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domingo, 30 de janeiro de 2022

SONETO DA INFÂNCIA MINHA – Cyro de Mattos



Soneto da Infância Minha

          Cyro de Mattos

 

Os quintais frutíferos. Houve afoito  

Amanhecer, de galho em galho, rosto

 De suor molhado deixando as tardes

Que inventavam mentiras de verdade.

 

 Inúteis, mas importantes. Lonjuras   

Alcançavam as puras aventuras

Bebidas no nascedouro da vida

Com gosto de fruta amadurecida.

 

Tomava banho na lua de prata,

Na rua onde dorme agora, quieta,

A minha turma. A vida não prendesse

         

Meu pássaro, infância minha, não desse

Ponto final nas vagas amorosas,

Onde corri nas horas primorosas.

 

Cyro de Mattos - Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (254)



4º Domingo do Tempo Comum – 30/01/2022

 

Anúncio do Evangelho (Lc 4,21-30)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.

— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, estando Jesus na sinagoga, começou a dizer: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”.

Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca. E diziam: “Não é este o filho de José?”

Jesus, porém, disse: “Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum”.

E acrescentou: “Em verdade eu vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria.

De fato, eu vos digo: no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três anos e seis meses e houve grande fome em toda a região, havia muitas viúvas em Israel. No entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva que vivia em Sarepta, na Sidônia.

E no tempo do profeta Eliseu, havia muitos leprosos em Israel. Contudo, nenhum deles foi curado, mas sim Naamã, o sírio”.

Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício. Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou o seu caminho.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

http://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Padre Donizete Ferreira, Sacerdote da Comunidade Canção Nova.


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"Abrir passagem" por entre os intolerantes

 


“Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou seu caminho” (Lc 4,30)

 

Continuamos com o tema do domingo passado. A expressão “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” faz conexão com o relato anterior. “Hoje” se cumpre essa Escritura em cada um de nós; é preciso abrir espaço para que Deus cumpra sua vontade amorosa em nossas vidas; Ele não força nem impõe nada: “que se cumpra”, depende exclusivamente de nós. Somos nós que temos continuamente de nos perguntar: “cumprimos essa Escritura que acabamos de ouvir?”

Até o leitor menos atento ficará surpreso com a dissonância que aparece no relato deste domingo: diante da aprovação e admiração que seus conterrâneos expressam, Jesus responde com repreensões, e a cena se conclui com sentimentos de fúria por parte dos ouvintes na sinagoga, a ponto de terminar em tragédia.

Se estivermos bem atentos ao texto, perceberemos que o motivo do conflito e da fúria dos ouvintes parece claro: embora citando dois grandes profetas de Israel – Elias e Eliseu -, Jesus deu destaque a dois personagens estrangeiros como referência (viúva de Sarepta e Naamã, o sírio), em detrimento dos personagens do próprio povo. Para um judeu piedoso era inadmissível que qualquer pagão recebesse um favor divino, antes de alguém pertencente ao “povo eleito”. 

Elias e Eliseu são exemplos como Deus atua com relação aos não-judeus. Elias atendeu a uma viúva de Sarepta e Eliseu a um general sírio, e isso deixa em evidência a pretensão de salvação exclusiva que os judeus pretendiam, como povo eleito.

O evangelista Lucas quer “quebrar” este argumento contundente; Jesus desmascara a cegueira coletiva e isso provocou a ira de seus vizinhos que se sentiram agredidos.

“Não é este o filho de José?”. A única razão que os membros de seu povo dão para rejeitar as pretensões de Jesus, é que Ele é mais um do povo, conhecido de todos.

No entanto, aqui está a grandeza de Jesus: sendo um entre tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava dele. Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira das profundezas de seu ser aquilo que Deus já colocou em todas as pessoas. Jesus fala do que encontrou dentro de si mesmo e nos convida a descobrir e viver em nós o mesmo que Ele descobriu e viveu. 

Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que se tornariam mais imagem de Deus se dedicassem um cuidado especial aos cegos, aos prisioneiros e aos outros deserdados, vítimas do contexto social, político e religioso da época.

No entanto, em lugar de tranquilizá-los, Jesus vai inquietá-los ainda mais. Recorda-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito. Temos aí, em todo caso, o que provocou a indignação dos ouvintes de Jesus. No fundo, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo eleito. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, à nação, às relações vantajosas, etc.

Tal idolatria chegou ao extremo a ponto de levarem Jesus para fora da cidade, a fim de matá-lo.

