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quinta-feira, 19 de maio de 2022

HAROLDO DE CAMPOS Circum-lóquio (pur troppo non allegro) sobre o neoliberalismo terceiro-mundista

FOTO: German Lorca


Circum-lóquio (pur troppo non allegro) sobre o neoliberalismo terceiro-mundista

1.
O neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

2.

O neoliberal
neolibera
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?
a ex-comunhão dos ex-clusos?
o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

3.
No céu neon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:

enquanto o não
– neoliberado
come pão
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-
mansão em miami

4.

O centro e a direita
(des)conversam
sobre o social
(questão de polícia):
o desemprego um mal
conjuntural
(conjetural)
pois no céu da estatís-
tica o futuro
se decide pela lei
dos grandes números

5.
O neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de
banqueiros
– banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.

6.
(A
contramundo
o mundo-não
-mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
sub-servis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus mamonas)

7.
O neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes coronéis políticos
milenaristas (cooptados) do perpétuo
status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre – festa estática
(ainda que sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)

 

(Haroldo de Campos)

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Haroldo Eurico Browne de Campos nasceu em São Paulo, em 19 de agosto de 1929. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Após ter publicado poemas e traduções na imprensa paulistana durante a década de 1940, lançou seu primeiro livro – O auto do possesso – pelo Clube de Poesia de São Paulo, em 1950. Faleceu em São Paulo, tendo publicado, pouco antes, sua transcriação em português da Ilíada, de Homero.

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FESTA DO NEGRO - Cyro de Mattos



Festa do Negro

Cyro de Mattos

 

Sua coreografia,

seu colorido,

suas danças,

vento ameno

nas bandeirolas

os olhos enchem.

 

Toques, gestos,

roupas, prosas,

insígnias, colares.

Ares cheirosos,

embriagadores.

Temperos requintados,

picantes sabores.

 

Cânticos do transe,

adarrum, adufá,

na descida orixás.

Rum, rumpi, lê,

regidos por alabê.

 

No Axé Opô Afonjá

é que então percebi

quanta beleza

 África irradia

quando desce na Bahia.

 

Numa roda canta, 

numa roda cavalga,

numa Casa santa

que o mal espanta.


 

(Do livro Poemas de Terreiro e Orixás, Mazza Edições, BH, 2019)


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Modo Encantatório de Pensar o Negro

                                  

                                    Muniz Sodré *

 

      O saudoso Agenor Miranda Rocha, um dos maiores oluôs (adivinho, sacerdote oracular) da tradição ketu-nagô no Brasil, era também um refinado sonetista. Conhecendo-o de perto, indaguei-lhe um dia por que jamais compusera um verso sequer sobre as coisas do culto. Disse-me que  a linguagem simplesmente não o mobilizava nessa direção. Sua temática constante era o amor –– à divindade, à fraternidade, à natureza, às pessoas. Mas ele escrevia com a força de fala de um grande portador do axé que, como se diz no candomblé, é “a luz do dia”.

    Noutros poetas, li tentativas em que o vernáculo do culto mostrava-se correto como um nome no dicionário, mas sem a sedução litúrgica do segredo que, mesmo sem ser nomeado, transparecia nos sentimentos sutis dos versos de Agenor. Nos experimentos, o manejo das palavras nagôs não ia além do artesanato, não se transformava no modo encantatório de pensar, que é a poesia.

   Agora, entretanto, grata surpresa, Cyro de Mattos, com o “punhal tecido de pranto” (“história do corre-costa”) atira “certo na caça” (“quilombo”) deste “Poemas de terreiro e orixás”. Surpresa minha, fique claro, que não sabia Cyro tão próximo do que, para mim, é luz do dia: a luminosidade expansiva de um outro modo de existir e de pensar. Cyro extrai poesia de onde outros simplesmente resvalaram, quero dizer, da matéria resvaladiça, aos olhos de fora, dos cultos afros.

     A experiência primeira do leitor desses poemas é a do ritmo. Cyro me parece escrever respirando e convidar o leitor a entrar no sopro das vozes que atravessam o terreiro por força dos orixás. Quem não quiser entrar no jogo do sentido, faça o jogo do ritmo e se veja aderindo às protoformas que presidem à poesia, ao canto e à música. Não era isso mesmo o que acontecia nos coros da tragédia grega? Não é isso mesmo o que sempre aconteceu no nascimento dos poemas coletivos das sociedades tradicionais da África Negra?

     Faz tempo, faz décadas, muito tempo que não vejo de perto o ficcionista  e poeta Cyro de Mattos. Sim, tinha o cabelo enroladinho, branco não era, mas não o sabia tão negro. Isso importa? Talvez não, mas importa dizer que  os elementos essenciais da melodia poética –– duração, altura e intensidade –– são às vezes como o quiabo colocado no chão por Ogum sob os pés da aguerrida Obá. O que faz Cyro? Não resvala.

 

                                  Muniz Sodré

                  Obá Aressá Nilê Axé Opô Afonjá

                       Doutor em Antropologia (UFRJ)

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