêmica de São Paulo, onde os moços sabem entremear os estudos jurídicos com os literários, e não esquecem a vocação do berço pelo labor do curso acadêmico.

E já que estou no capítulo dos moços, falarei de um, verdadeira criança, não tanto pelos anos, como pela ingenuidade do coração e do espírito. É nada menos que um poeta. Se lhe falta a beleza da forma, sobra-lhe o sentimento da poesia, que é o essencial e o que não se adquire.

Quem pode alcançar dinheiro de um usurário? Este é um usurário das musas, e para alcançar os versos que abaixo transcrevo, foi-me preciso surpresa. Ainda assim custou-me convencê-lo depois de que devia publicá-los. Consentiu sob condição de lhe não publicar o nome. Anuí. Os versos não são originais; são traduzidos de um poeta da Rumania. Não são perfeitos, mas são agradáveis de ler:

Sincero amor tu me juraste um dia
Até que a morte te deitasse o véu;
Tudo passou, tudo esqueceste, tudo,
Coisas do mundo, o erro não é teu.

“Ó meu amado, me disseste, eu quero,
Eu quero dar-te meu quinhão do céu!”
Dessas promessas olvidaste todas.
Coisas do tempo, o erro não é teu!

Sabes que pranto derramei no dia
Em que juraste o teu amor ao meu;
Morri por ti, tu me esqueceste, embora,
Coisas do sexo, o erro não é teu.

Mudo abracei-te; teu ardente lábio
Celeste orvalho sobre mim verteu;
Veio depois a gota de veneno...
Coisas do sexo, o erro não é teu.

Tudo, a virtude, o amor, a fé, a honra,
Tudo o que prometias, te esqueceu;
Ah! nem remorsos nem amor conheces.
Coisas do sexo, o erro não é teu!

A lei do ouro e da banal vaidade
Dessa tua alma fé e amor varreu;
Curaste a chaga, amorteceste a sede,
Coisas do sexo, o erro não é teu.

Pesar de tudo, o coração amante
Há de bater de amor no peito meu
Ao pressentir-te. Ficas sempre um anjo...
Coisas do amor, o erro não é teu!

O meu poeta procurou conservar a mais estrita fidelidade. Não vi o original e não pude comparar; mas há expressões, que ele próprio indica, e que são verdadeiras belezas do original; aquele verso Curaste a chaga, amorteceste a sede é uma delas.

Parece-me a poesia graciosa, e como tal a ofereço aos leitores.
O meu poeta, esse, encerrado na sua torre de marfim, adormece e procura esquecer-se, poetando para si. Não louvo nem condeno a reclusão voluntária; admiro e lastimo.

Para concluir estas linhas, lançadas ao papel em uma época de verdadeiro fastio para mim, menciono o fato que há muito se não repete de uma reunião, tanto ou quanto numerosa, de artistas nesta Corte. Veio do sul Arthur Napoleão; de Lisboa, o Sr. Croner, clarinete, que teve em Londres o sucesso mais lisonjeiro que pode ter um artista, o da consagração entusiástica da crítica refletida e competente.

Acrescentem-se a esses — outros, filhos do país ou estrangeiros aqui residentes e cujos nomes todos sabem. Se há ocasião para concertos é esta. Se cada um deles der a sua festa artística pode haver muitas e relativamente esplêndidas. No Lírico o barítono Celestino e o soprano Briol são aplaudidos pelos diletantes, e nomeadamente no Rigoletto, onde agradaram. Acrescente-se ainda que esta, a chegar uma companhia de ópera cômica francesa e terá se completado assim o capítulo da música. E eu termino este pedindo escusa da minha avidez.

Post-scriptum.
Já estava composta a crônica quando recebi uma notícia que me confirma nas esperanças de uma boa estação musical. Arthur Napoleão oficiou a comissão da subscrição nacional oferecendo os seus serviços em favor dos fins para que ela se organizou. Naturalmente a oferta será aceita. É inútil repetir o que em todos desperta este ato cavalheiresco do distinto pianista.

Machado de Assis
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Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889.

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