É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 destaca que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai integrar todo o universo com sua presença salvífica. 

Como humanos, todos temos a tendência por estabelecer distância entre o próprio grupo – tribo, parentela, família, povo, religião, nação – e todos os demais grupos. Trata-se, sem dúvida de um movimento de autoafirmação, de busca de segurança e defesa frente o diferente. Se, unido a tudo isso, advertimos que nossas próprias crenças são questionadas, é provável que se despertem sentimentos de agressividade, que não são outra coisa que expressão do próprio medo.

Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e fanatismo.

A intolerância e o fanatismo são uma expressão de atrofia espiritual e que tem graves consequências na vida social e no diálogo inter-religioso. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível “viver a cultura do encontro” entre pessoas e grupos humanos que pensam, sentem, creem de maneira diferente.

É profundamente desumanizador quando alguém se fecha na cegueira de suas próprias ideias, crenças, ideologias... Frente a essa tendência ancestral e, com frequência, virulenta, uma atitude madura e compreensiva relativiza muros e fronteiras, reconhece a identidade comum e  torna possível a vivência da alteridade, no respeito e na confiança compartilhadas. 

É o que apreciamos nas pessoas sábias, como se mostra neste caso em Jesus. Sarepta, Síria, Israel:  por que a diferença deveria ser entendida como enfrentamento ou exclusão?

Ao compreender o que somos, se distendem as rigidezes instintivas do ego e a intolerância dos esquemas mentais que se expressam nas relações sociais, no campo da política, da religião... São mecanismos de defesa ativados automaticamente, mas carentes de sentido quando nos situamos na compreensão daquilo que somos, ou seja, humanos. 

É evidente que aquela mesma resistência contra Jesus se reproduz hoje: argumentos batidos e arcaicos são tomados como pretexto para que seja recusada a verdade presente no outro.

Se em todos os aspectos da vida se faz presente a inércia do costume, mais ainda no campo religioso: há um tradicionalismo de manter intocável o que foi recebido, como se nisso perigasse nossa fé. Sempre fazemos o mesmo e não nos paramos para analisar, para introduzir mudanças e avaliá-las.

É necessário superar a inércia da rotina, do de sempre, do estabelecido. Para não entrar em processos esquizofrênicos é preciso, muitas vezes, desaprender o aprendido. Pensemos, repensemos, provemos, inovemos... Não é esnobismo, nem desejos superficiais de mudar por mudar, mas necessidade de questionar aquilo que não convence e nem serve mais, e buscar o que é mais coerente e essencial.  Desconstruir para reconstruir. É um trabalho que é preciso fazer a partir de baixo. Não esperemos que as mudanças venham de cima.

É essa mesma compreensão que nos permite “abrir passagem” e “afastar-nos” dos preconceitos e intolerâncias que nos isolam, nos empobrecem e, em ocasiões extremamente cruéis, desembocam em tragédias. Somente tomando um mínimo de distância de nossos próprios mapas mentais, legalismos, suspeitas... seríamos capazes de rir de nós mesmos diante de tão cegos padrões de pensamento e comportamento; só assim poderemos suavizar nossa rigidez, ampliar horizontes, celebrar e viver a unidade compartilhada em tanta diversidade de maneiras de ser e de viver. 

Texto bíblico:  Lc 4,21-30

Na oração: Aliado ao conformismo e à segurança está o medo da Mudança; fechamo-nos no conhecido por medo do desconhecido. Marcados pela “normose” (normalidade doentia), ficamos encapsulados num quadrado “mofado”, trancafiados por normas parentais, sociais, culturais e religiosas.

- Também na nossa sinagoga interior carregamos intolerâncias, preconceitos, fanatismos... que depois se expressam no julgamento e na indiferença frente aos diferentes.

 

- Quê sinais de intolerância e preconceito percebo em minha vida cotidiana? Quando aparecem?

- Minha relação com Deus é intimista ou me abre a uma presença sadia diante de quem pensa-sente-ama de maneira diferente? Sou presença ecumênica ou carregada de suspeita?


Pe. Adroaldo Palaoro sj

https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2496-abrir-passagem-por-entre-os-intolerantes

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sábado, 29 de janeiro de 2022

NA MÃO DE DEUS / A VIRGEM SANTÍSSIMA - Antero do Quental



Na Mão de Deus

Antero do Quental

 

Na mão de Deus, na sua mão direita

Descansou afinal meu coração,

Do palácio encantado da ilusão

Desci a passo e passo a escada estreita.

