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quinta-feira, 5 de março de 2020

NEM TINHA CARTEIRA ASSINADA – Ariston Caldas



            Era uma trempe arranjada com três pedras meio-angulares. Acocorado ao lado dela, Aparecido ia retirando com uma colher a borra do café aljofrando da chaleira de flandres fumaçada. A mulher dele, num banquinho ao lado, tentava desmachucar o testo da panela grande de cozinhar feijão. Na cozinha ela só não se responsabilizava pelo café. Aparecido entendia que somente ele era competente para o fazer “supimpa”.

            - É, Lainha, aprendi coar café assim supimpa desde menino. – Ele falou, afastando-se da fumaça que subia da trempe. No momento em que olhou para a mulher, refletiu a vida difícil que levava para manter-se, a ela e aos três filhos. A família vivia mal alimentada e malvestida; os meninos sem escola e todos sem casa para morar, pelas fazendas dos outros, a cada dia mais necessitados. Aí lembrou de Lainha ainda robusta e bonita:

            - Era uma morena de abafar! Hoje, tadinha, taí com a pele enferrujada e cheia de rugas; o cabelo alinhavado de fios brancos, olhar quebrando. E ainda não tem trinta anos! Pensando assim, panhou uma brasa com um pegador feito de faxina, jogando-a dentro da chaleira fumegando:

            - Aí é que está o segredo para se fazer um café bom. – resmungou, esfregando com os dedos os olhos que ardiam cheios de fumaça. Pensou depois que "assim ou assado, fiz o curso primário completo. Nem era para viver assim perambulando pelas roças dos outros e ainda sem carteira assinada”. Concluiu seus pensamentos. Fora, a noite chegava empretecendo os cacaueiros em redor entre uma chuva fina e fria e um vento rumorejando pela folhagem. Por isso os dois meninos mais velhos recolheram-se mais cedo, acomodando-se a um canto da sala estreita junto à cozinha, como dois vultos entre a turvação, onde ficaram conversando coisas de menino. A momentos Lainha impacientava-se:

            - Cala a boca, troços! – Gritava para os dois meninos barulhando. O mais novo dos três, ainda nos cueiros, dormia na cama do casal, embrulhado com uma coberta de tacos.

            Era uma noite de quinta-feira e a casa se encontrava quase pura, os mantimentos se acabando. Havia um resto de feijão, um pouco de farinha e um pedaço de carne seca; o querosene daria até o outro dia e um pouco de açúcar dava para o momento e para o café da manhã seguinte. Só no sábado Aparecido teria dinheiro para novas provisões.

            - Carestia medonha! Dinheiro não dá mais pra nada... – pensou, enquanto adoçava o café na chaleira. Depois, despejou um pouco numa caneca e o saboreou, estalando os beiços.

            - Experimente, Lainha. Veja como está gostoso! – disse, dirigindo-se para a mulher.

            Às sete da manhã do outro dia, Aparecido entrou para o depósito ao lado da casa, portando uma mochila com carne afarofada; panhou a vara de podão, um facão e saiu pela porteira da frente, rumo à Roça da Onça, onde faziam as primeiras colheitas do temporão.

            Aproximava-se o São João, e Aparecido lembrou que precisava comprar algumas coisas para a mulher e para os filhos. O que achava mais necessário era um par de sapatos para Lainha. No momento ele não necessitava de sapatos, pois ainda possuía as botinas compradas no ano passado. Para os meninos compraria roupas e uma caixa de traques. No percurso até à roça pensou nessas coisas e na situação; fez cálculos mas não viu meio que lhe garantisse as compras. Pensou arriscar um adiantamento com o patrão, mas sem acreditar que isso desse certo. Só esqueceu do assunto ao embaraçar-se com um jararacuçu-pico-de-jaca junto a uma bandeira de cacau à margem do caminho:

            - Sai, peste! – Exclamou, pulando para um lado, batendo-se de supetão a um cacaueiro apinhado de frutos amarelos.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas


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