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sábado, 10 de março de 2018

O DEDO DE UM JOGADOR COMOVE TODA A NAÇÃO - Por Pedro Paulo Paulino



Xapuri 05.03.2018

ANOTE AÍ:
Cordel atribuído a Pedro Paulo Paulino, poeta popular e morador da Vila Campos, no interior de Canindé, no estado do Ceará.


Jornais, rádio, internet
Canais de televisão,
A imprensa brasileira
Volta completa atenção
Para um fato aterrador:
O dedo de um jogador
Comove toda a nação

Dedo mindinho do pé,
Que num momento infeliz,
Jogando bola distante
Na cidade de Paris,
Foi de repente atingido,
E o fato só tem sido
A desgraça do país.

A pátria inteira parou
Com esse acontecimento!
Um dedo do pé direito
Vem causando sofrimento
A milhões de brasileiros
Se ouve a todo momento!

A imprensa, sempre atenta,
Não guarda nenhum segredo.
Doutores de gabarito
Acordaram hoje cedo,
Para uma junta formar
E com cuidado operar
Durante o dia esse dedo

Não faltam, para esse membro,
Cuidados especiais,
Que será tratado em um
Dos melhores hospitais
Do Brasil e o mundo inteiro.
Coisa pra quem tem dinheiro
E fica em Minas Gerais

Reportagens, todo o tempo,
Estão a noticiar.
Na hora da cirurgia,
Todo o Brasil vai parar
Para ver o que acontece
E muitos vão fazer prece
Para o dedo de Neymar.

Segundo comunicou
O velho José Simão,
Vai ter cobertura ao vivo
Em toda televisão,
A Globo até vai mandar
Ao local, pra comentar,
O baba-ovo Galvão.

Porque, segundo a notícia,
Quando o fato aconteceu,
Uma equipe logo veio
E o atleta socorreu
Mas naquela ocasião
Foi o rabo do Galvão
o lugar que mais doeu!

Violência no país,
Ninguém quer mais comentar;
Eleiçoes pra presidente,
Nisto nem é bom falar;
O assunto agora é
O dedo “mindin” do pé
Do nosso craque Neymar.

Que tragédia pra nação!
Que comoção e que dor!
Toda a mídia brasileira
Dirigiu seu refletor
Entre fevereiro e março,
Para o quinto metatarso,
Do pé desse jogador!

Já pensou se esse dedo
(Deus o livre, credo em cruz!)
Tivesse que ser tratado
Pelos hospitais do SUS,
Onde só tem assistência
Da divina Providência
E os milagres de Jesus?

O dedo que foi comprado
Por quase um bi de reais
(Nem mesmo o dedo de um santo
Vale tantos cabedais!)
Não é um dedo comum
E será tratado em um
Dos melhores hospitais.

Reforma da Previdência
Mil tributos a pagar,
Inflação, custo de vida,
Só subindo sem parar,
Massacre à população,
Mas nada chama a atenção,
Como o dedo de Neymar!

Falcatruas no Congresso,
Um presidente impostor,
Metendo sem pena a faca
No povo trabalhador,
Rede Globo intolerante,
Mas nada é  mais importante
Que o dedo do jogador!

Enquanto houver gente besta,
Sabido não vai faltar.
Há milhões de brasileiros
Morrendo de trabalhar
Numa pátria corrompida,
E a mídia comprometida,
Com o dedo de Neymar!

Foto: Esportes

* * *

OS INDIFERENTES - Marco Lucchesi


Os indiferentes 

Como chegar ao Rio de Janeiro de agora, e a uma pálida ideia de futuro, senão pelo desenho das crianças? Dão início às primeiras tentativas de traduzir o mundo interno, a espessura dos afetos, o modo pelo qual se inscrevem no corpo da mãe e da casa que coincidem. E depois o desenho do quintal e arredores, uma porta, duas janelas. No alto, à esquerda, como a proteger a casa, um sol radiante. Uma árvore, bem entendido, as primeiras imagens do rosto e da família.  A cidade e o mundo são a última fronteira da subjetividade, no tempo em que dobrar a esquina era uma conquista sem precedentes.
  
As escolas da comunidade ajudam a compreender, no desenho de meninos e meninas de apenas dez anos, os limites da cidade e as feridas que não fecham, a leitura do presente e uma espera misteriosa. Em alguns desenhos não há sol. As árvores aparecem desertas de fruto e sem raiz, com a casa a poucos milímetros do chão. Algumas sem janela. Outras sem portas. Sangram esses desenhos, como as crianças. Numa cidade cujo estado diminuiu – em diversos sentidos –, nas redes solidárias que se despedaçaram e que desampara a infância.
  
Há também desenhos de morte e assassinatos, com um claro riacho de sangue, uma chuva de balas perdidas cruzando o céu, sem nuvens, com um sol pálido e triste.  E, mesmo assim, insistem nas brincadeiras de roda, no jogo de futebol. As crianças confessam a própria dor, através do jogo, ao mesmo tempo em que buscam aprisionar, em seus rabiscos eloquentes, a força do mal, quanto mais fortes o medo e o risco de perder. Lembro do desenho de um caveirão e de um traficante, igualmente aterradores.

Nesses desenhos, há o esboço de uma biografia latente. Um destino que começa, literalmente, a ser desenhado. Não ainda irreversível, mas em marcha.  E, no entanto, em muitas representações do mundo, numa leitura a contrapelo, dos edifícios empilhados e sufocantes, em contraste com espaços generosos que não se veem nas comunidades, assim como a vegetação que perdemos na cidade, multiplica-se no giz de cera verde. Crianças de mãos dadas e um azul do céu por onde passam pipas com caudas que não terminam, helicópteros e balões. As meninas sonham com avidez. O sonho é o patrimônio das crianças e nosso combustível.

A cidade do Rio precisa considerar esse espelho precioso e variegado, ouvir o volume de medo e esperança de nossas comunidades, e criar uma rede crucial de proteção, começando pela escola e programas de proteção às famílias.

O maior perigo são as crianças educadas pelo medo e marcadas por agressão e apatia. Se  nossos meninos e meninas perdem o direito de sonhar, é porque tudo vai muito mal. Ou nos mobilizamos seriamente ou nos tornamos sócios de uma guerra surda e cruel, o crime imperdoável da indiferença diante da infância e do futuro.        
O Globo, 07/03/2018
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018.


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