 

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

 

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada

E atravessa, sorrindo vagamente,

 

Selvas, mares, areias do deserto...

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!

 

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À Virgem Santíssima

 Antero o Quental

 

Num sonho todo feito de incerteza,

De noturna e indizível ansiedade,

É que eu vi teu olhar de piedade

E (mais que piedade) de tristeza...

 

Não era o vulgar brilho da beleza,

Nem o ardor banal da mocidade,

Era outra luz, era outra suavidade,

Que até nem sei se as há na natureza...

 

Um místico sofrer... uma ventura

Feita só de perdão, só de ternura

E da paz da nossa hora derradeira...

 

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa...

E deixa-me sonhar a vida inteira!

 

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ANTERO DO QUENTAL

 Antero Tarquínio do Quental, poeta filósofo de ideias revolucionárias, espírito combativo e reformador, nasceu em Ponta Delgada em 1842. Doutorou-se em Coimbra. Notabilizou-se por sua participação ativa na luta contra os postulados românticos defendidos por Castilho e seu grupo. sua carta Bom Senso e Bom Gosto, editada em 1865, deu causa à famosa Questão Coimbrã, gerando, em consequência, uma das mais memoráveis polêmicas que houve, até hoje, em Portugal. Aos 18 anos publicou seu livro de Sonetos (1861). Mais tarde editou outra coleção de poesias – Odes Modernas (1865) e a seguir – Primaveras Românticas (1872). Sua obra poética foi posteriormente enfeixada em três volumes. É considerado um dos renovadores da prosa e da poesia portuguesa. Faleceu em 11 de setembro de 1891.

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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O GRAMÁTICO – Artur Azevedo


                                     O Gramático 

Artur Azevedo

 

          Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.

          Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.

          Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. “Casa do Barateiro – sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo.” O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.

          E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?

          Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:

          - Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?

          - Venha cá – respondia ele agarrando o pequeno por um botão do casaco: - “Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?” Que oração é esta?

          - Mas... é que estou com muita pressa...

          - Diga!

          - É uma oração interrogativa.

         - Sujeito?

         - Sr. Dr. Praxedes.

         - Verbo?

         - Ter.

         - Atributo?

         - Passado.

         - Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.

          E, com uma ideia súbita, parando:

          - Ah! Venha cá! Venha cá! Lembranças a seu pai – que oração é esta?

          - É uma oração... uma oração imperativa.

          - Bravo! Sujeito?

          - Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.

          - Muito bem! Verbo?

          - Dar.

          - Atributo?

          - Dador.

          - Lembranças é um complemento...?

          - Objetivo.

          - A seu pai...?

          - Terminativo.

          - Muito bem. Pode ir. Adeus.

 

          Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.

          Raramente saía à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo às numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.

          A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma folha hebdomadária, o “Progresso”, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.

          Ninguém se admire disso, porque o Barreto – justiça se lhe faça – dava mais uso à tesoura do que a pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.

         Entretanto, se no escritório do “Progresso” a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.

          Por exemplo:

          “O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica da referida corte.

          Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos mais prestimosos assinantes desde que fundou-se a nossa folha.”

 

          Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo, chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.

          O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:

          - Diabo! Não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!

          Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Victor Hugo.

          Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...

 

          Mas, oh! Providência! Nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.

          - Dr. Praxedes! Dr. Praxedes! – exclamou ele. – Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.

          O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa de seus constantes solecismos, entrou na tipografia.

          - Que deseja?

          O relator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.

         Esse, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se à mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a tesoura, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal, escreveu:

          “Falecimento. – Consta, por pessoa vinda de ***, ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris).

          O ilustre finado era conde e viúvo.

          O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.

          Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família.”

 

          O Dr. Praxedes saiu da tipografia do “Progresso”, e continuou o seu caminho a passos largos medidos e solenes.

          Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Victor Hugo quando escreveu a última palavra de sua interessante novela.

          O Barreto ficou radiante e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:

          - Nem uma emenda!

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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CHARUTADA: O ESCÂNDALO DOS EMPRÉSTIMOS DO BNDES NA ERA PT

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

OLHA O QUE O ARCEBISPO FALOU PARA BOLSONARO NA MISSA DE SÉTIMO DIA DE SU...

EXERCÍCIOS PARA DISCERNIR SE SUAS INTUIÇÕES VÊM DO ESPÍRITO SANTO


Shutterstock

Marzena Devoud 

Como identificar, no fluxo de pensamentos que atravessam a mente, as inspirações realmente vindas do Espírito Santo? Aqui está o método de São Francisco de Sales

Por que é tão difícil levar a sério este conselho de São Paulo: “Deixai-vos conduzir pelo Espírito”? De fato, alguns consideram que uma vida guiada pelo Espírito Santo é reservada apenas para uma elite praticante de esporte radical.

Para São Francisco de Sales, deixar-se conduzir pelo Espírito Santo não é um luxo nem uma extravagância, mas um fundamento essencial de toda a vida cristã. No livro “Introdução à Vida Devota”, o religioso recomenda prestar atenção às “inspirações interiores”, isto é, a “todas as atrações, os movimentos, os sentimentos de contrição, as luzes e a sabedoria que Deus torna conhecidos em nós”.

No entanto, como explica o padre Joël Guibert em seu livro Le secret de la sérénité, la confiance en Dieu avec saint François de Sales (“O Segredo da Serenidade, Confiança em Deus com São Francisco de Sales“) essas inspirações sopradas pelo Espírito são extremamente delicadas, são tão sutis que podem simplesmente passar despercebidas. “A pessoa que não cultiva um certo silêncio em sua vida dificilmente poderá ouvir a voz do Espírito”, explica.

Mas como podemos discernir esta voz sutil e discreta do Espírito? Como identificar no fluxo de pensamentos que atravessam a mente as inspirações vindas do Espírito Santo? Aqui está o método de São Francisco de Sales em quatro passos.


1 EVITAR OS PENSAMENTOS TÓXICOS

Maurizio Cerutti

Para ouvir as sugestões do Espírito, São Francisco de Sales aconselha a identificar sistematicamente todos os pensamentos tóxicos, como os relacionados à amargura, raiva, ao ciúme ou à vingança. Diz ele:

“Essas pequenas tentações de raiva, suspeita, ciúme, inveja, infidelidade de coração, frivolidade, vaidade, fingimento, maus pensamentos… Se elas vierem te picar e pararem um pouco em seu coração, não as combata, não lhes responda, mas simplesmente retire-as de lá, protestando interiormente o contrário e principalmente o seu amor a Deus. Em vez disso, dirija seu coração a Jesus Cristo”.

Ao contrário dos sussurros do Espírito, os pensamentos tóxicos fazem muito mais barulho e criam algum tumulto interior.


2 PRATICAR A ORAÇÃO DO CORAÇÃO

Quem nunca passou um dia ruminando uma preocupação? Quem nunca cultivou com antecipação o cenário sombrio de uma entrevista ou reunião que desperta preocupação? Esses pensamentos podem parecer triviais e sem importância, mas acabam criando uma parede interna que o Espírito Santo não será capaz de derrubar. Por quê? “Quanto mais a preocupação nos domina, mais procuramos por nós mesmos e com tensão uma solução para dominá-la”, analisa o padre Joël Guibert, para quem a armadilha está justamente aí: “vamos gradualmente perdendo a confiança no poder do Espírito para nós, insistindo em cuidar de nós mesmos”. São Francisco de Sales deixa isso claro em uma carta a uma amiga:

“Você deve se aliviar, desprezando todas aquelas sugestões tristes e melancólicas que o inimigo nos faz com o único propósito de nos cansar e nos preocupar.”

Para ele só há um caminho: praticar a “oração do coração”. Em cada momento de angústia, repetir com fé: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim pecador! Também chamada de “oração de Jesus”, a prece visa tornar Cristo presente no coração de quem reza.


3 MANTER A FÉ

O Espírito Santo age na medida da confiança depositada em sua ação. As curas relatadas no Evangelho ilustram isso muito bem. Ter fé é, portanto, fazer a escolha de se livrar da preocupação que sobrecarrega a mente e entregá-la a Deus. Parando o “mau pensamento”, deixamos o Espírito Santo agir. Assim explica Francisco de Sales numa carta a Santa Joana de Chantal:

“Nosso Senhor quer despojá-la de todas as coisas para que somente Ele seja tudo para você.”


Leia também:Todos os maus pensamentos são causados pelo pecado?


4 TER CUIDADO COM O PERFECCIONISMO

Entre a torrente de pensamentos excessivamente ruidosos e as sutis inspirações do Espírito, esse exercício de discernimento exige certa disciplina interior. Mas não se trata, sobretudo, de cair em certo perfeccionismo. São Francisco de Sales explica muito bem isso, dando este valioso conselho a um conhecido visivelmente envolvido em obras de caridade:

“Cuidado com todos esses pensamentos mesquinhos de vanglória que vêm à sua alma entre as suas boas ações. Portanto, não se divirta examinando se você consentiu ou não; mas, simplesmente, continue seus trabalhos como se não fosse da sua conta”.

Para os religiosos, só existe uma regra de ouro: o amor. Devemos rejeitar pensamentos tóxicos por amor a Deus. O que conta neste exercício não é o número de pequenas vitórias, mas uma atitude humilde e um desejo profundo de avançar neste caminho, de deixar-se guiar cada vez mais na vida pelo Espírito Santo.

https://pt.aleteia.org/2022/01/26/exercicios-para-discernir-se-suas-intuicoes-vem-do-espirito-santo/?utm_campaign=EM-PT-Newsletter-Daily-&utm_content=Newsletter&utm_medium=email&utm_source=sendinblue&utm_term=20220127

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POEMA DO AMOR – Cyro de Mattos


Poema do Amor

Cyro de Mattos


Ilustração Edsoleda Santos

 

Convivem em mim

Teus olhos dançarinos,

O corpo luminoso

Jardim de carícias.

Um ritmo sublime

De orvalho e pétala.

Querida, venha comigo.

Vamos ver terra e céu

Noivando no entardecer.

Onde respiram as rosas

Há um beijo vitorioso

Que perdura no eterno.

 

Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC.

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A VERDADE SOBRE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”, de GUIMARÃES ROSA



A Verdade sobre “GRANDE SERTÃO:

VEREDAS”, de Guimarães Rosa

 

Ivo Korytoswki

Escritor com duas obras premiadas pela UBE, tradutor consagrado, lexicógrafo, filósofo pela UFRJ, pesquisador da história do Rio, blogueiro e Youtuber. Pode ser contactado no Facebook.

 

Grande Sertão: Veredas é uma “vaca sagrada” da literatura brasileira. Não gostar dessa obra do Rosa é o suprassumo do “culturalmente incorreto”. O máximo que você pode dizer é que não está à altura do livro, não está preparado ainda para ler o livro. O defeito não é do livro, é teu.

O livro tem qualidades enormes que não vou declinar aqui porque já o foram sobejamente. Mas tem defeitos também. Quer saber a verdade sobre Grande Sertão: Veredas? Então me acompanhe.

1) Vê-se de tudo em Grande Sertão: Veredas, uma Ilíada brasileira, um pacto faustiano sertanejo, uma regressão à língua primordial pré-Babel, menos o que a obra realmente é: uma grande “guerra de quadrilhas” ou, mais exatamente, guerra entre bandos de jagunços que percorrem os sertões das “Gerais” meio que sem destino com sede de luta e vingança. “O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz?” (pág. 275 da 37. edição, da foto abaixo) “Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.” (pág. 92) Em meio a toda essa violência desenfreada tropas do governo também metem a colher. Só que guerra de quadrilha urbana tem um objetivo: conquistar território para vender drogas para ganhar dinheiro. E essa guerra sem fim dos jagunços aparentemente não tem objetivo concreto, ou se tem Rosa não deixa claro qual seja: é a guerra pela guerra, as eternas vendetas.

2) Os personagens que travam essa guerra, por mais pitorescos que se afigurem na criação artística de Rosa, são maus: matam com prazer, estupram, invadem cidades e saqueiam o comércio, numa das cenas mais revoltantes massacram cavalos só de maldade, tem cena de antropofagia (“o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano” - pág. 43), é gente com culpa no cartório. “Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando” (pág. 191)

São todos maus, menos o protagonista/narrador. “Eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia.” (pág. 174) Esse é o protótipo de um arquétipo da literatura: o bom bandido. O bandido filósofo, porque está preocupado com a questão da existência de Deus e do diabo (como se a existência de Deus e do diabo fosse a suprema questão filosófica). O bandido poeta (o discurso de Riobaldo tem, sim, poeticidade). O jagunço que entrou na jagunçagem não por ser ruim, mas pela força de um destino de tragédia grega (ἀνάγκη) que o empurrou para a “vida de jagunço”. “Por que será que eu precisava de ir por adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus? Destino preso.” (pág. 171) O problema é que não existe “bandido bom” na vida real. Só na literatura e numa ciência social descolada da realidade. (Como posso ser tão tacanho a ponto de equiparar Riobaldo a um bandido? Dirão)

3) Uma das virtudes apontadas em Grande Sertão: Veredas, aliás, a virtude cardeal, que impressionou o meio intelectual da época do lançamento (segunda metade da década de 1950) e continua impressionando até hoje, é a inovação, a criatividade linguística. Segundo Alexei Bueno, “uma espécie de expressionismo linguístico onde violentas deformações da base já muito requintada que é a expressão oral do sertanejo brasileiro conseguiram atingir sínteses artísticas e emocionais espantosas”. Não que a linguagem do sertanejo (ou de outros estratos da população menos letrada) nunca tivesse sido reproduzida tal e qual. Já havia sido, em diálogos. 

Mas aqui não se trata só de diálogos entre personagens. Um narrador conta a história, da primeira (“Nonada”) à última (“Travessia”) frase, em uma linguagem supostamente de um sertanejo, livre das amarras da “norma culta”. Que não é uma linguagem de um sertanejo comum, qualquer. É a linguagem de um sertanejo idealizado, esclarecido, de pendores poéticos, inclinação filosófica, que discorre “sabiamente” sobre o bem e o mal, Deus e o diabo na terra do sol, em suma, um sertanejo criado pela imaginação fertilíssima, pela genialidade do Rosa. No fundo é a linguagem do Rosa se ele, homem urbano, diplomata, cultíssimo, fosse viver no meio sertanejo! Rosa é louvado por ter revolucionado a língua. Revolucionou mesmo? A língua falada pelos brasileiros mudou em decorrência da obra do Rosa? Por outro lado, se alguém escrever um livro inteiro em miguxês/internetês, que é o calão dos internautas, ou em gíria de traficante de morro carioca, tá ligado?, será louvado por ter revolucionado a língua? E uma língua com séculos de tradição literária carece de ser revolucionada? Não basta que evolua naturalmente?

4) A linguagem de Riobaldo, narrador de Grande Sertão: Veredas, soa estranha para quem abre o livro pela primeira vez, mas se você se esforçar e ultrapassar certo número de páginas, acaba se acostumando: é o que dizem. Como se acostuma com a sintaxe & pontuação esdrúxula do Saramago. Pois vou confessar uma coisa. No momento em que escrevo estas linhas já ultrapassei a página 300 e ainda não me acostumei com a linguagem. Digo mais: já enjoei dessa linguagem, tipo enjoo que se tem em navio depois de vários dias em alto-mar. É assaz frustrante ler uma obra em que, vira e mexe, você depara com construções léxicas que parecem não fazer sentido e onde as palavras que você porventura não entende (porque você não tem na cabeça todas as centenas de milhares de palavras da língua portuguesa) não constam necessariamente do dicionário. Querem exemplos?

Agora, advai que aquietavam, no estatuto. Nanja, o senhor, nessa sossegação, que se fie! O que fosse, eles podiam referver em imediatidade, o banguelê, num zunir: que vespassem. (pág. 227)

Assim que, inimigo, persistia só inimigo, surunganga; mas enxuto e comparado, contra-homem sem o desleixo de si. (pág. 317)

“É, eu vou com o senhor, e esse urucuiano Salústio vem comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou junto perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que será vai ser ou vai não ser...” (pág. 306)

Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isso já aprendi. (pág. 301)

Vou ainda mais longe: há momentos em que o narrador parece estar delirando. Senão vejamos.

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. (pág. 272)

5) E a fidedignidade histórica? Essas guerras de jagunços sem nenhum motivo aparente ocorreram realmente em Minas/Goiás? Sei que houve cangaço no Nordeste, sei que latifundiários praticaram (ou até ainda praticam) grilagem de terras e até lançaram ou lançam mão de jagunços para se apropriar de terrenos alheios, mas guerras entre bandos de jagunços tipo guerras feudais medievais sem qualquer objetivo ocorreram em Minas Gerais? (Aqui espero o socorro dos historiadores mineiros.) Aliás, Alexei Bueno, em seu ensaio “Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha: Afinidades Eletivas” confirma essa minha sensação de irrealidade ao escrever que em Grande Sertão: Vereda “sente-se uma organização social e militar muito mais próxima do que conhecemos como cangaço, pela independência, sobretudo, dos seus membros, do que de qualquer jaguncismo histórico daquele mais sonhado do que real norte de Minas”.

6) Grande Sertão: Veredas não é a maior saga da literatura brasileira do século XX. Quem detém o laurel, em minha modesta opinião, é O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, que conta, romanceadamente, a história da formação do Rio Grande do Sul, desde os primórdios até a era getuliana, com as rixas entre as famílias poderosas proprietárias das terras, reconstituição dos gauchismos mas... sem "revolucionar a língua", digamos assim.

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Na época do lançamento, Grande Sertão: Veredas foi recebido com estupor, diferente de tudo que se escrevera antes. Reconheceram os críticos as virtudes, mas também as dificuldades de compreensão da monumental obra (e um dos críticos chegou a aludir aos “exageros” do estilo roseano). 

Assim, diz Maria Eugenia Celso, no Jornal do Brasil de 28/7/1956:

O que acho mais extraordinário em “Grande Sertão: Veredas”, o novo romance de Guimarães Rosa, é que, assim tão terrivelmente sertanejo no linguajar, no ambiente e na trama passional dos episódios, tenha sido escrito aqui por um diplomata num meio supercivilizado, para o qual aquela maneira de falar não pode deixar de ser um tanto charadística. Verdadeiro “tour de force”, a meu ver.

Escreve Manuel Bandeira em “Livros a Mancheias” no JB de 12 de agosto daquele mesmo ano:

Guimarães Rosa ouvi dizer que inventou uma língua nova, que não é nem a portuguesa, nem a brasileira, nem a de Mário de Andrade.

Em mesa redonda sobre Rosa publicada no JB de 2 de setembro afirmou Sérgio Milliet:

Mas com “Grande Sertão: Veredas” temos o grito de independência de nossa literatura. Depois deste livro será preciso reescrever a gramática do português do Brasil. [...] “Grande Sertão: Veredas” é sem dúvida alguma, o nosso grande acontecimento literário e linguístico do século. Está para a possível língua brasileira como a poesia de Villon ao findar a Idade Média.

Benedito Nunes, em “Primeira Notícia sobre Grande Sertão: Veredas”, no JB de 10/2/1957, escreve:

“Grande Sertão: Veredas” ultrapassa o âmbito regional. No drama do sertanejo ou do jagunço, irrompem os grandes problemas humanos – seja a luta do homem contra a natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela necessidade de viver e de realizar o seu destino.

Aliás, trata-se do único crítico que ousa apontar as deficiências do estilo do autor:

Os trechos onde a linguagem decai, perdendo a sua eficiência expressiva, revelam os defeitos da técnica que o romancista preferiu adotar para ser fiel às situações vividas pelo personagem. Alguns desses defeitos são cacoetes estilísticos decorrentes do uso, tantas vezes abusivo das desarticulações sintáticas, contrações e elipses que, praticadas mecanicamente, não possuem mais valor expressivo. 

Josué Montello, em aula inaugural do Curso de Literatura proferida em 28 de março de 1957 na Faculdade de Letras de Lisboa, considerou Grande Sertão: Veredas “a mais arrojada aventura da nova ficção brasileira. Guimarães Rosa é um renovador da língua como Aquilino Ribeiro.”

Múcio Leão (JB, 1/5/1957) reconhece que a linguagem de Grande Sertão: Veredas é dificílima, “uma espécie de língua nova, inaceitável à maioria dos leitores, senão a todos eles. Eu mesmo, que terminei por achar uma pura delícia esse Grande Sertão: Veredas, tive muita dificuldade para conseguir lê-lo. [...] Resolvi lê-lo mais ou menos como se fosse um livro escrito em outra língua, uma língua aproximada desta que falo.”

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Em suma, “o sertão é do tamanho do mundo” (pág. 60), e Grande Sertão: Veredas é um clássico, um monumento da nossa literatura, inovador, impressionante, de tirar o fôlego, uma das três epopeias da língua portuguesa (as outras, Os Lusíadas e Os Sertões), segundo meu amigo Alexei, tudo isso admito, mas... não há nada de errado em você, nem você precisa ficar com sentimento de culpa, caso não goste do livro de Guimarães Rosa. Afinal, gosto se discute!

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Ivo Korytoswki é romancista premiado, tradutor com quase duzentos romances traduzidos, autor de vários livros sobre o léxico brasileiro. Jornalista e blogueiro famoso no Rio e São Paulo.

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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ITABUNA CENTENÁRIA REFLETINDO: Frases de Famosos

 

Frases de Famosos

 

"As discórdias, habitualmente, são resolvidas, com a Lei do Amor”.

Mahatma Gandhi

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“Nada melhor do que a PAZ que aniquila toda a guerra de poderes celestes ou terrestres”.

Santo Inácio de Antioquia

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“O TEMPO PRESENTE é o único no qual podemos reparar o passado e construir o futuro”.

Santo Agostinho

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Com CRISTO, uma teia de aranha torna-se fortaleza; sem Cristo, a fortaleza é apenas uma teia de aranha”.

São Félix

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“O segredo da vida humana está na entrega sem questionamentos a DEUS, e na consciência de sua presença amorosa”.

Thomas Merton

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“Quem pergunta com má intenção não merece ouvir a VERDADE”.

Santo Ambrósio

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“Os CÉUS são relatores da glória de DEUS”.

Francisco de Quevedo

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“DEUS é o Deus do presente. Assim Ele te encontra e te acolhe não pelo que foste, mas pelo que és agora”.

Eckhart

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“O grande poder existe na força irresistível do AMOR”.

Gabriel Garcia Marquez

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“Homem poderoso é quem tem PODER sobre si mesmo”.

Sêneca

 

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UM PERFIL DE CORAGEM – I José Sarney


Tenho retomado aqui pequenas narrativas sobre a vida e seus personagens que recolhi há alguns anos com o título de Galope à Beira-Mar. Nele conto histórias de grandes brasileiros, grandes políticos que engradecem nosso País e são exemplos para as novas gerações. Entre eles se destaca Adauto Lúcio Cardoso, um exemplo de coragem política como os do famoso livro de John Kennedy, Profiles in Courage.

Ninguém igualava Adauto no combate a João Goulart, ao PTB e a Getúlio. Com essa marca e sendo líder da UDN, ao saber que os ministros militares - do Exército, da Aeronáutica e da Marinha - tinham feito um manifesto vetando a posse de Goulart, vice-presidente da República, como sucessor de Jânio Quadros, surpreendeu a Câmara dos Deputados.

Eu estava presente na sessão extraordinária do dia 27 de agosto de 1961. Era o fim da tarde. A Casa regurgitava de ódio e paixão, dividida entre os que queriam a assunção do Jango e os que queriam que os militares dessem um golpe evitando essa posse.

Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira interinamente a Presidência da República sem ter poder algum, porque o poder estava nas mãos dos militares.

No meio daquele tumulto, quando todos esperavam que Adauto Lúcio Cardoso fizesse um discurso daqueles que ele sabia fazer - e como só ele sabia: com uma linguagem pausada, contundente, verrina e profundamente agressiva -, ele surgiu com um papel enrolado na mão. Dirigiu-se à tribuna e leu a seguinte petição:

'Adauto Lúcio Cardoso, advogado e deputado federal, representante eleito pelo povo do Estado da Guanabara, no cumprimento dos deveres do mandato que exerce, vem oferecer contra o senhor Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, ora no exercício da Presidência da República, contra o Ministro da Guerra, contra o Ministro da Aeronáutica e contra o Ministro da Marinha, representação na forma da lei número 1.079, de 10 de abril de 1950, cujo art. 13, item 1, estatui serem crimes de responsabilidades dos ministros de Estado os atos nela definidos, 'quando por eles praticados ou ordenados'.'

Este era o Adauto Lúcio Cardoso: acima de todos os interesses políticos, acima de todas as suas responsabilidades de chefe da oposição, invocava a Lei para processar por crime de responsabilidade aqueles que tinham feito uma comunicação dizendo que não dariam posse a João Goulart, conforme os termos da comunicação de Mazzilli ao Congresso Nacional: '?na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do Vice-Presidente João Belchior Marques Goulart.'

Adauto desafiou a todos. Magoou seus companheiros e seus amigos, mas ficou ao lado da legalidade e da Constituição.

A cena está indelével em minha mente de parlamentar. Não presenciei gesto mais patriótico, de maior coragem cívica do que este: sua cabeleira branca, aquela postura de autoridade, aquele homem de grande bravura subindo a pequena escadaria que levava à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para entregar a sua denúncia.

Aliomar Baleeiro, que era seu amigo-irmão, os dois sempre juntos, estranhou o gesto e gritou:

- Ô Adauto, você fazendo isto?

Adauto parou e, fora dos seus hábitos, da sua polidez e da sua educação, disse em resposta ao Baleeiro:

- Aliomar, vá à m?!

Eu lutei para não chegar perto dele e beijá-lo. Mas guardo até hoje a convicção de que foi a maior figura que conheci no Congresso.

Os Divergentes, 23/01/2022

 

https://www.academia.org.br/artigos/um-perfil-de-coragem-i

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